GeopolíticaOpinião
Realidade multipolar se impõe fortemente
Ocorre na conjuntura mundial um verdadeiro abalo de placas tectônicas, escreve Dilermando Toni, experiente dirigente comunista
Por Dilermando Toni (*)
A bon entendeur, salut!
A viagem do presidente da República Popular da China, a Moscou durante três dias a partir de 21/03/2023, revestiu-se da maior importância, tanto pelos discursos dos dois chefes de Estado, Xi Jinping e Vladimir Putin quanto pelo alcance dos assuntos tratados ou ainda pelos muitos acordos de cooperação e negócios em múltiplas áreas, assinados naquela ocasião.
Passados alguns dias daquele evento se pode avaliar bem suas repercussões profundas e abrangentes até mesmo pela reação enfurecida que provocou nos círculos dominantes ocidentais visando descaracterizá-lo e atacá-lo para criar uma barreira entre os dois gigantes emergentes. É o que se pode ver nas várias declarações de autoridades e da imprensa. O editorial da insuspeita revista inglesa The Economist, por exemplo, chega a dizer que a China intenciona manter a Rússia sob seu controle para se credenciar como promotora das iniciativas de paz …
No entanto, em um cenário internacional cada vez mais tenso, com a Rússia envolvida em um conflito bélico, o que se viu na realidade foi o um poderoso impulso às relações bilaterais, abrangentes e estratégicas. Concordância que se apresentou inclusive quanto à proposta chinesa de resolução do conflito ucraniano pela via política e diplomática com sua proposta de 12 pontos. Assim como em vários outros pontos sensíveis à segurança, à estabilidade e à paz no mundo. Tudo exposto em detalhes, com transparência, na declaração conjunta divulgada “Aprofundamento da Parceria Estratégica Abrangente de Coordenação para a Nova Era”.
Putin usou dessas palavras para resumir o encontro: “Em meio às “ondas e ventos” que varrem o planeta, cooperamos estreitamente em assuntos internacionais e coordenamos efetivamente nossas posições de política externa, combatemos ameaças comuns e respondemos aos desafios atuais, lado a lado como uma “rocha em meio a uma correnteza rápida. Promovemos ativamente estruturas multilaterais democráticas, como SCO [Organização de Cooperação de Xangai] e BRICS, que têm cada vez mais autoridade e influência e atraem novos parceiros e amigos. O trabalho destinado a coordenar o desenvolvimento da União Econômica da Eurásia com a Iniciativa Belt and Road também segue nessa linha.”
Nada escapou à atenção da liderança russa e chinesa. Problemas da articulação imperialista para agir no mar do Sul da China, a ação agressiva da OTAN, as questões pertinentes à península coreana, o atentado ao gasoduto Nord Stream 2, e vários outros desse mesmo matiz. A cooperação econômica, comercial, energética, militar, e assim por diante, numa abrangência enorme. Destaque-se inclusive que a parte russa passa a reconhecer e incentivar a moeda chinesa, o Yuan, para as transações internacionais.
Estes fatos, pela sua grandiosidade, chamam a que as forças de esquerda em geral e os comunistas em especial avaliem corretamente a cena externa que se projeta a fim de retirar consequências para sua ação concreta. Isto porque são internacionalistas e também porque a importância do Brasil no mundo, sob a direção de um governo progressista de composição heterogênea, traz uma interseção direta com os mesmos fatos.
1 A primeira pergunta que ressurge é se já vivemos em uma configuração mundial multipolar ou se tal caracterização está errada? Para os contrários à multipolaridade ainda passamos por uma longa fase de transição de um mundo unipolar hegemonizado pelo imperialismo dos EUA para um mundo policêntrico. Isso foi reafirmado veementemente e com desdém a opiniões diferentes, no início de fevereiro último por acadêmicos muito influentes em setores da esquerda brasileira tradicional.
Tal opinião encontra variada argumentação, mas todas elas partem da desproporcionalidade de forças entre o imperialismo dos EUA, incomparavelmente maior a de outros países como a China e a Rússia. Uns chegam a dizer que até mesmo a transição é algo incerto, pois os EUA com toda a sua força estariam aptos a revertê-la, reafirmando sua hegemonia. Outros, mais sutis, falam da tendência à multipolaridade mas confirmam a transição como aspecto central, também ainda devido à força maior dos EUA em relação a outros polos emergentes. Se, há pouco mais de um ano se poderia até entender essas opiniões como sendo próprias de um debate político e ideológico, hoje em dia não há como negar que elas acabam por se alinhar aos pontos de vista do mainstream estadunidense e de setores das FFAA brasileiras e em oposição frontal ao que pensam os chineses, os russos e um largo espectro de intelectuais e forças políticas ao redor do mundo e no Brasil.
2 O principal erro de tais opiniões reside na superestimação das decadentes forças do imperialismo estadunidense e na subestimação das forças da Rússia e da China socialista, mas, sobretudo, consiste na subestimação do potencial da aliança entre a Rússia e a China. Ou por tratá-la superficialmente ou por caracterizá-la como uma mera aliança tática.
Há mais de um ano, exatamente em 4 de fevereiro de 2022, a Rússia e a China trouxeram à luz um documento histórico, quando de uma visita de Putin a Pequim, por ocasião da abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno. Nele a primeira coisa constatada é a existência do fenômeno da multipolaridade ao lado de outras grandes transformações na arquitetura da governança e na ordem mundial. Reconhecendo-se como potências mundiais reafirmaram sua aliança estratégica, sem precedentes, inabalável, presente e futura. O encontro deste mês de março de 2023 só fez confirmar e aprofundar essa mesma linha.
É importante lembrar que essa construção não começou agora. No Tratado China-Rússia de Boa Vizinhança e Cooperação Amigável, originalmente assinado em 2001 onde está dito entre outras coisas que: “Se emergir uma situação na qual um dos signatários do Tratado entender que (…) enfrenta ameaça de agressão, as partes signatárias devem fazer contato imediatamente e organizar consultas, com vistas a eliminar tais ameaças.” Também a importantíssima Organização de Cooperação de Xanghai (OCX), cujo núcleo é constituído pela Rússia e pela China, está em operação desde aquele mesmo ano.
Rússia e China são países independentes com cultura, economia, sistema político e civilização próprias, mas, em termos de geopolítica atual devem ser levados em conta como uma aliança, apta a agir e influenciar de comum acordo os destinos da humanidade. Se a multipolaridade pode ser considerada o fenômeno mais importante da situação internacional a aliança entre esses dois países, pela força que tem, é o cerne desse fenômeno.
A conclusão a que se chega é a de que, agora em Moscou, foi dado mais um decisivo passo na consolidação do mundo multipolar. Ou para uma Nova Era, expressão com a qual os chineses resumem o quadro que se abre.
3 A multipolaridade é um fenômeno objetivo advindo daquilo que ficou conhecido como lei do desenvolvimento desigual referida por Lênin em seu livro clássico O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo de 1916 ao abordar a concorrência entre países imperialistas, mas que se aplica igualmente ao mundo atual quando os concorrentes são um país imperialista e seus satélites europeus, um país socialista e um país capitalista contra-hegemônico. Agora, as políticas adotadas pelas potências podem atrasar ou acelerar o desenvolvimento do fenômeno.
A política russa e chinesa atual é de impulsionar a multipolaridade como sendo extremamente benéfica para a construção de um mundo em que as nações convivam em pé de igualdade, democrática e pacificamente. Não surge de uma hora para outra devido à sua magnitude histórica, porém como assinalou Xi Jinping quando se despedia de Putin em Moscou: “Mudanças estão ocorrendo em uma escala não vista em 100 anos. Vamos liderá-las juntos”. Mas, essa realidade se impõe enfrentando uma agressividade crescente por parte do imperialismo dos EUA que se prepara para grandes confrontos com a estratégia de conter a Rússia e a China a qualquer custo.
4 Na prática os efeitos da realidade policêntrica vão se fazendo sentir cada vez mais intensamente. Na Síria, a conjugação de esforços externos e internos levou a uma situação em que o imperialismo não conseguiu impor sua intenção de atrair o país e substituindo pela força sua liderança. Agora Ucrânia, a guerra por procuração movida pelo imperialismo e pela OTAN para sufocar a Rússia está fadada ao fracasso. Mais recentemente, o Irã, cada vez mais influente reatou relações com a Arábia Saudita em negociações patrocinadas pela China, provocando um grande tremor no status quo do Oriente Médio. Também a Venezuela vai conseguindo sobreviver, sem se dobrar ao imperialismo dos EUA, navegando nas oportunidades abertas pela nova situação. Cada vez um número maior de países da África e da Ásia compreendem que um outro mundo se constrói em oposição ao Ocidente do qual só conheceram a opressão e a exploração.
5 É de espantar como a China consegue avançar tão rapidamente e em muitas direções, um desenvolvimento multifacetado. Isto só é possível devido à existência do poder socialista e da direção do Partido Comunista da China. O PIB chinês pela paridade do poder de compra já é muito maior do que o dos EUA, US$ 32,53 trilhões contra US$ 26,19 trilhões. É o maior parceiro comercial de mais de 120 países do mundo, alcança grandes avanços tecnológicos, já tem a maior frota de navios de guerra do mundo, é um grande credor dos EUA, tem um grande volume de reservas internacionais cada vez mais diversificadas. Atualmente, segundo Xi Jinping no último Congresso do PCCh, realizado em outubro de 2022, eles têm como objetivo: “erguer a grande bandeira do socialismo com características chinesas … para uma Nova Era, levar adiante o grande espírito fundador do Partido, mantendo-se confiante e fortalecendo-se, defendendo os princípios fundamentais e abrindo novos caminhos, avançando com iniciativa e coragem, e lutando em unidade para construir um país socialista moderno em todos os aspectos e promover o grande rejuvenescimento da nação chinesa em todas as frentes”.
Já a Rússia ao meio à operação militar especial para proteger o povo do Donbass de etnia e língua russa e promover a desmilitarização e a desnazificação da Ucrânia vem conseguindo construir alternativas que procuram romper o cerco das sanções do Ocidente. Elas já ultrapassam a 14 mil, entre as quais a exclusão do sistema Swift de compensações internacionais, com o que tentaram sufocar a Rússia. Mas, sua maior conquista foi sem dúvida a reconstrução de seu complexo industrial-militar que a recolocou como a maior potência nuclear do planeta e possibilitou o desenvolvimento de novas armas baseadas na tecnologia hipersônica avançada, defensiva e ofensiva, até agora inacessível aos EUA e que se constituem em grande contraponto às bases e às frotas dos EUA espalhadas mundo afora.
6 Nessa nova realidade da economia e das finanças mundiais rigorosamente, não se pode falar mais em mercado mundial único hegemonizado pelos EUA e pelo dólar. Embora a economia mundial tenha um alto grau de integração, os mercados dos EUA se restringem. Além da Ásia há forte competição na África e mesmo na América Latina. Os países de capitalismo desenvolvido do Ocidente enfrentam grandes dificuldades. É significativo o fato de que dos dez maiores bancos do mundo, os quatro primeiros são chineses, voltados para o financiamento da indústria, da agricultura ou do comércio enquanto os 5 maiores bancos dos EUA têm US$ 188 trilhões em derivativos, o equivalente ao PIB mundial pela paridade do poder de compra, ou pouco menos de dois terços do PIB mundial ao câmbio corrente. Note-se que os chineses estão voltados ao financiamento da produção enquanto os estadunidenses à especulação parasitária.
O quadro é composto por várias as outras iniciativas que tomam a Rússia e a China na busca de construção de alternativas financeiras e monetárias, onde contam-se a criação e operação de bancos internacionais de fomento ao desenvolvimento.
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A busca de uma melhor compreensão do que se passa hoje no mundo, um verdadeiro abalo de placas tectônicas, passa a ser crucial para que os comunistas possam orientar sua atividade. Essas mudanças se situam nos marcos da época histórica atual, de transição do capitalismo ao socialismo. O fato da China agora uma grande potência mundial, um país socialista, recoloca com mais força a luta pelo socialismo no Brasil.
(*) Jornalista, ex-editor de A Classe Operária, autor na revista Princípios. Foi membro da direção nacional do PCdoB