Brasil
Raduan Nassar discursa contra o governo golpista Temer: vivemos tempos sombrios
Às dez e meia da manhã desta sexta-feira (17), ao receber o Prêmio Camões, em São Paulo, o escritor Raduan Nassar, autor de Um copo de Cólera e Lavoura Arcaica, fez um discurso veemente contra o governo golpista Temer e as instituições que o amparam incondicionalmente, como o Ministério Público e o STF (Supremo Tribunal Federal).
O ministro da Cultura, Roberto Freire, tentou rebater o discurso do escritor, que foi ovacionado e seguido de gritos “fora, Temer!” vindos da plateia. O ministro foi vaiado pelos presentes. Segue abaixo o discurso de Raduan Nassar:
“Excelentíssimo Senhor Embaixador de Portugal, Dr. Jorge Cabral.
Senhor Dr. Roberto Freire, Ministro da Cultura do governo em exercício.
Senhora Helena Severo, Presidente da Fundação Biblioteca Nacional.
Professor Jorge Schwartz, Diretor do Museu Lasar Segall.
Saudações a todos os convidados.
Tive dificuldade para entender o Prêmio Camões, ainda que concedido pelo voto unânime do júri. De todo modo, uma honraria a um brasileiro ter sido contemplado no berço de nossa língua.
Estive em Portugal em 1976, fascinado pelo país, resplandecente desde a Revolução dos Cravos no ano anterior. Além de amigos portugueses, fui sempre carinhosamente acolhido pela imprensa, escritores e meios acadêmicos lusitanos.
Portanto, Sr.Embaixador, muito obrigado a Portugal.
Infelizmente, nada é tão azul no nosso Brasil.
Vivemos tempos sombrios, muito sombrios: invasão na sede do Partido dos Trabalhadores em São Paulo; invasão na Escola Nacional Florestan Fernandes; invasão nas escolas de ensino médio em muitos estados; a prisão de Guilherme Boulos, membro da Coordenação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto; violência contra a oposição democrática ao manifestar-se na rua. Episódios todos perpetrados por Alexandre de Moraes.
Com curriculum mais amplo de truculência, Moraes propiciou também, por omissão, as tragédias nos presídios de Manaus e Roraima. Prima inclusive por uma incontinência verbal assustadora, de um partidarismo exacerbado, há vídeo, atestando a virulência da sua fala. E é esta figura exótica a indicada agora para o Supremo Tribunal Federal.
Os fatos mencionados configuram por extensão todo um governo repressor: contra o trabalhador, contra aposentadorias criteriosas, contra universidades federais de ensino gratuito, contra a diplomacia ativa e altiva de Celso Amorim. Governo atrelado por sinal ao neoliberalismo com sua escandalosa concentração da riqueza, o que vem desgraçando os pobres do mundo inteiro.
Mesmo de exceção, o governo que está aí foi posto, e continua amparado pelo Ministério Público e, de resto, pelo Supremo Tribunal Federal.
Prova da sustentação do governo em exercício aconteceu há três dias, quando o ministro Celso de Mello, com suas intervenções enfadonhas, acolheu o pleito de Moreira Franco. Citado 34 vezes numa única delação, o ministro Celso de Mello garantiu, com foro privilegiado, a blindagem ao alcunhado “Angorá”. E acrescentou um elogio superlativo a um de seus pares, o ministro Gilmar Mendes, por ter barrado Lula para a Casa Civil, no governo Dilma. Dois pesos e duas medidas
É esse o Supremo que temos, ressalvadas poucas exceções. Coerente com seu passado à época do regime militar, o mesmo Supremo propiciou a reversão da nossa democracia: não impediu que Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos Deputados e réu na Corte, instaurasse o processo de impeachment de Dilma Rousseff. Íntegra, eleita pelo voto popular, Dilma foi afastada definitivamente no Senado.
O golpe estava consumado!
Não há como ficar calado.
Obrigado”.
Roberto Freire, ministro da Cultura, tentou, insistiu, retrucou, bateu boca, mas não conseguiu concluir seu discurso na entrega do Prêmio Camões. Aos gritos de “Fora, Temer” e “governo golpista”, a plateia reunida para homenagear o escritor Raduan Nassar, vencedor da premiação, reagiu ao pronunciamento do ministro e várias vezes o interrompeu com vaias.
O Camões, mais importante prêmio da literatura em língua portuguesa, é uma distinção oferecida pelos governos do Brasil e Portugal. O vencedor é nomeado por um júri independente formado por representantes dos dois países.
Freire havia sido escalado para responder a Nassar. Ocorreu inclusive uma mudança no protocolo da cerimônia. O ministro discursou depois do premiado, não antes, justamente para proferir a réplica. Outra alteração no script: a cerimônia aconteceu ao ar livre, no pátio do museu Lasar Segall, mais apropriado para o dia ensolarado, por causa da falta de espaço no auditório reservado (200 presentes para apenas 90 cadeiras).
Em vez de relevar as palavras de Nassar, o que seria um gesto de deferência ao homenageado, o ministro aproximou-se do microfone disposto a rebatê-las.
Declarou-se perplexo, classificou de histriônico o protesto do escritor, insinuou de forma deselegante que ele poderia ter recusado o reconhecimento (em especial a premiação em dinheiro) e afirmou que o fato de a láurea ter sido entregue a um “opositor” mostra não existir “nenhuma dúvida sobre o momento democrático” vivido no País.
A cada frase, a plateia aumentava o tom dos protestos.
O desconforto crescente transformou o que deveria ser um pronunciamento formal em um bate-boca. Defensores do ministro tentaram abafar, sem sucesso, a manifestação dos convidados. Nervoso, Freire escorregou no português (“Haverão reformas”), provocou o público (“Vocês não gritam Volta, Dilma”) e cometeu diversas imprecisões e omissões ao insistir que a prova do esplendor democrático do Brasil estaria no fato de o governo premiar um “opositor”.
Para o ministro, o escritor não devia aceitar o prêmio de um governo que considera ilegítimo. Vale ressaltar, porém, que o prêmio é dado pelo governo do Brasil e de Portugal e que o resultado foi anunciado em maio de 2016, quando Dilma Rousseff ainda não havia sido tirada do cargo pelo golpe de Estado efetuado pela direita. Além disso, a escolha não é feita por representantes do governo, e sim por críticos, escritores e professores.
O prêmio Camões é concedido pelo Brasil e Portugal. Os dois países dividem os custos, o planejamento e a organização. A escolha do vencedor cabe a um júri independente, não a representantes do setor público, muito menos aos nativos. E não existiu todo esse desprendimento de Brasília em relação ao “opositor” Nassar. Ao contrário. A burocracia brasileira adiou por vários meses a entrega do prêmio.
Vencido pelos presentes, Freire interrompeu bruscamente a réplica. Antes de deixar o museu, o ministro fez questão, porém, de confrontar Augusto Massi, amigo de Nassar e professor de literatura da USP. Massi era um dos mais incomodados com as intervenções do ministro. “O dia era do Raduan, não do Freire”, afirmou o acadêmico.
E assim foi. Enquanto Freire e seu pequeno séquito deixavam o museu, Nassar era abraçado e louvado e posava para fotos.
Resistência, com Carta Capital e Mídia Ninja, edição de Luci Nascimento