Revolução Bolivariana
Maringoni: Quem deu o golpe na Venezuela? (Ou nada é fácil diante de um cerco implacável)
Há uma luta política duríssima em curso na Venezuela. A suspensão temporária da Assembleia Nacional pela Suprema Corte é sua mais recente e dramática face.
Por Gilberto Maringoni (*) em Opera Mundi
De um lado, há um governo acuado por uma crise econômica causada pela queda dos preços do petróleo, entre 2014-16, pela falta de comando político estável e pelo desaparecimento de sua principal liderança, Hugo Chávez, morto há quatro anos.
De outro, existe uma oposição vitaminada por expressiva vitória eleitoral, em dezembro de 2015, na qual obteve 112 cadeiras contra 55 do governo. Três deputados foram impugnados no estado de Amazonas, sob acusação de fraudes eleitorais.
Total diferença
Os três fazem toda a diferença nas votações: com eles, a Mesa de Unidade Democrática (MUD), leque de forças que comanda o Legislativo alcançaria mais de dois terços dos membros da casa, o que lhe facultaria decidir sobre matérias constitucionais.
A disputa se acirrou. No início de janeiro último, os antichavistas alcançaram 106 votos para declarar a vacância da cadeira presidencial, por “abandono do cargo”.
A iniciativa não prosperou por falta de respaldo nos fatos. Nicolás Maduro não teve nenhuma falta da ordem alegada pela coalizão opositora.
As movimentações de tais setores para derrubar o governo agora só podem ser feitas ao arrepio da Constituição. Até abril de 2016 – metade da gestão Maduro – era possível obter tal intento pela via do referendo revogatório, previsto na Carta. A MUD não obteve assinaturas em número suficiente, segundo a Suprema Corte. Se a medida for realizada agora e Maduro cair, quem assume é seu vice, Tareck El Aissami.
Em 6 de janeiro, desafiando a lei, a MUD empossou os três políticos impugnados.
A letra da Constituição
A possibilidade de efetivá-los facultaria à oposição encurtar o mandato presidencial, através de emenda constitucional. Mas a posse dos três em si é ilegal.
Para impedir um golpe contra si, Maduro valeu-se de prerrogativas inscritas na Constituição::
“Artigo 335. O Tribunal Supremo de Justiça garantirá a supremacia e efetividade das normas e princípios constitucionais; será o intérprete máximo e último da Constituição e velará por sua interpretação e aplicação uniformes. As interpretações estabelecidas pela Sala Constitucional sobre o conteúdo ou alcance das normas e princípios constitucionais são vinculantes para as outras câmaras do Tribunal Supremo e demais tribunais da República.
Artigo 336. São atribuições da Sala Constitucional do Supremo Tribunal de Justiça:
- Declarar nulidade total ou parcial das leis nacionais e demais atos com força de lei dos corpos legislativos nacionais que colidam com esta Constituição.
(…) - Dirimir controvérsias constitucionais que possam surgir entre qualquer órgão do poder público”.
A SC apelou à Assembleia Nacional que anulasse a posse dos deputados. Esta não o fez.
Pode-se debater se a medida de suspender a AN foi exagerada ou não. Mas não se pode tirar de vista que a MUD tentou dar um golpe. Diante de tal ilegalidade, o governo apelou à Justiça.
Neoliberalismo ou Estado social?
As opções colocadas diante da Venezuela não são simples. É possível que o governo perca as eleições presidenciais de 2019. É parte do jogo. Mas, diante do avanço avassalador da extrema-direita no continente, Nicolás Maduro não quer pagar para ver em seu país a concretização de diretrizes econômicas que empobrecem a população, privatizam ativos públicos, retiram direitos dos trabalhadores e tolhem perspectivas de desenvolvimento.
Não se trata de fantasias. É exatamente o que está acontecendo na Argentina, no Brasil, no Paraguai e em Honduras.
Pode-se e deve-se criticar acidamente o atual governo venezuelano por muitas coisas.
Só não se pode condená-lo por lutar como um leão – isolado por um cerco político e midiático no cenário internacional – para manter as conquistas de 18 anos de um processo político que buscou tirar de cena a dinâmica destrutiva do neoliberalismo.
(*) é professor de Relações Internacionais da UFABC (Universidade Federal do ABC), autor do livro “A Venezuela que se inventa”.