Opinião
União Europeia materializa a contradição entre neoliberalismo e solidariedade
A crise da vez é acirrada por nada menos que uma pandemia, desvelando as causas das dificuldades na lida com o desafio à vida de forma solidária, enunciada como espírito da União Europeia. É notícia velha a interrogante que a saída do Reino Unido, Brexit, colocou ao projeto europeu, ou a crise iniciada em 2007-2008, que serviu para impor o arrocho aos trabalhadores. Já se especulava sobre a nova quebra global e a pandemia surge como catalisador, mas possibilitará rearranjos?
Por Moara Crivelente (*)
Pauta das análises tanto de forças políticas progressistas quanto nos próprios meios de comunicação convencionais é o obstáculo que a natureza da União Europeia (UE) coloca ao enfrentamento à pandemia de covid-19. Ao contrário de um “projeto europeu” de integração regional solidária, de construção de um futuro comunitário, de cooperação para o desenvolvimento de uma “Europa” unida, o que se vê, crise após crise, é que este mito mascara a institucionalização do neoliberalismo e a imposição de políticas pelas potências aos demais membros e por tecnocratas que ditam o compasso se apresentando como neutrais, sem “vícios” ideológicos.
Desta feita, Itália, Espanha e França estão entre os países do bloco mais afetados pelo surto de coronavírus e notaram a falta de amparo, de consequências literalmente fatais. Note-se que as vozes do protesto não são apenas as que defendem transformações radicais: no fim de março, a ministra francesa para Assuntos Europeus Amélie de Montchalin reagiu ao fracasso do primeiro intento de se estabelecer um plano de apoio financeiro afirmando que estava em jogo o projeto europeu, enquanto o presidente Emmanuel Macron disse que “se a Europa pode morrer, será por inação” e o premiê italiano Giuseppe Conte afirma que a existência da UE está em risco. E o pior da crise pode ainda estar por vir.
O Banco Central Europeu (BCE) anunciou, em 23 de abril, uma estimativa de quebra do PIB do bloco de até 15%. A nível global, o Fundo Monetário Internacional (FMI) anuncia avistar nova crise no horizonte, trazida a galope pela pandemia, estimando um encolhimento da economia mundial em 3% e uma recuperação parcial, mas incerta —ou até uma piora— em 2021. Sobram interrogações. Mas que não se embaralhe causa e consequência. Já havia alertas sobre a iminência de uma crise provavelmente pior que a de 2007-2008 antes do surto epidêmico, avaliando que 2019 ou 2020 trariam o desastre.
Nos EUA, em 2018, quando o PIB crescia a 4,2% no segundo trimestre, o New York Times notava a queda de 1,5% nas bolsas e o “pior ano dos fundos de investimento livre [hedge funds] desde a crise de 2008”, com a dívida dos lares atingindo o novo recorde de USD 13,5 trilhões, além das políticas de juros baixos incitando uma corrida por ações, investimentos imobiliários e outros bens, gerando a “bolha de dívida global”. As pesadas dívidas estudantis, acumuladas então em USD 1,5 trilhão, e outros desafios, assim como a situação da Europa, estavam entre os pontos analisados. O britânico The Guardian, em 2019, avistava a chamada “guerra comercial” entre EUA e China como catalisadora da estagflação —estagnação acompanhada de altas taxas de inflação— e da nova recessão mundial. Também já vinham sendo discutidas as taxas de juros negativas —com o credor pagando para emprestar— de alguns bancos centrais entre as políticas adotadas no setor financeiro para promover o crescimento econômico, entre outros efeitos que são melhor analisados por especialistas, como nos preços dos ativos e na recompra de ações por empresas.
Em suma, a crise já era uma tragédia anunciada nos efeitos catastróficos do capitalismo neoliberal mesmo que este não fosse chamado pelo nome em grande parte dos avisos.
O mito da UE solidária
Passados meses de assombro com a pandemia, o Conselho Europeu —de chefes de alcançado no início do mês pelo Eurogrupo —formado por ministros das Finanças— no montante de 540 bilhões de euros. Segundo a mídia portuguesa, o programa terá o que denomina “redes de segurança”: uma linha de crédito do Mecanismo Europeu de Estabilidade para despesas direta ou indiretamente relacionadas com a saúde; um fundo de garantia pan-europeu do Banco Europeu de Investimento para empresas em dificuldades; e o programa Sure para salvaguardar postos de trabalho através de esquemas de desemprego temporário. O Conselho encomendou um plano de implementação à Comissão Europeia, órgão executivo da UE, a ser apresentado em 6 de maio.
O fundo deverá ser financiado através de emissão de dívida e estar disponível no segundo semestre. Ainda se discute hipóteses de ser financiado por subvenções, empréstimos, ou uma combinação de ambos. Mas os argumentos mais uma vez evidenciam os limites da solidariedade, inclusive ao se abordar o endividamento individual dos países em dificuldades e as condicionantes da assistência alegando zelar pela responsabilidade fiscal.
É notável o intento da instituição por passar outra imagem ou mitigar algumas necessidades emergenciais sem lidar com problemas estruturais. Por exemplo, lançou-se ainda o temático “Fundo de Solidariedade da UE para a covid-19” a que membros ou países em fase de adesão podem acessar, com condições, e um “pacote de apoio” a países parceiros a partir de recursos já existentes —ou seja, “assistência na orientação” do montante para o enfrentamento à covid-19. A presidenta da Comissão Europeia Ursula von der Leyen afirmou ainda que o bloco se comprometia a apoiar a Organização Mundial da Saúde (OMS) na promoção da campanha por mais fundos. Na busca por apresentar uma ação comunitária e solidária, a “abordagem” foi denominada “Time Europa”.
Entretanto, continua exposta a fratura num projeto insustentável nos seus moldes porque sua cola é o neoliberalismo. Para o secretário-geral do Partido Comunista Português, Jerónimo de Sousa, citado pelo diário Público em 28 de abril, as medidas anunciadas pela UE “não visam garantir os direitos dos trabalhadores e dos povos” e ainda “continuarão a aprofundar inaceitáveis assimetrias, desigualdades e relações de dependência”. Já no desenrolar do Brexit, amputação dolorosa que se arrastou desde o referendo de 2016 até 2020, a UE buscava evitar outras fugas movidas inclusive pela mesma conclusão, embora estas sejam posições geralmente abordadas por autodenominados “europeístas” como promovidas por nacionalistas reacionários contrários a qualquer projeto comunitário.
A UE impõe a perda de soberania nacional e é regida pela burocracia, que tem a doença crônica do “déficit democrático”, e sua arquitetura neoliberal só pode garantir a falta de solidariedade. Análise importante das causas estruturais desta que é uma denúncia reiterada pela esquerda aparece no artigo Against Law-Sterity (“Contra a Austeridade do Direito”), de 2018, de Robert Knox, que começa pela evidência da contradição no caso da Grécia, assolada pela crise econômica e pela política de arrocho, ou “austeridade”, imposta pela troika FMI, BCE e Comissão Europeia, e que os cidadãos haviam rejeitado ao eleger o partido Syriza, que a criticava, e ao votar contra a sua implementação, no referendo de 2015, com resultado que acabou sem efeito.
“Numa entrevista de 2015, Jean Claude Juncker, [então] presidente da Comissão Europeia, ao tomar conhecimento da eleição do Syriza na Grécia, afirmou que ‘não pode haver escolha democrática contra tratados europeus.’ […] Aqui Juncker estava explicitamente abordando um elemento implícito do nosso presente neoliberal: a tendência a confiscar decisões políticas e econômicas do até mais escasso controle popular.” O que Knox busca demonstrar é que embora a abordagem tenha ficado clara na imposição das políticas de arrocho em forma de cortes de direitos trabalhistas e sociais à infeliz nação que precisasse de resgate, com ênfase na “necessidade econômica” em detrimento da escolha política —como se tratasse de questão neutral ou tecnocrática, retirando decisões econômicas do controle popular— o que é ainda mais grave é que ao tipo de argumentação patente da burocracia europeia subjaz a primazia da lei, na forma dos tratados europeus. A isto Juncker recorria “para defender a inevitabilidade política da austeridade”.
Esse recurso é comum e traz à luz problemas estruturais: “Embora austeridade seja frequentemente contraposta ao direito —com austeridade vista como marcada pela ‘poda de leis’, ou como violadora de vários direitos sociais— um exame dos últimos 30 anos demonstra que austeridade é, na verdade, um fenômeno profundamente jurídico.” E isso, a que Knox chama “austeridade do direito”, é especialmente evidente na UE, “cuja existência foi associada a uma incorporação do modelo econômico neoliberal”, o que levou à escolha de alguns na esquerda britânica pelo Brexit.
Embora o problema seja reconhecidamente global e não apenas do bloco europeu, no contexto de pandemia, de mais uma crise, à conclusão de que a UE institucionalizou o neoliberalismo somam-se ainda mais evidências principalmente agora que os cidadãos —e também aqueles, imigrantes e refugiados, que os gestores dessa burocracia buscam manter fora do condomínio— têm tempo, na quarentena, para acompanhar o noticiário sobre a pandemia, ou sofrem dos seus efeitos na pele, mal protegidos em seus postos de trabalho ou, no caso de estrangeiros, na precariedade em que aguardam por permissões sobre o seu futuro. A contradição entre neoliberalismo e solidariedade se materializa na UE.
(*) Cientista política e diretora do Cebrapaz