Opinião

Tensões internacionais de hoje revivem controvérsias históricas na esquerda

15/10/2024
FILE PHOTO: Smoke rises following Israeli strikes during an Israeli military operation, amid the ongoing conflict between Israel and Hamas, in Rafah, southern Gaza Strip, June 3, 2024. REUTERS/Muath Al Hams/File Photo

Por José Reinaldo Carvalho (*) – O Irã lançou na terça-feira (1) centenas de mísseis contra o território israelense, visando exclusivamente instalações militares, em resposta às anteriores agressões dos sionistas. No mesmo dia, a direção iraniana deu por terminadas as ações. Em seu incontrolável afã belicista com fins de hegemonia em todo o Oriente Médio, os EUA e Israel prometeram retaliação severa, ameaçando a guerra total contra o país persa e todo o Eixo da Resistência. O presidente Joe Biden e sua candidata à chefia da Casa Branca reafirmaram apoio total a Israel,enquanto porta-vozes do Pentágono anunciaram que a resposta israelense será feita em coordenação com os EUA, que já promoveram aumento de tropas e armamentos para reforçar suas bases militares na região. Ataques israelenses coordenados com os EUA ao país persa podem ser o estopim para uma escalada bélica, porque inevitavelmente provocariam novas ações iranianas e dos aliados do Eixo da Resistência.

Israel ignora as inquietações do mundo e em plena reunião do Conselho de Segurança da ONU afirmou que fará uma retaliação “dolorosa”. Enquanto isso, continua bombardeando a Palestina e o Líbano, cometendo crimes de lesa-humanidade com a matança da população civil. Israel enfrenta crescente isolamento diplomático, com acusações de violar o direito internacional e tensões com a ONU. O Estado genocida converteu-se num pária internacional, fora da lei, violador contumaz do direito internacional e inimigo declarado das próprias Nações Unidas, ao ponto de declarar seu Secretário-Geral “persona non grata”.

Esse cenário reflete uma crescente complexidade geopolítica, em que a luta por influência no Oriente Médio coloca em confronto os Estados Unidos, seu aliado Israel e forças locais da Resistência. Em meio a esse ambiente tenso, há receios de que qualquer ação militar adicional possa desencadear um conflito ainda mais devastador, com consequências imprevisíveis para toda a região.

As forças amantes da paz deploram a guerra e desejam a contenção de todas as partes envolvidas. Mas não se equivocam sobre quem são os seus provocadores. E não desistem do combate a estes, não se confundindo sobre amigos e inimigos. As forças da paz têm convicções sobre a necessidade de constituir uma frente anti-imperialista, visão totalmente oposta à da falsa esquerda, que sonha com uma “frente democrática” com o Partido Democrata estadunidense e os partidos liberais europeus. Às vésperas da eleição presidencial dos EUA, fazem da candidatura de Kamala Harris à chefia do imperialismo ocidental a sua profissão de fé.

A história recente oferece inúmeros exemplos de intervenções ocidentais no Oriente Médio, que são ações hegemônicas. A resposta de setores da esquerda a esses episódios revela antagonismos, com alguns denunciando esses crimes como atos imperialistas, enquanto outros permanecem em silêncio ou até mesmo apoiam a retórica dos executores e mandantes.

Não é de hoje que a falsa esquerda baralha os fatos, tenta provocar confusão e levar os movimentos populares mundo afora a assumir posições políticas funcionais aos interesses das grandes potências.

Em março de 2006, o ex-presidente Iugoslavo Slobodan MIlosevic morreu numa prisão internacional. Uma morte provocada pelas potências da Otan. A falsa esquerda comemorou porque supostamente ele era um “genocida”.

Em dezembro do mesmo ano, sicários a serviço dos EUA assassinaram de forma vil o presidente iraquiano Saddam Hussein. Parte da falsa esquerda silenciou, outra comemorou, pois Saddam foi um “ditador”.

Em outubro de 2011, os EUA e seus aliados da França e outros parceiros da Otan mandaram assassinar o presidente líbio Muamar Kadafi. Quando se confirmou a notícia, a então secretária de Estado saltitou e emitiu com esgares gritos eufóricos. Parte da falsa esquerda a acompanhou.

Em diferentes momentos, Israel assassinou cientistas iranianos ligados às pesquisas de energia nuclear, com o silêncio cúmplice da falsa esquerda, crítica a esse desenvolvimento tecnológico de uma “ditadura teocrática”.

Em 2014, as forças de direita da Ucrânia, mancomunadas com os EUA e a União Europeia, deram um golpe e instalaram um regime fascistizante e genocida, que massacrou as populações do Donbass, solicitou a entrada na Otan e se alistou como procurador de uma confrontação das potências imperialistas ocidentais à Rússia. Mas, segundo a falsa esquerda, é Putin o “autoritário” e o “agressor imperialista”,

Na alvorada de 2020, os EUA assassinaram o general Soleimani, que estava em missão diplomática e não militar no território iraquiano.

Em julho deste ano, Israel assassinou o chefe político do Hamas, Ismail Haniyeh, negociador do cessar-fogo. O crime teve a cumplicidade dos EUA, mas a falsa esquerda invariavelmente dirige críticas a Haniyeh e classifica o Hamas como “terrorista”.

Na semana passada, Israel assassinou o maior líder popular do Líbano, uma das figuras mais importantes da Resistência patriótica em toda a região da Ásia Ocidental. O presidente dos EUA escreveu e publicou uma nota de regozijo com a ação terrorista do seu principal aliado, pontificando que se trata de um “ato de justiça”, afirmação reiterada por seu secretário de Estado, Antony Blinken. Setores da esquerda fazem-lhes coro, desqualificando a vítima, considerando “terrorista” o líder assassinado e reduzindo o Hezbollah à condição de milícia terrorista. O Hezbollah, contudo, é um destacado partido político libanês, com responsabilidades estatais, uma organização social de massas e um exército popular, uma das forças proeminentes do Eixo da Resistência, a única capaz de, mesmo em inferioridade de armas, lutar contra Israel. Não se pode ser anti-imperialista ignorando o papel do Hamas, Hezbollah e Irã. Muitas acusações que a falsa esquerda faz ao Hezbollah e ao seu líder assassinado por Israel poderiam ser deixadas de lado se fossem apenas manifestação de ignorância ou desinformação. Mas como são posições inspiradas nas do Partido Democrata de Biden e Kamala, merecem a mais enérgica condenação. A valorização das forças da Resistência do Oriente Médio não significa que os comunistas tenham com elas identidade ideológica. Mas uma unidade de correntes anti-imperialistas no mundo não pode discriminá-las com os preconceitos ditados pelos EUA, parceiros da Otan e União Europeia.

Na América Latina, além dos crimes imperialistas, como os golpes e intervenções em diferentes países e o bloqueio a Cuba “em nome da democracia”, bordão que ainda ilude muita gente, os EUA estão pressionando para empossar um político fantoche da extrema direita venezuelana, o que pressupõe derrubar o presidente constitucional e legítimo Nicolás Maduro. Parte da falsa esquerda, entretanto, diz que é válida a pressão porque Maduro é “ditador”.

Por muito menos, lá pela primeira metade da segunda década do século passado, Lênin constatou que o oportunismo de direita acarretou a bancarrota da Internacional Socialista. Era uma época em que, malgrado o radicalismo das opiniões polarizadas, estava em curso uma luta de ideias entre setores que, bem ou mal, tinham uma arraigada tradição marxista e de luta pelo socialismo.

Hoje, de tanto ceder ao inimigo dos povos, as falsas esquerdas que defendem as posições aqui citadas reverberam uma orientação política e ideológica cujas matrizes são o partido democrata dos Estados Unidos e os partidos da democracia liberal da União Europeia. São visões e ações não de uma esquerda que faliu, mas de correntes distantes da esquerda consequente desde o nascedouro, sem cultura marxista, sem princípios, afastadas da prática revolucionária, com horizonte estreito e visão limitada apenas em embates eleitorais e institucionais, perdidas no labirinto de lutas que se tornam inócuas por serem fragmentadas. Uma “esquerda” assim é objetivamente funcional à direita, dócil a facções do imperialismo às quais presta serviço como linha auxiliar.

(*) Jornalista, editor do Resistência, membro do Comitê Central e da Comissão Política Nacional do PCdoB, onde coordena a área de Solidariedade e Paz. É presidente do Cebrapaz (Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz)

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