Opinião
Seria Xi Jinping um “marxista ocidental”? Uma resposta ao camarada Elias Jabbour
Por Gabriel Martinez (*) e Guilherme Carvalho (**)
“Segundo a economia política marxista, a propriedade dos meios de produção é o núcleo das relações de produção, e esta determina a natureza fundamental de uma sociedade e a orientação de seu desenvolvimento.”
Xi Jinping, “Abrindo Novas Fronteiras para a Economia Política Marxista na China Contemporânea”, Qiushi Journal, Chinese edition, No. 16, 2020
Recentemente o camarada Elias Jabbour publicou artigo em inglês no portal Geopolitical Economy, onde ele busca criticar determinadas concepções dos chamados “marxistas ocidentais”. A argumentação central do artigo escrito pelo camarada Elias Jabbour visa criticar a tese marxista de que o fator determinante para se analisar o caráter de uma formação econômico social seriam as relações de produção. Segundo ele, acadêmicos ocidentais estariam colocando Marx “de cabeça para baixo” ao, supostamente, analisarem a China a partir das relações de produção.
Antes de mais nada, concordamos com Elias quando este, não apenas nesse artigo, aponta que entre os acadêmicos ocidentais – incluindo aqui muitos pretensos marxistas – existe muita ignorância ao que diz respeito as questões da China. Muitos autores praticamente não conhecem absolutamente nada sobre o país e, não raramente, acabam se somando às campanhas de desinformação promovidas pelo imperialismo contra o grande país asiático. Tal tipo de postura, de fato, deve ser constantemente denunciado e criticado por parte daqueles que possuem compromisso com a defesa da China contra o imperialismo nesta nova quadra histórica. Também é necessário ressaltar que, apesar de reconhecermos que as relações de produção são o fator mais importante na hora de se analisar a natureza de uma determinada formação econômica, obviamente este não é o único fator importante.
Reconhecendo este fato, não podemos deixar de discordar com as teses centrais levantadas por Elias, de modo que, neste artigo, iremos analisar criticamente, do ponto de vista do marxismo-leninismo, os argumentos principais levantados pelo camarada Elias Jabbour e sua interpretação de que, supostamente, a política seria o elemento definidor do caráter de uma determinada formação econômico-social, bem como a sua tendência em negligenciar a importância das relações de produção para a definição de sua natureza. Elias começa o seu artigo argumentando:
“Parece evidente que a política é primordial, e a natureza de uma formação econômico-social deve, portanto, basear-se em quem realmente exerce o poder, e qual a forma histórica da propriedade é qualitativamente dominante.”
Chama atenção que, já nos primeiros momentos do artigo, o camarada Elias Jabbour faz uma afirmação que rompe e se afasta completamente de tudo o que Marx elaborou sobre essa questão;não apenas Marx, mas também Engels, Lenin, Stálin, Mao Tsé-tung e até figuras como Deng Xiaoping, Chen Yun, etc. Claro, o camarada Elias pode argumentar que não adota uma postura dogmatica frente aos postulados e as formulações dos “clássicos”, se dando o direito de criar novas formulações e conclusões, porém é necessário fazermos tal observação, dado o fato de Elias ter escrito seu artigo como forma de polemizar com aqueles que estariam “colocando o marxismo de ponta cabeça“. Na verdade, quando analisamos com atenção os argumentos básicos do marxismo, comporando-os com a afirmação de Elias apresentada acima, somos obrigados a concluir que, infelizmente, quem acaba colocando o marxismo de ponta cabeça, pelo menos neste caso, é o próprio camarada Elias: para o marxismo do camarada Elias, é a superestrutura (política) que acaba possuindo o aspecto dominante e determinante da natureza de uma determinada formação econômica-social.
Neste sentido, as posições de Elias são o completo oposto daquilo que historicamente defendeu, não apenas Marx, mas também muitos outros intelectuais e líderes que seguiram o seu legado. Não queremos encher este artigo com citações, mas vale a pena recordar que o próprio Marx afirmou que, sua investigação, não tem como ponto de partida as relações jurídicas ou as formas de Estado, que estas não podem ser compreendias por si mesmas, mas sim que estão assentadas nas “condições materiais de vida”, de modo que a “anatomia da sociedade civil” deveria ser buscada através da economia política. Daí, Marx concluir:
“O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de guia para meus estudos, pode ser formulado, resumidamente, assim: na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência.” [1]
E, além de Marx, Lenin assim explicou a correlação entre as relações sociais materiais (relações de produção) e o conceito de formação social:
“A analise das relações sociais materiais (ou seja, das que se estabelecem sem passar pela consciência dos homens: ao intercambiar produtos, os homens estabelecem relações de produção (grifo nosso), inclusive sem ter consciência de que existe nela uma relação social de produção) permitiu o ato de observar a repetição e a regularidade e sintetizar os regimes de distintos países em apenas um conceito fundamental de formação social. Esta síntese é a única que fez possível passar da descrição dos fenômenos sociais (e de sua valoração desde um ponto de vista ideal) à sua analise estritamente científica, que destaca, por exemplo, o que diferencia um país capitalista de outro e estuda o que existe de comum em todos eles.” [2]
Dado o acima exposto, somos obrigados a fazer o seguinte questionamento ao camarada Elias: como é possível determinar a natureza de uma formação econômico-social e investigar “qual forma de propriedade é a dominante qualitativamente” sem levar em consideração as relações de produção (as relações de produção possuem como componente decisivo as relações de produção)? Falar em formas de propriedade sem levar em consideração, precisamente, o problema das relações de produção, é cair em completa contradição. É também desconsiderar o fato básico de que o objeto de investigação mais importante da economia política é precisamente as relações de produção.
Entendemos que Elias não está errado em caracterizar a China como um país socialista, e sabemos que essa afirmação também não goza de popularidade entre muitos setores da esquerda ocidental. Porém, acreditamos que seja equivocado desenvolver uma argumentação em defesa da China que ignore a importância que as relações de produção desempenham para a definição do caráter e a natureza de uma determinada formação econômico-social. Ainda mais importante, as opiniões expressas por Elias em seu artigo revelam um certo entendimento metafísico do problema. Elias expressa, muito manifestamente, a tendência de erguer muralhas da China entre os vários conceitos do marxismo, p.ex: formação econômica-social, forças produtivas, relações de produção, seriam, para Elias, conceitos que estariam em oposição uns aos outros, e não conceitos que, apesar de também possuírem os seus conteúdos independentes, ainda assim estão intimamente relacionados. Dessa forma, é impossível tratar o problema das formas de propriedade sem ligá-lo, não apenas com o problema das forças produtivas, mas também com os da relações de produção.
Apesar de aparentemente Elias colocar a “política no centro” – e aí a China poderia ser definida como socialista, pois ela é um país politicamente governada por comunistas, ou por um Partido Comunista – as posições de Elias, na prática, levam à subestimação completa das questões políticas do socialismo, já que essas são determinadas, em última instância, pela base econômica socialista que as originam e a sustentam, ou seja, pelas relações de produção socialista. Fazendo referência mais específica ao problema das reformas econômicas em países socialistas, se estas fazem com que tal país restabeleça gradualmente a propriedade privada dos meios de produção, transformando a esmagadora maioria da força de trabalho em mercadoria, consolidando o predomínio das relações econômicas capitalistas – ou seja, o predomínio qualitativo da propriedade privada capitalista – é evidente que isto pode representar um problema grave no que diz respeito a direção que tal processo de reformas pode estar tomando, de modo que esta é uma questão que deve, necessariamente, ser analisada com a devida atenção e seriedade por todos aqueles que se reivindicam marxistas. Aqui, mesmo a argumentação de que “quantitativamente o setor público é dominante” não ajuda a “salvar” a tese do camarada Elias, já que o domínio qualitativo da propriedade privada pode também se converter em domínio quantitativo. Assim sendo, em uma situação onde tal tendência prevaleça, ainda que tenhamos o “prevalecimento da política“, tal política, em médio e longo prazo, seria a política burguesa. Neste sentido, sem resolver o problema do predomínio qualitativo das relações de produção capitalistas, muito possivelmente, a tendência de restauração completa do capitalismo pode se impor pela própria lógica do desenvolvimento, subvertendo completamente a natureza do sistema socialista. Considerar a “política como primordial” subestimando ou ignorando o papel das relações de produção pavimenta gradualmente a restauração do capitalismo e a destruição da construção socialista.
A base econômica determina em última instância a superestrutura. Para nós não existe nenhuma razão para que esta tese central do marxismo seja descartada. Ela explica muito bem a relação íntima que a política possui com a economia, sendo bastante útil para compreender diversos problemas que se apresentam no processo de construção da economia chinesa. Continuando, depois de polemizar com um economista burguês qualquer, o camarada Elias afirma:
“Os acadêmicos ocidentais freqüentemente analisam o estado, o mercado e as instituições da China, aplicando as chamadas “variantes do capitalismo”, mas ao fazê-lo, eles separam teoria e história, sujeito e objeto – e assim não conseguem superar Kant e chegar a Hegel. Argumentamos que a China desenvolveu uma dinâmica única de acumulação, uma nova formação sócio-econômica, que chamamos de “Nova Economia do Projetamento”. O erro fundamental de muitos acadêmicos ocidentais, mesmo marxistas, é virar a análise de Marx de cabeça para baixo e propor que as relações de produção determinem a natureza de uma formação econômico-social. Seguindo esta lógica, seria possível implementar o socialismo imediatamente após a escravidão. Mas o aprofundamento da divisão social do trabalho não tem nada a ver com o surgimento e desenvolvimento do capitalismo.”
Ainda que, de fato, muitos acadêmicos ocidentais, não raramente, propalam todo tipo de absurdos sobre a China, para nós parece bastante difícil não reconhecer que no país não existe capitalismo. Também não é exatamente uma novidade afirmar que a China constrói uma “nova formação econômico-social”, já que desde a década de 50 a China está engajada em um processo de construção socialista, algo que só foi possível graças a realização da tomada do poder político pelo proletariado e o estabelecimento de um novo tipo de Estado, bem como a consequente transformação socialista do conjunto da economia do país (ou seja, da transformação das relações de produção). Obviamente, após o fim da Revolução Cultural e o início da política de Reforma e Abertura, entendendo que o socialismo que havia sido estabelecido no país ainda estaria em sua “fase primária” (estágio onde, nos mais variados aspectos, a sociedade socialista ainda não é suficientemente desenvolvida), a China gradualmente reestabeleceu formas de propriedade e relações de produção de caráter não-socialista (capitalista), tornando a estrutura da economia mais complexa do que a situação que predominava anteriormente, quando havia apenas basicamente dois setores econômicos socialistas principais: a economia estatal de todo o povo e a economia cooperativa.
Evidentemente, todas as alterações descritas acima ainda não alteraram o fato básico de que, na China, ainda existe um processo de construção de uma nova formação econômica-social, ao mesmo tempo em que existe uma tendência a agudização da luta entre as relações de produção socialista e capitalista, na medida em que as últimas ampliam o seu grau de atuação e influência. Ao investigarmos o capitalismo chinês, mesmo que possamos reconhecer que este possui diferenças importantes se comparado ao tipo de capitalismo que existe na maioria dos países ocidentais, é fato que este não deixa de ser capitalismo. Não apenas ele existe, como também exerce importante influência na China atual. A dinâmica de acumulação do setor capitalista na China, mesmo obedecendo certas leis econômicas específicas – já que ela se desenvolve em um contexto onde ainda existe uma poderosa força reguladora e orientadora do seu desenvolvimento (Partido Comunista) – não deixa de manifestar as mesmas características e contradições da dinâmica de acumulação capitalista em outros países, além de “influenciar o setor socialista da economia e interferir negativamente no funcionamento das leis econômicas do socialismo” [3]
Para Elias, propor que as relações de produção determinam a natureza de uma formação econômica e social, levaria a proposição de que seria possível implementar o socialismo imediatamente depois da escravidão. Ora, aqui Elias parece esquecer que, reconhecer o caráter determinante das relações de produção, não significa necessariamente afirmar que outros fatores não possuem influência alguma, ou que eles devem ser ignorados quando se debate o problema da caracterização da natureza de uma determinada formação econômica-social. As forças produtivas, por exemplo, são o fator mais dinâmico e mais revolucionário para o desenvolvimento da sociedade, formando uma unidade junto às relações de produção. Evidentemente, as relações de produção devem corresponder ao caráter das forças produtivas, sendo um produto de um determinado estágio de desenvolvimento da sociedade. Seria equivocado, portanto, propor que o socialismo pudesse substituir o escravismo, pois o socialismo é precisamente o produto de um determinado estágio do desenvolvimento das forças produtivas, com suas relações de produção correspondentes, da intensificação das contradições entre as forças produtivas e as relações de produção capitalistas. Sobre isto, Marx demonstra claramente como a contradição entre a forças produtivas e as relaçoes de produção são a base da revolução social:
“Esta contradição entre as forças produtivas e a forma de intercâmbio […] ocorreu várias vezes na história até os nossos dias, sem contudo, pôr em perigo o seu fundamento, teve todas as vezes de rebentar em uma revolução, assumindo então ao mesmo tempo, várias formas secundárias, como totalidade de colisões de diferentes classes, como contradição da consciência, luta de ideias, luta política etc.”
Mais adiante, Marx conclui: “Todas as colisões da história tem, pois, segundo a nossa concepção, a sua origem na contradição entre as forças produtivas e a forma de intercâmbio”. [4]
Em sua polêmica, consideramos que faltou ao camarada Elias Jabbour aprofundar melhor qual a relação que ele faz entre reconhecer o papel determinante das relações de produção para a caracterização de uma formação econômico-social implicaria em uma “defesa da implementação do socialismo imediatamente após o escravismo”, já que reconhecer o papel determinante das relações de produção implica, necessariamente, no reconhecimento de que as relações de produção refletem o caráter das forças produtivas.
Não há dúvidas de que para o marxismo, determinada estrutura social e econômica engendra sua própria superestrutura, que se manifesta de diversas maneiras, seja em política, leis, religião, moral, ética e etc. Nesse sentido, a tentativa de Elias de postular de maneira a priori, uma suposta primazia da “Política” não é apenas colocar o “marxismo de cabeça para baixo”, mas também acaba subvertendo sua análise histórica e ignora sua intrincada lógica dialética. Porém, contradizendo aspectos de sua própria argumentação – que sugere que em sociedades atrasadas é impossível passar diretamente ao estabelecimento de relações de produção socialistas -, Elias diz:
“O socialismo é a única forma de organizar uma sociedade a partir do zero, em sociedades que foram completamente destruídas. Um país como a China, em 1949, não tinha sequer divisão social do trabalho, muito menos forças produtivas acumuladas capazes de apoiar novas relações de produção”.
Se o socialismo “é a única forma de organizar uma sociedade a partir do zero“, como é possível fazer isso sem nacionalizar, expropriar e coletivizar os meios de produção da burguesia, do latifúndio e do capital burocrático que vigoravam na China de 1949? Como é possível construir o socialismo sem estabelecer de fato novas relações de produção? Seguindo a lógica do argumento de Elias, construir o socialismo a partir do “zero”, é tão impensável quanto transacionar do escravismo para o socialismo. O fato é que muitos companheiros buscam explicar as reformas que começaram a ser implementadas na China depois de 78, flertando com a ideia de que a China não estaria madura para o socialismo em 1949, como se iniciar a construção socialista a partir da década de 50 tivesse sido um erro de tipo voluntarista. É um tipo de argumento que, guardado as diferenças de tempo, possui semelhança às criticas que mencheviques e revisionistas tipo Kautsky fizeram contra os bolcheviques e a Revolução Russa.
Ao explicarmos o passado da China, e o evidente atraso histórico do tipo de capitalismo existente no país antes da fundação da República Popular, não podemos fazer afirmações que simplificam o problema. Existe uma diferença considerável em afirmar que a economia da China e as suas forças produtivas eram atrasadas e afirmar que “um país como a China, em 1949, não tinha sequer uma divisão social do trabalho, muito menos forças produtivas acumuladas capazes de apoiar novas relações de produção”. Dizer que, na China de 1949, não havia divisão social do trabalho e muito menos forças produtivas acumuladas, é uma afirmação que precisaria ser apoiada em evidências materiais. Embora exista um grande debate sobre a caracterização do capitalismo na China pré-Revolução – que não teremos como abordar em detalhes neste artigo – é possível demonstrar que, de fato, as condições materiais para edificação do socialismo já estavam dadas.
É certo que o capitalismo que existia na China possuía diferenças importantes se comparado com o capitalismo “clássico” dos países avançados do sistema capitalista-imperialista. As relações capitalistas nas colônias, semicolônias e países dependentes e oprimidos pelo imperialismo são marcadamente dominadas pelo controle imperialista. Tal controle determina e deforma o desenvolvimento dos países oprimidos. Nesses países, o controle de grande parte dos meios de produção e dos mercados ficam nas mãos do imperialismo, convertidos em monopólios do capital estrangeiro e, por meio da exploração e da rapinagem da matéria prima e dos recursos locais, extraem altas taxas de mais valia e realizam volumosas remessas de capital. Tal situação, na prática, estanca o desenvolvimento autônomo do país e impõem, no campo, a monocultura e o extrativismo, bem como faz com que a indústria seja controlada pelos monopólios imperialistas ou a figuras locais a este associado.
Na China pré-1949, o que existia era precisamente um capitalismo de tal natureza. Era um capitalismo atrasado, que convivia e se reproduzia tendo como base o feudalismo e o semifeudalismo, porém, ainda assim, era capitalismo. O desenvolvimento das relações de produção capitalistas na China, bem como a existência de setores industriais, permitiu que o proletariado chinês surgisse e se desenvolvesse com bastante vigor – ainda que numericamente menos numeroso do que a vasta massa de camponeses -, tendo logo se convertido na classe dirigente da revolução chinesa. Como afirmou Mao Tsé-tung: “O processo da constituição e desenvolvimento do capitalismo nacional chinês é, simultaneamente, o processo da constituição e desenvolvimento da burguesia e do proletariado chineses.” [4] Tudo isso seria impossível caso não existisse capitalismo ou “forças produtivas capazes de suportar novas relações de produção”. Como explicou Zhou Xincheng, economista marxista chinês, analisando a Rússia antes da Revolução de Outubro (o que vale também para a China):
“Na Rússia czarista, embora o capitalismo não fosse altamente desenvolvido, já havia uma grande indústria de máquinas e um número considerável de trabalhadores industriais. Com base na combinação do marxismo e do movimento operário, surgiu o Partido Comunista, partido político da classe trabalhadora. Assim, deve-se dizer que as condições materiais básicas para o estabelecimento de um sistema socialista já estavam colocadas.” [6]
Ou ainda, como afirmou Deng Xiaoping ao criticar a chamada “teoria vulgar das forças produtivas” que argumentava que a China “não estava madura para o socialismo”:
“Em suas críticas à vulgar teoria de Kautsky sobre as forças produtivas, Lênin disse que os países atrasados também poderiam realizar revoluções socialistas. Nós também somos contrários à teoria vulgar das forças produtivas (…) Naquela época a China já tinha um partido proletário de vanguarda, uma economia capitalista em fase inicial, bem como condições internacionais para que o socialismo pudesse ser levado a cabo em uma China muito subdesenvolvida. Isto é o mesmo que Lenin combatendo a vulgar teoria das forças produtivas”. [7]
Depois da fundação da República Popular da China, em 1949, a transformação socialista dos meios de produção foi levada a cabo tendo como base a lei de que as relações de produção devem corresponder ao caráter das forças produtivas. Com isso, as relações de produção socialistas (ainda que em estado embrionário, não maduras) foram estabelecidas no fundamental e a China se converteu em um país socialista. Sem desconsiderarmos as novas mudanças que ocorreram desde então, o estabelecimento da estrutura de propriedade existente atualmente, que toma o setor estatal como coluna vertebral da sociedade, ao mesmo tempo que permite outras formas de propriedade (propriedade privada capitalista, nacional e estrangeira) existam e se desenvolvam ao mesmo tempo que a economia estatal, não pode ser entendido como um “sinal verde” para que as relações de produção capitalistas suplantem as relações socialistas, não apenas qualitativamente, mas também quantitativamente.
Também não podemos cair no extremo oposto, de tipo “esquerdista”, daqueles que, pelo fato de as relações de produção capitalistas terem um peso enorme no conjunto geral da economia chinesa, passam a considerar a restauração das relações de produção capitalista como um fato consumado. Estes, cometendo o erro oposto das tendências que subestimam o papel das relações de produção, costumam não desenvolver reflexões sobre problemas básicos relacionados a como devem países atrasados construir o socialismo, superando o atraso histórico e o baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas herdados pelo histórico de opressão imperialista. Não percebem, portanto, que existe uma diferença entre fazer uma definição do que é socialismo em termos mais gerais, e como construir o socialismo dentro das condições de um país determinado – o que implica entender a dinâmica, as leis, e a velocidade do avanço da construção socialista nos seus mais variados aspectos. Os “esquerdistas”, ao analisarem a China, costumam subestimar, ou negar completamente, a importância e o papel dominante ainda ocupado pelas empresas estatais chinesas, a sua posição estratégica na regulamentação e controle macroeconômico, o seu controle de recursos abundantes, o seu poderío científico e tecnológico, bem como a capacidade que elas possuem para atuar como salvaguarda da segurança econômica do país, Geralmente, alegam que “economia estatal não necessariamente seria socialismo“. Afirmações de tal tipo, apesar de estarem teoricamente corretas, caso não levem em consideração a situação histórica concreta da China, como país que realizou profundas transformações revolucionárias e estabeleceu um novo tipo de Estado, acabam por colocar os seus defensores, objetivamente, ao lado das forças e grupos mais direitistas dentro da China, que advogam a ideia de que o governo chinês deveria abrir mão da política de tomar a economia estatal como “coluna vertebral“, já que o socialismo, para ser realizado, não exigiria necessariamente a existência de um setor estatal como regulador e orientador geral da economia.
Para finalizarmos nossa polêmica, não podemos deixar de notar que, Elias, contrariando o bê-á-bá do marxismo, afirma que o “aprofundamento da divisão social do trabalho não tem nada a ver com capitalismo”, sendo que, na verdade, a divisão social do trabalho tem tudo a ver com o capitalismo, mais precisamente com o seu surgimento, desenvolvimento e gradual declínio. Evidentemente, no socialismo a divisão social do trabalho adquire uma nova qualidade que corresponde o novo caráter das relações de produção criadas – e talvez o que Elias estivesse querendo criticar fosse a ideia que iguala automaticamente o aprofundamento da divisão social do trabalho ao capitalismo. Estamos de acordo que a divisão social do trabalho, por si só, não é algo capitalista, porém o que se debate na questão da China é a existência do fenômeno do aprofundamento da divisão social do trabalho no contexto do aumento da influência das relações de produção capitalistas. Aqui, novamente, é impossível analisar o problema da divisão do trabalho separado da problemática das relações de produção. Se formos levados a concordar com as argumentações do Elias, e a sua subestimação das relações de produção, chegaríamos inevitavelmente à conclusão de que figuras como Mao Tsé-tung e Xi Jinping seriam “marxistas ocidentais”.
É bem possível que muitos pontos criticados neste artigo, de fato, não reflitam exatamente as ideias desenvolvidas pelo camarada Elias Jabbour em sua já reconhecida obra sobre o estudo do socialismo na China. Pelo fato de o artigo que nos serviu de base para a nossa argumentação critica ser bastante curto, talvez seria mais correto uma análise mais aprofundada das ideias de Elias tendo como base o estudo dos seus livros recém-publicados. É possível que neles, muitas das nossas duvidas já tenham sido previamente esclarecidas, ou que alguns argumentos críticos levantados por nós, já tenham sido devidamente tratados e analisados. De qualquer modo, não podíamos deixar de dar uma pequena contribuição a este debate tão importante. Aproveitamos a ocasião para parabenizar o camarada Elias Jabbour pelas suas recentes publicações e avanços em sua investigação sobre a China.
Notas
[1] Karl Marx, “Prefácio à ‘Contribuição à Crítica da Economia Política’”, Editora Expressão Popular, 2008, pg. 47
[2] V.I.Lenin, Obras Completas – Volume 1: “Quem são os ‘Amigos do Povo’ e como lutam contra os socialdemocratas (resposta aos artigos de Russkoe Bogatstvo contra os marxistas), Editorial Progresso, Moscou, 1981 (Em Espanhol)
[3] Wu Xuangong, “O materialismo histórico e a economia política do socialismo com características chinesas”. Acessado em: https://www.resistencia.cc/o-materialismo-historico-e-a-economia-politica-do-socialismo-com-caracteristicas-chinesas/
[4] Karl Marx e Friedrich Engels, “Feuerbach. Oposição das Concepções Materialista e Idealista (Capítulo Primeiro de A Ideologia Alemã)
[5] Mao Tsé-tung, Obras Escolhidas – Volume II: “A Revolução Chinesa e o Partido Comunista”, Edições em Línguas Estrangeiras, 1975. Acessado em: https://www.marxists.org/portugues/mao/1939/12/revolucao.htm
[6] Zhou Xincheng 周新城, “Shi yue geming de zhenli yong fang guangmang — jinian shi yue geming 100 zhounián” 十月革命的真理永放光芒 —— 纪念十月革命100周年 [A verdade da Revolução de Outubro brilha para sempre: Comemorando o 100º aniversário da Revolução de Outubro]. Acessado em: https://www.hswh.org.cn/wzzx/xxhq/oz/2017-03-21/43232.html
[7] http://cpc.people.com.cn/GB/69112/69113/69710/index.html
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(*) Gabriel Martinez é cientista político , desenvolve estudos de pós-graduação na China
(**) Guilherme Carvalho é bacharel em Filosofia e professor
Leia aqui o artigo de Elias Jabbour