Opinião
Relatório sobre papel do Reino Unido na invasão do Iraque expõe Tony Blair, mas haverá impunidade?
Uma comissão britânica divulgou nesta quarta-feira (06/07) o esperado relatório sobre a participação do Reino Unido e o papel do então primeiro-ministro Tony Blair na invasão do Iraque, em 2003. Com um saldo de devastação e a morte de 100 mil pessoas apenas no primeiro ano, parte dos familiares de 174 soldados britânicos mortos taxaram Blair de “o pior terrorista do mundo”, título que disputa com seu aliado na guerra, o então presidente estadunidense George W. Bush.
Por Moara Crivelente*
O relatório afirma que o premiê Tony Blair aderiu à coalizão invasora sem esgotar as opções diplomáticas pelo suposto desarmamento do Iraque, acusado levianamente de possuir armas de destruição em massa. Nem mesmo diante das evidências em contrário Blair recuou da empreitada, declarando a Bush: “Estarei ao seu lado, haja o que houver”, destaca o diário britânico The Independent.
Ainda no início dos trabalhos da comissão de inquérito – que duraram sete anos, liderados pelo membro do Conselho Privado do Reino, John Chilcot – o diretor-geral do Ministério da Defesa para política de segurança, Jon Day prometeu “proteger os interesses” dos Estados Unidos nas investigações. A promessa foi vazada em 2010 pelo WikiLeaks, que revelou um comunicado de Ellen Tauscher, subsecretária estadunidense para Controle de Armas e Segurança Internacional.
O chamado “Relatório Chilcot” aponta que o desejo de Blair de afagar a relação especial do Reino Unido com os EUA foi “um fator determinante” para a sua decisão de aderir à guerra contra o Iraque, tornando-se cúmplice da narrativa sem fundamentos contra o governo de Saddam Hussein. Ainda em 2009, Chilcot havia dito em uma coletiva de imprensa relatada pelo diário britânico The Guardian que “a relação anglo-americana é uma das partes mais centrais deste inquérito e a forma como foi conduzida é algo sobre o que devemos ter um firme entendimento.”
Para a associação Stop the War – encabeçada até recentemente pelo líder do Partido Trabalhista, Jeremy Corbyn, que votou contra a invasão do Iraque, embora também protestasse contra o governo Saddam – o relatório serviria como uma peça que simularia preocupação pela responsabilidade da liderança britânica na guerra.
O documento pode ser insuficiente – não lida com os crimes cometidos durante a guerra e acompanha o raciocínio de Blair na preocupação com a relação com os EUA – mas, se servirá de mera peça propagandística e de jogada jurídica fica para avaliação futura. Entretanto, suas insuficiências podem destiná-lo à prateleira do esquecimento, algo a ser averiguado nos próximos desdobramentos.
Blair diz estar aliviado pelos resultados das investigações. O ex-premiê disse, segundo o Independent: “O relatório deve encerrar as alegações de má-fé, mentira ou enganação. Quer o povo concorde ou discorde da minha decisão por uma ação militar contra Saddam Hussein, eu a tomei em boa-fé e baseado no que eu acreditava ser do interesse do país.” Os motivos e as consequências da guerra, entretanto, parecem ser meros detalhes, assim como a sua ilegitimidade. O então secretário-geral da ONU Kofi Annan declarou à emissora BBC, em 2004, que a invasão foi ilegal segundo a Carta das Nações Unidas, já que não contou com uma autorização do Conselho de Segurança.
Impunidade à vista?
O relatório acusa Blair de ter tomado uma decisão sobre a invasão com base em informações insuficientes a respeito da posse de armas de destruição em massa pelo presidente iraquiano e de ter optado pela guerra enquanto ainda havia canais diplomáticos a serem explorados. Aliás, o governo de Saddam também já havia afirmado ter destruído suas armas químicas.
Tanto Blair quanto Bush foram alertados para as consequências da invasão, que se evidenciam hoje, após 13 anos de devastação: cerca de 1 milhão de mortes e milhares de refugiados, a turbulência sociopolítica, a disseminação dos grupos terroristas e a fragmentação do Iraque. As estimativas são ainda debatidas devido à dificuldade de averiguação, tamanho o caos no país e a continuidade das mortes com a disseminação do terrorismo, cujas vítimas são ainda mais numerosas do que antes da chamada “guerra contra o terror”, principalmente na região, segundo o Relatório do Índice Global do Terrorismo de 2015.
O Iraque continua sob o jugo estadunidense, cuja ingerência direta determina os rumos políticos e dificulta a reconstrução do país por seu próprio povo, garantindo aos EUA o seu controle. Portanto, as consequências da guerra para a população iraquiana não foram, realmente, uma preocupação para a coalizão invasora.
O diário britânico The Telegraph noticiou no sábado (02/07) que o Tribunal Penal Internacional (TPI) adiantara que não julgará Tony Blair por crimes de guerra. Entretanto, em comunicado divulgado na segunda (04/07), a promotora do TPI, Fatou Bensouda, rechaçou a afirmativa, esclarecendo que seu Escritório ainda conduz um “exame preliminarsobre a situação no Iraque, não uma investigação” – o que significa averiguar se há “bases razoáveis” para a abertura de uma investigação. Ela afirma que o Relatório Chilcot será considerado como parte das diligências na avaliação das acusações de crimes de guerra cometidos pelas tropas britânicas.
Será por isso que as organizações civis notaram a ausência de conclusões sobre a condução da guerra no Relatório Chilcot? Corbyn disse que a invasão do Iraque foi “um ato de agressão militar lançado sob um falso pretexto”, segundo o Independent, mas o apelo pela responsabilização de Blair está nas ruas, com protestos que o taxam de mentiroso.
Ora, o termo “agressão militar” tem seu significado jurídico e é preciso tê-lo em conta. Na resolução que emendará o Estatuto de Roma, constitutivo do TPI, quando houver suficientes ratificações, “crime de agressão significa o planejamento, preparação, iniciação ou execução, por uma pessoa em posição efetiva para exercer o controle sobre ou dirigir a ação política e militar de um Estado, de um ato de agressão que, por seu caráter, gravidade e escala, constitua uma violação clara da Carta das Nações Unidas.” Os atos também são detalhados no documento.
Porque a jurisdição do TPI sobre o crime de agressão militar – diferentemente dos crimes de guerra – ainda não foi ativada, diz o comunicado da promotora Bensouda, “a questão específica sobre a legalidade da decisão de recorrer ao uso da força no Iraque em 2003 – ou em qualquer outro lugar – não se enquadra no mandato legal da Corte e, portanto, não está no escopo do seu exame preliminar”. Aliás, ela lembra que o TPI só pode ser acionado quando um país mostra incapacidade ou indisposição para investigar e julgar perpetradores, do que o relatório e seus desdobramentos podem, eventualmente, ser tidos como sanadores.
Por isso, cabe aos movimentos de oposição à guerra a continuidade da denúncia, firme e contundente. A impunidade da liderança das potências imperialistas, que impõem a guerra e as agressões mundo afora como bem entendem, deve continuar a ser rechaçada, como foi durante a mobilização histórica e massiva contra a invasão do Iraque envolvendo milhões de pessoas em mais de 60 países, em que o Conselho Mundial da Paz participou ativamente.
O TPI também tem seu papel a desempenhar, caso pretenda se livrar da pecha de corte acusadora dos países africanos, cujos líderes, assim como os da antiga Iugoslávia, são os únicos a se sentar no banco dos réus. A guerra tem custos inestimáveis e é preciso responsabilizar seus promotores.
*Moara Crivelente é doutoranda em Política Internacional e Resolução de Conflitos, jornalista e membro do Cebrapaz, assessorando a Presidência do Conselho Mundial da Paz
Fonte: Cebrapaz