Opinião
Reino Unido: O segundo maior comerciante de armas do mundo e os crimes de guerra no Iêmen
Desde o início da ofensiva militar liderada pela Arábia Saudita contra o Iêmen, em março de 2015, quase quatro mil civis iemenitas foram mortos. Em um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), divulgado no final de agosto de 2016, os números dão espaço às denúncias de crimes de guerra. Mesmo assim, no início de 2016, o Reino Unido já contabilizava um aumento de 100 vezes na venda de armas à Arábia Saudita.
Por Moara Crivelente*
Em três meses, em 2015, as vendas de bombas e mísseis britânicos para o regime saudita passaram de nove milhões de libras (R$ 39 milhões, na conversão atual) para mais de um bilhão de libras (R$ 4,27 bilhões), segundo dados do governo citados pelo diário britânico The Independent em janeiro de 2016. Sete meses depois, a ONU relatou que, das 3.799 mortes de civis no Iêmen, cerca de 60% foram causadas pela coalizão liderada pela Arábia Saudita, composta pelos Emirados Árabes Unidos, que se retiraram em junho de 2016, pelo Barein, Kuwait, Catar, Jordânia, Egito, Marrocos, Senegal e Sudão, e respaldada pelos EUA, Reino Unido, França, Canadá, Turquia, Djibuti e Somália com apoio logístico, armamentos, bloqueio e inteligência.
Advogados da Campanha Contra o Comércio de Armas (CAAT, na sigla em inglês) informaram ao governo britânico que sua conduta viola leis nacionais, europeias e internacionais. O governo recusa-se a suspender a licença para a venda de armas e equipamentos militares a regimes autocráticos engajados na matança de civis, caso do saudita. Os advogados, segundo o Independent, afirmam que o governo britânico tem conhecimento sobre o uso das armas “em ataques dirigidos contra pessoas e objetos civis, em violação do direito internacional.”
O Conselho da União Europeia, por exemplo, estabeleceu uma Posição Comum determinando que os países devem “exercer cautela especial e precaução ao emitir licenças”, principalmente a “países onde sérias violações dos direitos humanos tenham sido estabelecidas.” Entretanto, compromissos como este só são efetivos quando se trata de acossar países cujos governos ousam contestar a hegemonia da Europa e dos EUA, contrariando suas agendas geoestratégicas. Aos aliados, a complacência – ou cumplicidade. O governo Conservador, ressalta o Independent,emitiu licenças para £ 5,6 bilhões (R$ 24 bilhões) em vendas de armas, caças de combate e outros equipamentos militares para a Arábia Saudita desde 2010.
O Reino Unido e os Estados Unidos, respaldando a coalizão liderada pela Arábia Saudita, também são responsáveis por aparentes crimes de guerra no Iêmen, para não mencionar os outros países em que atuam, causando devastação. É o caso do Iraque, por exemplo, esmiuçado no recente relatório que expõe o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair e sua cumplicidade com o ex-presidente estadunidense George W. Bush.
Em 15 de agosto de 2016, 11 pessoas foram mortas e 19 ficaram feridas quando um ataque aéreo da coalização atingiu um hospital gerido pela ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF) – cujo funcionário também morreu, no Iêmen. O MSF relatou ao britânico The Guardian que aquele havia sido o quarto ataque contra uma de suas instalações em menos de 12 meses.
As consequências são evidentes no vídeo em que um homem denuncia a ação e explica que no local só havia civis inocentes, pacientes e médicos, tendo como pano de fundo os destroços do hospital e uma cratera na rua. Na semana anterior, outros ataques atingiram uma fábrica de alimentos na capital, Sanaa, matando 14 pessoas, e uma escola em Haydan, no noroeste do Iêmen, onde 10 crianças foram mortas, segundo o Guardian.
Uma liderança do grupo Houthi que a coalizão combate – para estabelecer um governo sunita e aliado no Iêmen, sempre apostando na manipulação de divisões supostamente sectárias para fins políticos –, Abdel Malek al-Houthi acusa os Estados Unidos de prover apoio amplo aos bombardeios. Al-Houthi reiterou que seu grupo está pronto para uma solução política para um conflito em que cerca de 10 mil pessoas já morreram – mais de mil delas, crianças, segundo a ONU, citada pelo Guardian.
Entretanto, a diplomacia não alimenta a indústria de armamentos nem parece corresponder às ambições estratégicas da liderança saudita, estadunidense ou britânica. Os diálogos promovidos pela ONU colapsaram em agosto. A Arábia Saudita, enfatizou Al-Houthi, joga com o conflito no Iêmen como se tratasse de um xadrez com o Irã, apoiando o governo de Abd Rabbu Mansour Hadi, no exílio em Riad, como uma tática para afastar a influência persa da região.
Do outro lado da moeda está a recente “conquista” britânica do segundo lugar, atrás apenas dos EUA, na venda mundial de armamentos. A maior companhia bélica do Reino Unido, a BAE Systems, é a terceira maior vendedora de armas do mundo, de acordo com o Instituto Internacional de Estocolmo de Pesquisa para a Paz (Sipri, na sigla em inglês). A empresa alcançou mais de US$ 25,7 bilhões (R$ 80 bilhões) em vendas em 2014 e seu relatório de 2015, dirigido aos investidores, prometem grandes lucros para 2016, com um aumento de 5 a 10% em relação ao ano anterior.
Os EUA foram, de longe, os maiores exportadores de equipamentos militares entre 2011 e 2015, com 33% do “mercado global” – alcançando um aumento de 27% naquele período. O Reino Unido é o sexto maior exportador de equipamentos, com 4,5% do “mercado global” – um aumento de 26% nos últimos cinco anos. A Arábia Saudita é o maior consumidor, sobretudo na compra de aeronaves, enquanto a Índia é a maior importadora de armas. Estes dados também são do Sipri.
Não é à toa que a militarização do planeta e o aplastador papel do complexo militar-industrial sejam constantemente apontados entre os principais propulsores da guerra. Na denúncia das agressões imperialistas e dos cálculos geoestratégicos que as formulam, expor o lugar de cada um no “mercado global” da morte é fundamental.
* Moara Crivelente é doutoranda em Política Internacional e Resolução dos Conflitos, membro do Cebrapaz e assessora da Presdiência do Conselho Mundial da Paz
Fonte: Cebrapaz