Opinião
Queimem os livros!
Manuel Domingos Neto (*)
Os quartéis escutaram a Ordem do Dia do comandante: “As Forças Armadas participam da história de nossa gente, sempre alinhadas com as suas legítimas aspirações”.
Participam, sim, da história. Mas, “alinhadas”, General?
Foi legítima vontade de nossa gente pagar mercenários para compor e comandar Forças Armadas que assegurassem o Estado Imperial escravocrata e etnocida sob o talante da dinastia portuguesa?
Nossa gente não queria servir ao Exército nem a Marinha. As tropas eram compostas por europeus famintos e homens do interior recrutados “no laço”, perseguidos por potentados locais. Ou por assaltantes retirados da cadeia! Ou ainda por desocupados urbanos sem proteção!
Caxias tentou implantar o serviço militar obrigatório. Não conseguiu. Era humilhante servir como praça por conta dos castigos corporais, dos vexames cotidianos e da boia intragável!
Entre tantos testemunhos, o general Demerval Peixoto relata a aplicação, em pleno período republicano, do Código Disciplinar estabelecido desde o tempo colonial pelo mercenário prussiano Conde de Eschaumburgo (conhecido como Conde de Lipe).
Um soldado que tomara um porre na noite anterior sangrou abundantemente com infindáveis açoites diante da tropa imóvel. Depois, foi coberto de salmoura.
O Exército não perdeu para a Marinha na humilhação dos filhos do povo.
Apenas em 1916 a lei do serviço obrigatório universal começou a vingar. Militares europeus ensinaram aos oficiais brasileiros que, sem reconhecer a humanidade em homens negros e em gente do povo, o Brasil não teria aparelho militar moderno.
Foi preciso a ajuda do parnasiano Bilac para a paulatina aceitação da obrigatoriedade do serviço militar.
Durante a maior parte de suas existências, as tropas não foram compostas por cidadãos, mas por homens sem direitos.
Ainda hoje “nossa gente” resiste ao serviço militar. Prova disso é a insistente propaganda na TV lembrando a obrigação prevista em lei.
Apenas jovens pobres, sem perspectiva de freqüentar faculdade, conseguir emprego e passar em concursos prestam serviço como praças. Descendem de escravos, índios e, como se dizia no tempo colonial, “homens livres” despossuídos. Filhos da classe média não sentam praça.
O tempo corre, as fileiras não se alinham à sociedade. As fileiras parecem muito acima da sociedade.
Quem diz isso não são comunistas, mas oficiais cujos livros e artigos estão disponíveis nas bibliotecas das escolas militares onde o general estudou.
Foi “legítima aspiração de nossa gente” matar e morrer em defesa de limites territoriais na Cisplatina? Ora, em São Paulo, Minas, Paraíba, Bahia, Maranhão, ninguém sabia que lugar era esse.
Brasileiros apresentaram-se voluntariamente para dizimar paraguaios?
Um século e meio depois da grande chacina ainda ecoa o dito popular quando alguém é obrigado a fazer o que não quer: vai como quem vai à Guerra do Paraguai!
Nossa gente quis terra, liberdade, trabalho remunerado e respeito. Quis a morte dos valentes balaios e farroupilhas?
Ficou alegre quando o Exército trucidou dez mil trabalhadores rurais em Canudos, a segunda maior aglomeração humana da Bahia? Sorriu com a degola de esfarrapados e esfarrapadas que acreditaram no Conselheiro?
Festejou com os sertanejos adentrando à civilização “à pranchadas” (lembrando Euclides da Cunha)?
No Brasil, a aviação militar estreou jogando bombas contra o povo humilde da divisa entre o Paraná e Santa Catarina. Felizmente, por incompetência, errou o alvo.
Era desejo de nossa gente comprar na Europa aviões caríssimos para aterrorizar o povo do Contestado?
Cearenses se alegraram com o massacre do Caldeirão?
Nossa gente gostou das brutalidades do Estado Novo?
Igrejas, colégios, sindicatos agradeceram a entrega de Olga Benário aos operadores da câmara de gás dos nazistas?
Academias e universidades renderam homenagens à ditadura com a prisão de Graciliano?
Nossa gente ficou enternecida quando a República do Galeão e o “Manifesto dos Generais” impuseram a renúncia de Vargas em 1954? Ou ficou destrambelhada quando o presidente deu um tiro no peito?
O povo estava de um lado; as Forças Armadas, de outro…
Se nossa gente aspirava o golpe militar em 1964, qual a necessidade de apoio da esquadra dos Estados Unidos? Ou a vontade do governo estadunidense confunde-se com a de nossa gente?
Se os brasileiros estavam irmanados no golpe, porque John Kennedy, Lyndon Johnson, Wernon Walters e agentes da CIA perderam seu tempo e dinheiro financiando movimentos pró-golpe?
Nossa gente soltou fogos ou foi aterrorizada diante das cassações, prisões, torturas e execuções da ditadura implantada em 1964?
Eu tinha 14 anos nessa época e no colégio em que estudava riscávamos na parede “abaixo a ditadura”.
Um dia, um bedel me flagrou e o diretor, obediente às ordens militares, disse ao meu pai que eu não poderia mais estudar no Liceu do Ceará, um colégio publico. Os colegas do grêmio diziam: “arre égua!”. A molecada não fazia parte de “nossa gente”…
Ao singrar o mar caribenho para submeter-se ao comando dos Estados Unidos e participar da invasão da República Dominicana, em 1965, os militares brasileiros atendiam à legítima aspiração do povo brasileiro?
Nossa gente queria mesmo impor um novo ditador em Santo Domingo?
Quantos brasileiros se alegraram com os assassinatos de Herzog, Fiel Filho, Grabois, Pomar, Inês, Bergson, Helenira… ?
Era legítima aspiração de nossa gente ver esse pessoal executado? Se era, porque esconderam corpos, circunstâncias e gloriosos autores destas façanhas?
Nosso povo queria meus tímpanos estourados de pancadas, meus rins esbagaçados e minha expulsão da universidade? Vendado, ainda hoje desconheço os filhos da pátria que heroicamente me bateram.
Nossa gente queria ver fora do solo pátrio Celso Furtado, Leite Lopes, Josué de Castro, Brizola, Arraes, Luís Hidelbrando, Jango, Prestes, Diógenes Arruda, Renato Rabelo, Amazonas, Chico Buarque, Caetano, Gil…?
Foi vontade legítima de nossa gente censurar artistas e jornalistas, fechar sindicatos, invadir conventos, jogar bombas em anfiteatros?
Foi também legitima aspiração de nossa gente entregar ponderável parcela da Amazônia ao milionário estadunidense Daniel Ludwig? O velho megalomaníaco ficou agradecido às Forças Armadas pela chance de deslumbrar o mundo!
Por que lembro tudo isso agora?
Acho que cumpro ordens do Presidente. Primeiro, ele disse para “comemorar” o glorioso 31 de março. Depois, com medo da Justiça, falou que era só para “relembrar”.
Relembremos!
Outra opção seria queimar livros e registros documentais.
O Presidente poderia começar tocando fogo nas bibliotecas da ESG, EGN, UNIFA, ECEME…
Depois, chamasse a imprensa do mundo para assistir o grande incêndio da Biblioteca Nacional e do Arquivo Nacional, repletas de papéis escritos por comunistas maldosos!
(*) Doutor em História