Opinião
O polimento da tragédia Obama
Recordemos palavras de Barack Obama no seu último discurso sobre o Estado da União: “A América é a nação mais forte da Terra. As nossas despesas militares são superiores às despesas conjuntas das oito nações que nos seguem. As nossas tropas formam a melhor força combatente da história do mundo”.
Por José Goulão*
Poderia chamar-lhe o discurso do imperador, mas não façamos disso um cavalo de batalha quando há tanta gente empenhada em descobrir um Obama que não existiu, como forma de esconjurar os legítimos receios com a entrada na Casa Branca de um sujeito como Trump.
Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Obama não é melhor presidente do que alguma vez foi porque Donald Trump escancarou as portas da mansão presidencial como as de um saloon, semeou dourados pela decoração e pôs as botifarras (botas, NR) em cima da mesa oval para assinar a sentença de morte do “Obamacare” e ditar que, para ele, o comércio livre é outra coisa.
Poucos dias antes de pronunciar as citadas palavras imperiais, o então ainda presidente Obama anunciara que o mais recente pacote de despesas militares inclui novos poderes para as 17 agências federais de espionagem, de modo a “contrariar a desinformação e propaganda”, alegadamente fomentadas por outras potências; desse esforço, 17 mil milhões de dólares são dedicados à cibersegurança, isto é, à espionagem informática universal – as lendas sobre o papel da Rússia na eleição de Trump serviram assim de pretexto mais atual, como fato feito por medida.
Expansão militar universal, mentira e propaganda foram, portanto, as derradeiras mensagens deixadas pelo presidente Obama, o que torna ainda mais surpreendente o escândalo de tantas boas almas mainstream com a capacidade de Trump para entrar em funções logo a mentir descaradamente. Não descobriram ainda que a mentira é um comportamento inerente ao cargo de presidente dos Estados Unidos da América (e de outros, claro)? Um mentiroso pode ser mais ou menos boçal, mas não deixa de mentir.
Por isso, antes de nos dedicarmos a Donald Trump – infelizmente razões não faltarão nos tempos que aí vêm – passemos uma sintética vista de olhos sobre o testamento político de Obama, esse sui generis Nobel da Paz, quanto mais não seja como antídoto perante a campanha de mistificação e de polimento dos seus catastróficos mandatos.
É sintomático que venha imediatamente à superfície uma única realização quando pretendem passar-se em revista as supostas preocupações “sociais” da gestão Obama/Hillary Clinton/John Kerry: “Obamacare”. Além de não ser, no final, nada daquilo que esteve para ser no início, a suposta reforma do sistema de saúde em benefício dos mais desfavorecidos foi, essencialmente, um bônus para as companhias seguradoras e para o totalitário sistema privado de saúde à custa dos contribuintes – incluindo os mais desfavorecidos – e dos cofres públicos federais.
É relevante notar que enquanto tratava assim, e mal, da saúde dos seus compatriotas, Barack Obama e a sua administração tornavam-se responsáveis por massacres massivos de seres humanos em todo o mundo, que não andarão muito longe de um milhão de vítimas.
Às guerras do Afeganistão e do Iraque – com que não acabou, antes alimentou – somam-se a destruição terrorista da Líbia, a catástrofe humanitária gerada na Síria, a tragédia no Iêmen, os golpes e contragolpes no Egito, as fraudes da suposta guerra contra o terrorismo, incluindo comprovados patrocínios da atividade de grupos de mercenários como a al-Qaeda e o Daesh, a realização do golpe fascista na Ucrânia e da sequente guerra civil, o estabelecimento do recorde de execuções extra judiciais através de drones e outros métodos de liquidação.
Sem esquecer o constante apoio à transformação de Israel num Estado confessional e fascista que tornou de fato impraticável a tão falada “solução de dois Estados” na Palestina; ou a manutenção da vergonha torcionária de Guantânamo, enquanto dava passos em direção a um aparente fim do bloqueio a Cuba – que, afinal, se mantém inquebrável.
A tão recente e celebrada abstenção norte-americana permitindo ao Conselho de Segurança da ONU aprovar uma moção condenando o colonialismo israelita não passa de uma manobra cínica e hipócrita. Se Obama tivesse tomado a mesma atitude há oito anos, talvez ainda houvesse margem de pressão internacional susceptível de forçar o fascismo sionista a corrigir o rumo. Mas Barack Obama, quando teve poder real, alinhou sempre, em última análise, no jogo anexionista de Israel; agora, conhecendo o que vai ser a prática de Trump nessa matéria, o gesto é inconsequente, apenas destinado a entrar na História sem fazer História.
Sob a gestão de Barack Obama, o número de países onde as forças especiais dos Estados Unidos fazem guerra passou de 75 para 135. Há meia dúzia de dias, tanques de última geração, mísseis de cruzeiro de longo alcance preparados para transportar ogivas nucleares e uns milhares de soldados norte-americanos foram instalados em nova base militar na Polónia.
A produção e o tráfico de heroína atingiram novos máximos nos últimos anos, graças às condições extremamente favoráveis criadas no Afeganistão e no Kosovo, territórios onde se vive sob a bandeira tutelar da NATO.
E o insuspeito The New York Times revelou que grupos como a al-Qaeda e o Daesh foram financiados em milhares de milhões de dólares pelas petroditaduras do Golfo, fortunas essas canalizadas através de uma rede internacional gerida pela CIA.
Expansão, mentira e terror são pilares de qualquer doutrina econômica e financeira fascista; pilares esses em que a administração Obama se apoiou sem reservas. Por isso, é injusto acusar Donald Trump de a eles recorrer como se fossem coisas inerentes a um tipo de gestão pessoal e exclusivo.
Democrata ou republicano, neoliberal ou ultranacionalista, deixemos os rótulos de lado. À primeira vista estamos perante duas abordagens diferentes da gestão presidencial, mas não apostemos em qualquer engano do establishment. Obama e Trump: cada um chegou em seu tempo e em determinadas circunstâncias para defender os mesmos interesses.
Podemos estar, porém, perante a explosão de grandes contradições associáveis a um capitalismo mergulhado numa crise a que nem sequer tem valido a fé inabalável no autocontrole do mercado e na teoria dos ciclos sucessivos. O neoliberalismo puro e duro, assente na globalização, terá atingido os seus limites? Serão necessárias outras receitas, velhas ou renovadas?
Temos pela frente a procura de respostas e a definição de ações perante um novo cenário – mas que não sejam inconsequentes ou folclóricas. Para trás ficou Obama, no cumprimento da sua missão, tão hipócrita como sinistra e sangrenta, na “defesa da democracia”. Não será a truculência de Trump – óbvia mas de consequências imprevisíveis – que fará do antecessor um presidente menos péssimo e nefasto do que foi.
* Jornalista português. Iniciou a atividade em A Capital, em 1974, e trabalhou em O Diário, no Semanário Econômico e na revista Vida Mundial, de cuja última série foi diretor.Foi também diretor de comunicação do Sporting Clube de Portugal. Fez carreira na área de Política internacional , especialmente nas questões do Oriente Médio, sendo os seus comentários nesta matéria frequentemente requisitados por diversos órgãos de comunicação social , como a TSF e o Canal 2: da RTP
Fonte: AbrilAbril