Opinião
O mito da ditadura na China
Em recente entrevista ao jornal Folha de São Paulo, o técnico Felipão foi confrontado com a pergunta de como ele era afetado por viver em um país autoritário e comunista. A resposta de Scolari não poderia ser mais apropriada: “Vive-se lá como em uma democracia.”
Por Gaio Doria*
Um episódio semelhante ocorreu em 2010, quando a apresentadora Ana Maria Braga, em seu programa de TV, perguntou ao jogador Dejan Petkovic “Como foi nascer num país com tantas dificuldades?”. Petkovic respondeu: “Quando eu nasci não tinha dificuldade nenhuma. Era um país-maravilha, vivíamos num regime socialista, todo mundo bem, todo mundo trabalhando, tinham salário. Os problemas aconteceram depois dos anos 1980”. A câmera corta rapidamente para Ana Maria Braga, cujo semblante é de profunda confusão diante da inesperada declaração de apoio ao socialismo, realizada em cadeia nacional e ao vivo por um famoso jogador de futebol.
Acontecimentos como estes, apesar de raros, demonstram o baixo nível da grande mídia e sua forte bagagem ideológica, sempre comprometida em detonar as ideias de esquerda, em especial o socialismo científico. Contudo, podemos tirar uma lição importante desta prática, o ideal socialista é vítima de diversas mentiras e injúrias, orquestradas de modo sistemático e deliberado para esconder a realidade de países como a China e destruir o legado histórico das experiências socialistas do século 20.
É por isso que Felipe Scolari ao ser questionado sobre sua liberdade na China explica que em nada difere da percepção que se tem no Brasil, há apenas regras diferentes. Na verdade, no país comunista é difícil notar a mão repressiva do estado no cotidiano. Não há policiamento ostensivo nas ruas e os policiais não andam armados. A polícia chinesa tampouco é famosa por práticas ilegais e assassinatos de cidadãos desfavorecidos. Por sua vez, o exército declara sua lealdade incondicional ao Partido e só vai às ruas em momentos de extrema necessidade, sem jamais ameaçar a ordem constitucional estabelecida pelo sistema socialista. Na internet e no dia a dia, há liberdade de expressão para quase todos os assuntos. As grandes cidades chinesas possuem baixíssimo índice de criminalidade, um cidadão pode ir e vir, na hora que for, portando o que for, sem qualquer preocupação com sua segurança pessoal.
Não obstante as observações acima, para compreender as nuances do caso chinês, precisamos ir além da compreensão dos elementos básicos do socialismo científico e entender também as diferenças entre o pensamento chinês e ocidental. Afinal tratam-se de duas formações sociais distintas.
Os conceitos de democracia e liberdade da sociedade ocidental se desenvolveram principalmente das revoluções burguesas da idade moderna, em especial a Revolução Francesa. Estas marcaram profundamente o pensamento ocidental e fundamentam a atual cultura política. Consagrou-se a ideia de que a legitimidade de um governo e o seu direito de representar um povo advém da escolha de seus representantes pelo povo. A contrapartida esperada é que os tais representantes eleitos pelo povo, uma vez empossados no governo, tenham sabedoria e honestidade para agirem apenas em prol do povo e não de si próprios.
Essas joias do pensamento burguês ocidental na teoria parecem perfeitas, mas na prática a realidade é outra. Não é coincidência que a crise sistêmica do capitalismo de 2008 trouxe em seu bojo uma crise generalizada da democracia burguesa, manifesta nas profundas crises institucionais atravessadas pelas “democracias avançadas”. Desta forma, é seguro afirmar que as contradições cada vez crescentes entre capitalismo e democracia rumam inevitavelmente em direção a um ponto de ruptura. Tendência esta, claramente expressa nas vicissitudes políticas recentes no Brasil, onde para além do processo golpista, o sistema político brasileiro encontra-se em uma profunda crise de legitimidade, incapaz de dar voz e responder aos anseios da esmagadora maioria do povo. Evidente que este debate jamais aparecerá nos folhetins da mídia burguesa e nos principais círculos acadêmicos. A problemática, no entanto, não é original. Lênin já havia advertido:
“A sociedade capitalista, considerada nas suas mais favoráveis condições de desenvolvimento, oferece-nos uma democracia mais ou menos completa na República democrática. Mas, essa democracia é sempre comprimida no quadro estreito da exploração capitalista; no fundo, ela não passa nunca da democracia de uma minoria, das classes possuidoras, dos ricos. A liberdade na sociedade capitalista continua sempre a ser, mais ou menos, o que foi nas Repúblicas da Grécia antiga: uma liberdade de senhores fundada na escravidão. Os escravos assalariados de hoje, em consequência da exploração capitalista, vivem por tal forma acabrunhados pelas necessidades e pela miséria, que nem tempo têm para se ocupar de “democracia” ou de “política”; no curso normal e pacífico das coisas, a maioria da população se encontra afastada da vida política e social.”
Além do caráter incompleto da democracia burguesa, grandes teóricos da academia ocidental, como Robert Dahl , já assumiram a hipótese de que a democracia pode assumir diversas formas e desenvolver-se de maneira diferente.
No caso da China, a democracia chinesa, resultante do sistema político chinês, é uma mistura dos princípios do socialismo científico estabelecidos e do pensamento chinês, fruto de sua formação social peculiar.
Presumir que na China a democracia deve ser uma cópia do modelo ocidental é um enfoque errôneo, pois desconsidera que a China evoluiu através dos milênios de maneira distinta ao mundo ocidental.
Desconsidera os avanços gigantescos obtidos pela Revolução Chinesa não apenas dentro da perspectiva da longa história da China, como também em comparação com o resto do mundo.
Além disso, a questão de como um povo deve ser governado corretamente foi sempre uma questão de interesse para todas as civilizações, incluindo a chinesa.
Pensadores chineses antigos e modernos debruçaram-se sobre este tema. Por possuir sua própria cultura política, o gigante asiático gerou todo um arranjo conceitual diferente do qual os ocidentais estão acostumados a lidar.
Na perspectiva chinesa atual, desde que a China começou a adotar a política de Reforma e Abertura para o exterior, o Partido Comunista da China, cuja teoria base é a combinação das teses básicas do marxismo com as condições da realidade nacional e as características do contexto atual, logrou em fazer uma análise geral e um balanço cientifico sobre as experiências e lições da construção socialista na China; também retirou valiosas lições da ascensão e decadência dos demais países socialistas; dos sucessos e fracassos de países em desenvolvimento na busca do progresso e das tendências de crescimento nos países desenvolvidos e das dificuldades que se depararam.
No espectro da política, após todo o acúmulo das experiências descritas e adoção de diversas influências teóricas, os chineses definem seu sistema político como uma espécie de democracia consultiva. No jargão oficial:
“O exercício dos direitos por parte do povo mediante eleição e votação (democracia eletiva) e a consulta profunda entre os diversos setores do povo antes da elaboração de importantes políticas (democracia consultiva) constituem duas importantes formas de democracia socialista da China para alcançar uma unanimidade em questões comuns. A democracia consultiva é uma iniciativa criada pelo PCCh e pelo povo chinês na sua democracia socialista, correspondendo à realidade chinesa atual e à tradição da cultura política do país. Este tipo de democracia não só dá importância ao resultado da decisão, mas também à participação abrangente durante o seu processo de determinação; não só respeita as opiniões da maioria das pessoas, mas também protege o direito de expressão da minoria, de forma a expandir no máximo a realização da democracia. A China promoverá o desenvolvimento sistemático da democracia consultiva em diferentes níveis, incluindo as consultas nas áreas legislativa, administrativa, democrática, política e social.”
Embora o debate sobre a democracia na China seja extenso, envolto em polêmicas e distorções, não é possível recairmos no erro de conceituar tudo aquilo que destoa do cânone burguês ocidental como ditadura, especialmente se o diferente for comunista.
Como observado, os próprios chineses não clamam possuir a democracia perfeita. Reconhecem seu estágio embrionário e traçam planos para o seu desenvolvimento.
Por fim, cabe argumentar que somente o estudo sistemático do caso chinês, livre dos preconceitos típicos da guerra fria, cujo emblema principal é o anticomunismo, pode oferecer uma compreensão acurada da realidade chinesa. Desta forma, impedindo a reprodução deste tipo de visão enviesada e preconceituosa sobre o país asiático.
* Mestre em economia pela Universidade do Povo da China onde atualmente faz o doutorado em Filosofia Marxista; militante do PCdoB, colaborador da Comissão de Política e Relações Internacionais e do site Resistência e colunista do Portal Vermelho.
Fonte: Portal Vermelho