Colonialismo
“Nosso direito à autodeterminação é irrenunciável”, diz diplomata saráui
A missão da ONU no Saara Ocidental está na agenda do Conselho de Segurança desta quinta-feira (27). Os saráuis demandam proteção dos seus direitos humanos, mas a principal questão é: por quantas décadas têm de esperar pela autodeterminação? A Frente Polisario, representante do povo saráui, denuncia a aliança da França ao Marrocos como uma das garantias de que a resposta seja indefinida. O seu representante no Brasil, Mohamed Zrug, fala de expectativas.
Por Moara Crivelente*
A Missão das Nações Unidas para o Referendo no Saara Ocidental (Minurso) foi estabelecida em 1991 pela resolução 690 do Conselho de Segurança, com base em um acordo-quadro de 1988 entre a Frente Polisario e o Reino do Marrocos, com um cessar-fogo para suspender a luta armada.
A resistência saráui, primeiro contra o colonialismo espanhol e, desde 1976, contra a ocupação marroquina, não se desmobilizou, mas se mostrou comprometida com o acordo e a promessa de autodeterminação até hoje não cumprida. “O Marrocos desafia permanentemente a autoridade da Minurso, que se tornou uma espécie de fantoche a serviço de uma potência ocupante”, diz o representante da Frente Polisario no Brasil, Mohamed Zrug.
A principal função no mandato da Minurso é estabelecer as condições necessárias para um referendo – por exemplo, realizando um censo – enquanto monitora o cumprimento do cessar-fogo. Não tem em seus afazeres, porém, qualquer função de observação ou proteção dos direitos humanos dos saráuis, que têm dois terços do seu território ainda ocupados pelo Marrocos e denunciam violações sistemáticas como parte do seu cotidiano.
O outro terço do território foi liberado pela resistência saráui, mas para separá-lo do restante, desde 1982, o reino marroquino construiu um muro de 2.700 quilômetros de extensão, composto por bases militares, milhares de soldados e aproximadamente sete milhões de minas anti-pessoais e anti-tanques ao longo da estrutura, também esparramadas por parte da área liberada.
Sem uma competência específica para os direitos humanos, continua Mohamed Zrug, a Minurso “contribui para a continuidade da sua grave violação, e praticamente foi eliminada, quando, em março de 2016, o Marrocos expulsou 85 dos seus escassos 236 efetivos. Ato que o Conselho sequer condenou quando se reuniu dias depois, em abril de 2016, devido às ameaças de veto por parte da França, limitando-se a pedir o regresso dos membros expulsos em um prazo não superior a 90 dias.”
Marrocos não só descumpriu este prazo, afirma o diplomata – citando o relatório recém publicado pelo Secretário Geral das Nações Unidas, António Guterres (abaixo) – “como sentiu-se encorajado pela conivência do Conselho de Segurança e destacou tropas ao Muro da Vergonha poucos meses depois, com o claro objetivo de anexar à força mais território saráui, em clara violação do acordado.”
Assim, ressaltou também a representante da Frente Polisario para a ONU em Genebra Omeima Abdeslam, a Minurso tem desperdiçado o seu orçamento – cerca de USD 56 milhões (R$ 175 milhões) para o período entre julho de 2016 e junho de 2017, segundo a página da missão.
“É, por acaso, a proteção de um fato colonial e de ocupação militar estrangeira de um país sobre outro, o objetivo pelo qual as Nações Unidas criaram e dotaram de recursos financeiros durante 26 anos a sua missão no Saara Ocidental?”, indaga Zrug.
Segundo os documentos pertinentes, como o acordo e a resolução de 1991, o objetivo seria descolonizar o território através do referendo de autodeterminação, pontua o representante saráui, embora a realidade dos fatos indique o contrário. “O Marrocos serve-se da única missão de descolonização das Nações Unidas no mundo para legitimar sua anexação ilegal, pela força, de um território não-autônomo.”
Assim é definido o Saara Ocidental e tratada a sua questão pelo Comitê Especial de Descolonização das Nações Unidas, o “Comitê dos 24”, estabelecido ainda em 1961 para acompanhar a implementação do compromisso mundial plasmado na Declaração sobre a Concessão de Independência a Países e Povos Coloniais, de 1960.
Naquele momento, o território saráui ainda estava sob o domínio e era considerado uma província da Espanha, que se retirou de forma controversa em 1976, quando, apesar da ocupação marroquina e mauritana – esta, retirada pouco depois –, os saráuis declararam a República Árabe Saráui Democrática (RASD), hoje reconhecida por mais de 80 países. O Brasil ainda não é um deles.
Descompromisso e ineficácia
No Conselho de Segurança, petrificado pelas ações de potências que o ocupam permanentemente e responsável pelo destino das missões da ONU, o bloqueio ao avanço da Minurso fica a cargo da França, pontua Mohamed Zrug, o que traz “graves repercussões para a paz e a estabilidade da região norte-africana.”
Enquanto isso, continua, os sucessivos secretários-gerais da ONU ou seus enviados especiais, presos nesta “maquinaria de extorsão”, só fazem “exercer tímida resistência, com maior ou menor grau de êxito, à dinâmica sistemática de bloqueio.”
Zrug denuncia ainda a “estratosférica fatura do lobby de extorsão, desinformação, chantagem e medo que o Marrocos exerce sobre governos e indivíduos, financiada pela Arábia Saudita e seus pares que, desde que fizeram correr rios de sangue de civis, ao lado da França na Líbia, na Síria e no Iêmen,” buscam “ampliar sua arriscada campanha de desestabilização do resto dos países do Magrebe.”
Em um relatório divulgado neste mês, a Secretaria Geral da ONU aponta evidências não só da recusa sistemática, por parte do Marrocos, ao cumprimento do compromisso com negociações honestas e sem condições prévias, ressalta Zrug, como também o desprezo marroquino, incitado pela França, à própria ONU e ao enviado especial Christopher Ross, na função desde 2009, mas que se demitiu no início deste ano.
Entre as evidências elencadas por Zrug estão as reiteradas medidas do Marrocos para protelar tanto a retomada de negociações como até a concessão de permissão para a visita de Ross. Clique aqui e leia o relatório completo (em espanhol).
“É o próprio secretário-geral das Nações Unidas que, expondo os fatos, recorda ao Conselho de Segurança que a política de condescendência desmedida do organismo levada a cabo até hoje e, em especial, durante o ano, com os desafios marroquinos ao direito internacional, só pode levar a cenários piores”, diz o diplomata saráui.
“A colaboração e disposição permanente da Frente Polisario a ir à mesa de negociações e a apoiar o secretário-geral das Nações Unidas e seu enviado especial sempre estiveram fora de qualquer dúvida.”
Para os saráuis, afirma Zrug, a expectativa é que o Conselho de Segurança, incapaz de definir uma data para o referendo pela autodeterminação no Saara Ocidental, ou encerre a “desmoralizada Minurso, convertida em empreita colonial pelo Marrocos, com o subsequente cenário de guerra aberta para a qual o próprio Conselho, induzido pela França, tem garantido terreno fértil durante quase três décadas; ou que se corrobore solenemente a acertada e legítima declaração de independência do território pelo povo saráui em 27 de fevereiro de 1976.”
Porém, continua o diplomata, “26 anos depois e mais de 40 anos de conflito, qualquer outra tentativa do Conselho de Segurança que não seja dar uma resposta decidida e firme neste sentido está fadada ao fracasso”. E este fracasso, garantido pelos “perigosos malabarismos da França”, cobrará da ONU sua credibilidade, afirma Zrug.
Por isso é que movimentos saráuis como o Fórum pelo Futuro das Mulheres Saráuis, a Equipe Media e o Comitê pela Defesa do Direito à Autodeterminação do Povo do Saara Ocidental, além de movimentos internacionais, em solidariedade, articulam protestos diante das embaixadas francesas em diversos países para demandar o fim desta cumplicidade.
O diplomata saráui reafirma: “Nosso direito à autodeterminação é um direito inalienável, ineludível, imprescindível, irrenunciável e não embargável e estamos dispostos a continuar a defendê-lo por todos os meios que a legalidade internacional nos dispõe, seguros de que ainda há margem, mesmo que cada vez mais estreita, para uma paz, mas comprometida com a justiça, no Saara Ocidental.”
* Moara Crivelente é jornalista, doutoranda em Política Internacional e Resolução de Conflitos e diretora de Comunicação do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz)