Opinião
Nobel para Bob Dylan é esbofetear a literatura e a cultura
Por estes dias Bob Dylan por interposta Patti Smith recebe o Nobel da Literatura que a Academia decidiu conceder com o argumento de “ter criado novas expressões poéticas na tradição da canção americana”, o que a secretária permanente da academia explicou, considerando Dylan ser merecedor do prêmio por “ser um grande poeta na grande tradição da poética inglesa”.
Por Manuel Augusto Araújo
São curiosas justificações que nada justificam. Se Dylan criou novas expressões poéticas na tradição da canção americana o que dizer de um Leonard Cohen, de uma Laurie Anderson, de uma Meredith Monk. Argumento mais ridículo é considera-lo “um grande poeta na grande tradição da poética inglesa”.
Um só verso de T.S.Elliot, para referir outro nobelizado, tem mais espessura e inteligência que toda a obra de Dylan, a que já produziu e a que eventualmente venha a produzir. Seria extraordinário que a coroa de louros do Nobel produzisse tal metamorfose e transfiguração.
O que o Nobel vai injetar em Dylan é um doping de marketing. O prêmio da Academia Sueca é um selo que faz vender e muito mais vai fazer vender quem já se movia no mundo comercial como peixe na água, como se pode aferir pelas vendas alcançadas por um dos seus últimos discos em que recorre ao reportório de Sinatra mesmo que seja uma demonstração das suas limitações enquanto cantor.
A atribuição do prêmio a Dylan produziu enormes ondas de choque no universo da cultura, normalmente associada a um conceito restritivo e elitista que tem sido abalado, desde a emergência da cultura pop por uma hibridização entre gêneros que não cessam de se cruzar de forma incongruente mas que, há que reconhecê-lo, muitas vezes de forma sedutora para criar um imaginário universalizado a destruir fronteiras entre as camadas sedimentares das culturas, Cultura Erudita/Humanística, a Cultura Popular, Cultura de Massas, etc., alienando as políticas de democratização da cultura.
Um dos que mais se fez ouvir foi Vargas Llosa, outro Nobel da Literatura, numa denúncia vigorosa de que agora “vale tudo” na banalização de uma cultura em que se apagaram os parâmetros seletivos, interrogando se “no próximo ano vão dar o Nobel da Literatura a um futebolista”. O que não é inesperado de quem escreveu o ensaio “A Civilização do Espetáculo”, em linha com muitas obras teóricas que têm colocado em causa o estado atual da cultura contaminada pelas mundanidades e pelos populismos.
No olho do furacão desencadeado pela atribuição do Nobel a Dylan têm ficado submersos outros argumentos pertinentes embora quase seja obrigatório referir o sofisma de alguns recordarem que na antiga Grécia a poesia estar sempre ligada à música. Safo ou Homero, os trovadores franceses e ingleses, as Cantigas de Santa Maria da corte de Afonso, o Sábio ou de Dom Diniz, não podem ser usados para caucionar a eleição da Academia Sueca.
Ao entrar por esse campo, dentro das fronteiras definidas nesse território, Dylan é um pigmeu, tanto poética como musicalmente, se for comparado com um Georges Brassens, um Leo Ferré, mesmo um José Afonso. Ouvindo qualquer desses cantautores, como agora são chamados, a distância para o norte-americano é abismal.
E se Brassens raramente musicou poemas que não os seus Ferré, com bastante talento e sem escorregar para algum cabotinismo que inquina parte da sua obra, escreveu excelente música para poemas de Rimbaud, Verlaine e Baudelaire. Estão mortos, a Academia não atribui prêmios a artistas entretanto desaparecidos. Argumentário falhado se formos ouvir um Chico Buarque ou um Caetano Veloso que, como escreveu Helder Macedo, “transformaram a poesia impossível no tempo da ditadura na canção possível durante a ditadura”.
Sublinhe-se mais uma vez com um saber musical e poético de que Dylan é incapaz. Estão vivos, continuam a escrever canções numa língua que é das mais faladas no mundo, o que seria uma eventual pecha dos franceses. São de um país, o Brasil, onde o Nobel nunca desembarcou apesar dos grandes escritores que cintilam no seu firmamento e no firmamento universal.
Estranho? Nem tanto. O prêmio Nobel da Literatura, como outros nóbeis, é também um prêmio político. Obama está no panteão dos nóbeis da Paz para o confirmar. Na literatura, só assim se percebe porque foram nobelizados Soljenitsyne, Cholokov, Alexievich ou, sobretudo Churchill “pela sua brilhante oratória na defesa dos Direitos Humanos”, ele que era de fato um brilhante orador, a denúncia incendiária que fez do nazismo prova-o, mas teve posições dúbias em relação ao genocídio dos índios, desprezava não pelas melhores razões Gandhi, a componente rácica não era alheia a esse desprezo, foi um dos principais coautores do brutal e desnecessário bombardeamento de Dresden, registado para a posteridade em «Matadouro 5», por Kurt Vonnegut e que agora está a ser detergentada pela química dos restos do Muro de Berlim. Enfim, era a Academia Sueca a contribuir decisivamente para cumprir o desejo de Churchill “a história será gentil para mim, já que pretendo escrevê-la”.
Nesse patamar político há que situar o Prêmio Nobel da Literatura 2016, escolhendo um suposto ativista da contracultura, subvertida pela sua obra politicamente correta, a fazer cócegas inconsequentes ao establishment, que engorda com essa marginalidade bem-comportada, a envernizar a liberalidade de uma sociedade sem dignidade e sem dignidade para oferecer.
É nesse patamar político que o prêmio da Academia contribui para a manutenção do imperialismo cultural anglo-saxônico, que se ancorou no século XX, quando as nações perdem centralidade e capacidade de comandar o processo cultural.
Quando a superfície global vai dissolvendo o território, o exercício de soberania, a língua e a identidade cultural, tornados conceitos móveis e transitivos. Quando miséria e riqueza extremas tocam-se com geografias alteradas. Situações que ainda há cinquenta anos eram do 3.º mundo existem no 1.º Mundo, e em áreas qualificadas do 3.º Mundo surgem imagens e poderes do 1.º Mundo. É o fenômeno da globalização que decorre do desenvolvimento capitalista.
Uma época nova que se começa a definir mais nitidamente a partir dos anos 70 com o fim da equivalência do dólar-ouro, a primeira grande crise do petróleo, a definição da paz nuclear. Quando se começa a reconhecer que é difícil ou mesmo impossível garantir o desenvolvimento capitalista com os instrumentos de regulação soberanos internos, dentro dos espaços-nação. Instrumentos de regulação econômica como o Banco Mundial ou o FMI, que eram projeções da potência norte-americana, têm hoje um carácter supranacional de regulação do desenvolvimento mundial. É a situação histórica da passagem do modernismo para o pós-modernismo.
Enquanto, numa extensão sem precedentes, cada vez mais habitantes do planeta perdem a esperança e são atirados para a exclusão, a riqueza global vai-se concentrando num número cada vez menor de mãos. Em nome da racionalização e da modernização da produção, estamos a regressar ao barbarismo dos primórdios da revolução industrial.
Uma nova ordem econômica emerge impondo-se com violência crescente. O objetivo é a conquista do mundo pelo mercado. Nessa guerra os arsenais são financeiros e o objetivo da guerra é governar o mundo a partir de centros de poder abstratos. Megas pólos do mercado que não estarão sujeitos a controle algum exceto a lógica do investimento. A nova ordem é fanática e totalitária. Para esta nova ordem capitalista são de importância equivalente o controle da produção de bens materiais e o dos bens imateriais.
É tão importante a produção de bens de consumo e de instrumentos financeiros como a produção de comunicação que prepara e justifica as ações políticas e militares imperialistas através dos meios tradicionais, rádio, televisão, jornais e dos novos, proporcionados pelas redes informáticas, como é igualmente importante a construção de um imaginário global com os meios da cultura midiática de massas, as revistas de glamour, a música internacional nos sentimentos e americana na forma, os programas radiofônicos e televisivos prontos a usar e a esquecer, o teatro espetacular e ligeiro, o cinema mundano medido pelo número de espectadores, a arte contemporânea em que a forma pode ser substituída por uma ideia e a personalidade do artista transformada numa marca garante do valor da mercadoria artística que atravessa fronteiras e agora entra com grande estrondo nos salões em que se decidem a atribuição do Nobel da Literatura.
Inscreve-se o prêmio da Academia Sueca a Bob Dylan na exportação de formas culturais que têm o objetivo de despolitizar, trivializar, alienar a humanidade aplainando o humano individual num processo de globalização e internacionalização que tende a destruir todas as formas de solidariedade, comunidade, valores sociais.
É uma nova tirania exercida através de uma cultura em que subverte a cultura erudita e popular numa formatação pop e na instituição do star-system em que o que se exige dos receptores é o menor esforço, em que a procura e o prazer da descoberta são praticamente anulados para que a inteligência morra, depois de um longo estado de coma agônica entre no grau zero.
Eleger Bob Dylan como Prêmio Nobel da Literatura enquadra-se nos objetivos maiores do imperialismo político e econômico, na sua componente cultural. É a legitimação do triunfo da cultura pop, do populismo das redes sociais, da banalização do pensamento reduzido ao teclar de um tweet, do trabalho sem fadiga de demagogicamente banalizar a criatividade, um vírus canceroso que tem vindo a corromper as artes na grande tarefa de destruição da exigência de esforço que as artes comportam para nos tornarem humanos.
Fonte: AbrilAbril