Palestina
Na pandemia, o Dia da Terra na Palestina significa intensificar a luta de sempre
Enquanto o mundo espera sob quarentena pelo “retorno à normalidade”, ponderando que mudanças este período trará ou empenhando-se por transformações estruturais frente a problemas evidenciados pela emergência, palestinos e palestinas encaram a pandemia sob a brutalidade constante da ocupação militar e a colonização israelense. No Dia da Terra, 30 de março, tal urgência por transformação estrutural, pelo fim da “normalidade” da Palestina sob ocupação, se evidencia
Por Moara Crivelente* no Cebrapaz
Em 1976, a população palestina em Israel rebelou-se contra a decisão do regime israelense de desapropriar mais terras na região da Galileia, ao norte, lançando uma greve e manifestações que foram brutalmente reprimidas. As forças israelenses mataram seis palestinos e, desde então, a data é marcada anualmente como expressão da resiliência na forma de permanência e resistência à colonização.
Em 2018, palestinos lançaram a Grande Marcha de Retorno, com manifestações sustentadas por quase dois anos na zona de separação entre a Faixa de Gaza, há mais de uma década sob cerco completo e a ameaça da calamidade humanitária, e Israel. Cerca de 70% dos habitantes de Gaza são refugiados, por isso a alusão ao direito dos refugiados a retornar às suas casas. Desde aquele Dia da Terra, milhares de pessoas foram feridas, inclusive mutiladas, e mais de 200 médicos, enfermeiros, jornalistas e manifestantes foram mortos pelas forças israelenses, que trataram os protestos, como de costume, como ameaça à segurança de Israel.
Com a epidemia de coronavírus, os protestos foram naturalmente afetados e passaram sobretudo às redes sociais e à mídia. Pessoas de todo o mundo postaram mensagens de apoio, penduraram bandeiras da Palestina nas janelas ou encontraram outras formas de manifestação possíveis nestes tempos.
O comitê organizador das marchas cancelou manifestações do Dia da Terra por preocupação com a epidemia. Segundo as autoridades de saúde de Gaza, na semana passada, mais de 1.500 pessoas estavam em instalações de quarentena e outras 1.200, isoladas em suas casas no território densamente habitado por quase dois milhões de pessoas, cuja movimentação é estritamente controlada por Israel e o Egito, mantendo um efetivo bloqueio ao território por ar, terra e água desde 2006-2007. Há pouquíssimo abastecimento de água e energia elétrica e a entrada de bens essenciais também é extremamente escassa. Nestas condições, um surto no território seria particularmente fatal para a população que, recorde-se, já vive à beira de uma calamidade humanitária que segundo previsões das agências das Nações Unidas, pode tornar a vida na Faixa de Gaza insustentável.
Organizações locais de defesa dos direitos humanos seguem monitorando a situação e dedicando esforços especiais à situação da epidemia. A entidade Jewish Voice for Peace (Voz Judaica pela Paz), por exemplo, através de um conselho específico, analisa as condições do setor da saúde. Segundo suas estimativas, até 27 de março havia 2.693 casos confirmados de coronavírus em Israel, 82 na Cisjordânia e nove em Gaza.
É habitual a intensificação da brutalidade da ocupação militar israelense diante das “emergências”. Além do ainda mais intenso controle da Faixa de Gaza, na Cisjordânia a situação também evidencia a natureza do regime israelense. Embora as autoridades de Israel e da Palestina tivessem anunciado que cooperariam no combate ao coronavírus, dado o grau de interligação entre as sociedades no contexto de ocupação militar e colonização, o que se verifica é o reforço das medidas arbitrárias e repressivas de Israel, como em outros momentos em que o regime encontra pretextos para tal. A própria colonização da Palestina se expande.
O Escritório Nacional de Defesa da Terra e Resistência à Colonização informou que, “embora o mundo esteja trabalhando em conjunto para deter a disseminação da pandemia de Covid-19, a ocupação israelense e seus colonos extremistas estão intensificando seus ataques contra os palestinos, invadindo cidades, vilas e campos e lançando campanhas de detenção e confisco”.
Além do aumento do número de operações de demolição de lares e instalações palestinas no norte do Vale do Jordão e outras áreas, as autoridades israelenses também isolaram cerca de oito mil pessoas na cidade de Barta’a Sharqeia, por trás do muro de separação. O Conselho de Planejamento das Colônias planeja ainda expandir a colônia de Efrat, no distrito palestino de Belém. A área a ser confiscada para a expansão é de terrenos agrícolas a ser destinados à construção de rodovias e áreas abertas.
A proposta estará em discussão por apenas dois meses, enquanto os palestinos enfrentam ainda maior controle da movimentação, sob quarentena, e instituições israelenses a que objeções poderiam ser apresentadas estão encerradas desde que decretado o estado de emergência, no início de março, aponta a Palestine News Network.
A organização israelense de direitos humanos B’Tselem condenou as medidas das autoridades israelenses e sua posição diante da pandemia, efetivamente instrumentalizada como oportunidade para expulsar palestinos e beduínos do Vale do Jordão. Assim como o relator especial da ONU para a situação dos direitos humanos nos territórios palestinos ocupados desde 1967, Michael Lynk, a entidade lembrou que Israel, como potência ocupante, sob o direito internacional humanitário, tem a obrigação, que se sabe constantemente violada, de proteger a população sob ocupação. Nem mesmo diante de uma pandemia as autoridades israelenses cumprem o dever.
O órgão do Partido Comunista de Israel, Maki, relata que na semana passada a administração israelense na Cisjordânia enviou uma retroescavadeira, dois caminhões com guindastes e um jipe militar à comunidade de Khirbet Ibziq, no Vale do Jordão, para confiscar materiais destinados à construção de oito tendas: duas para uma clínica temporária, quatro para abrigar pessoas evacuadas de suas casas e duas para mesquitas temporárias. Também foram confiscados um gerador e outros materiais. O caso foi denunciado pela B’Tselem: “Enquanto o mundo combate uma crise de saúde inédita e paralisante, o exército de Israel está dedicando tempo e recursos para assediar as comunidades palestinas mais vulneráveis na Cisjordânia, que Israel tem tentado expulsar da região há décadas. Deter iniciativas comunitárias de assistência médica durante uma crise de saúde é um exemplo especialmente cruel do abuso cotidiano infligido contra essas comunidades.”
Segundo o portal Electronic Intifada, no início de março entidades palestinas de defesa dos direitos humanos já denunciavam medidas discriminatórias adotadas no contexto da epidemia, como a negligência israelense em dar informações em tempo real em árabe à população palestina, que em Israel corresponde a 20% do total, ressalta a Adalah. Al Mezan, entidade baseada em Gaza, também denunciou que as autoridades carcerárias não tomaram medidas adequadas para proteger a saúde dos cerca de 5.000 palestinos detidos nos cárceres israelenses, negligenciando informações em árabe e mantendo os prisioneiros em locais lotados, com oito palestinos por cela, em contraste com a média de quatro israelenses por cela. Além disso, casos gravíssimos de negligência médica são constantemente denunciados pelos palestinos.
A revista eletrônica israelense +972 também relatou os maus tratos das autoridades israelenses contra trabalhadores palestinos. Há casos em que palestinos habitantes da Cisjordânia com permissão para trabalhar em Israel estão sendo literalmente abandonados nos postos de controle militar sem qualquer assistência diante de qualquer sintoma do coronavírus. A revista cita o jornalista Ibrahim Abu Safiyyeh, membro de um grupo de voluntários que ajuda quem atravessa o posto de controle militar de Beit Sira e que testemunhou um dos episódios: “Dois policiais estavam no banco da frente. O carro parou e o homem saiu, mal podia caminhar até o posto de controle. Os policiais saíram do veículo, desinfectaram a si mesmos e o banco de trás, entraram no carro e partiram.” O homem é Malek Jayousi, de 27 anos, que trabalha numa construção perto de Tel Aviv, em Israel, e não estava, afinal, contaminado.
Assim, enquanto diversas vozes pelo mundo chamam atenção à urgência da cooperação e da solidariedade para enfrentar uma crise que não conhece fronteiras, os palestinos também chamam atenção para o seu “normal”, sob a ocupação israelense. As detenções arbitrárias, a brutalidade da repressão, as demolições de lares, desapropriação de terras, expansão das colônias, a discriminação, a segregação e a expulsão correntes são potencializadas pelas medidas adotadas a pretexto de combater a epidemia de Covid-19. Mas a cura para essa enfermidade mais antiga é conhecida: o fim da ocupação e da colonização da Palestina por Israel.
(*) Doutoranda em Política Internacional e Resolução de Conflitos; diretora executiva de Comunicação do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz); assessora da Presidência do Conselho Mundial da Paz