Opinião
Na Nicarágua, começam a cair as máscaras
Embora parte da imprensa alternativa acolha a versão de que os protestos na Nicarágua são basicamente por liberdades e contra a reforma da previdência e que o governo sandinista não garante liberdade de expressão, os fatos começam a vir à tona, demonstrando o verdadeiro caráter dos protestos violentos que há dois meses sacodem a nação mesoamericana.
Por Rita Coitinho*
Longa e documentada reportagem assinada por Max Blumenthal (aqui https://grayzoneproject.com/2018/06/19/ned-nicaragua-protests-us-government/ e, em espanhol, aqui https://www.tn8.tv/nacionales/452273-financiamiento-ned-usaid-golpe-nicaragua/ ), traz evidências dos encontros mantidos pelos jovens universitários que se apresentam como líderes dos protestos com agências estadunidenses e parlamentares de extrema direita daquele país.
A matéria conta com registros do twitter do senador ultraconservador Ted Cruz e da parlamentar Ileana Ros-Lehtinen (na foto), onde posam para fotos com os estudantes nicaraguenses em visita aos EUA. A reportagem oferece ainda detalhes sobre o financiamento de agências como o NED (National Endowment for Democracy), ligado à USAID (antiga conhecida dos países latino-americanos, como financiadora de golpes de Estado e “institutos” para produção de material de propaganda ideológica, desde a década de 1960) para organização de um golpe de Estado na Nicarágua. A matéria do jornalista estadunidense aponta os laços entre o NED e o Movimento Estudantil 19 de Abril, o Instituto de Estudos Estratégicos e Políticas Públicas (IEEPP) e a Aliança Cívica pela Democracia, movimentos e instituições que se apresentam como líderes dos distúrbios que ocorrem desde abril.
Lideranças “jovens”, apresentadas como acima de qualquer suspeita; acadêmicos e algumas lideranças “feministas” emprestam prestígio ao movimento, que alega levantar-se contra a reforma da previdência, a corrupção e a “ditadura” de Daniel Ortega, reeleito em 2016 para mais um mandato. Os fios que ligam os movimentos de desestabilização nicaraguense aos recentes episódios observados em outras nações latino-americanas – especialmente as “guarimbas” venezuelanas mas também, em alguns aspectos, os protestos ocorridos no Brasil visando a deposição de Dilma Roussef – são evidentes. Repete-se o roteiro, com algumas adaptações: agitação midiática em torno de denúncias de corrupção; levante de setores de classe média; radicalização, com participação de mascarados que incendeiam prédios públicos, atacam jornalistas, intimidam e agridem populares partidários do governo e confrontam as forças de segurança. Tudo filmado e postado nas redes sociais, em tempo real, como resultado da “repressão violenta” das forças governistas, buscando atrair a simpatia da opinião pública internacional.
Prontamente, os parlamentares da direita radical dos EUA passam a declarar apoio aos protestos, assim como parlamentares e lideranças de direita de outros países latino-americanos, acompanhados, aqui e ali, por setores da mídia independente seduzidos pelos apelos democráticos e libertários dos manifestantes. Em pouco tempo a situação evoluirá para pressões por parte da OEA para que o governo ceda e renuncie. Por hora o governo resiste, cede em alguns pontos e institui uma mesa de negociações, ao mesmo tempo em que os militantes sandinistas organizam-se em coletivos para a resistência. Sabem que os “revoltosos” não desejam negociação e sim a deposição do governo e sabem também que haverá suporte internacional para a legitimação do golpe de Estado, como já ocorreu em outros momentos da história da Nicarágua e como tem ocorrido nos episódios recentes em outras nações do continente.
Mas quais são os interesses das agências estadunidenses em financiar mais essa operação de “regime changing” na América Latina? Dado que há um cenário de virada ideológica na região, com sucessivas derrotas dos governos de esquerda e que há já uma robusta campanha midiática de desgaste do governo, não seria apenas uma questão de tempo para que Ortega, já desgastado pela crise econômica, viesse a perder as próximas eleições? Qual a razão da pressa?
Em primeiro lugar, o enraizamento do sandinismo é um fato que não pode ser ignorado. À revelia de todas as dificuldades, o movimento que sustentou a guerrilha dos anos 70/80 é uma força amplamente enraizada e difícil de ser derrotada. Também algumas questões de ordem geopolítica oferecem elementos para se entender as razões profundas por trás das fontes de financiamento dos protestos. Uma questão importante é a existência da ALBA (Alternativa Bolivariana para as Américas). A Nicarágua, como parte da Aliança, apoia diplomaticamente a Venezuela no âmbito da OEA, sendo ainda uma das poucas vozes a se opor às sistemáticas investidas da organização contra a autodeterminação venezuelana. A questão mais candente, porém, parece ser outra: as notícias de que está em andamento a construção de um novo canal interoceânico, cortando o território nicaraguense. O novo canal, caso finalizado, será maior e melhor localizado que o canal do Panamá e estaria sendo construído com financiamento de origem chinesa. Desde que os EUA tornaram-se (apropriando-se de 2.400.000 km² do México) uma nação bioceânica, a possibilidade de se fazer a ligação entre as duas costas – Leste e Oeste – em menor tempo e com menor gasto é a mais importante questão geoestratégica da região. Pelo controle do canal do Panamá os EUA patrocinaram uma guerra civil e a divisão do território da Colômbia, em 1903 e, desde então, controlam com mãos de ferro a política do país, interferindo sempre que sentem que seus interesses possam ser ameaçados. O controle de uma rota entre Atlântico e Pacífico ganha ainda mais importância nos dias atuais, em que a China ascende como potência comercial e investe em tornar-se, também, uma potência naval capaz de desafiar a preponderância dos EUA no domínio dos mares.
Se, por um lado, a guerra híbrida apoia-se na rápida difusão de informações fabricadas visando a criação de uma opinião pública mundial favorável a uma mudança de regime, por outro lado a difusão de informações também atua no sentido inverso: da mesma maneira como as notícias fabricadas sobre uma “ditadura” desumana na Nicarágua espalharam-se como rastilho de pólvora (convencendo até parte da imprensa “crítica”), por outro lado as máscaras começam, também, a cair rapidamente. As verdadeiras razões por trás da campanha contra o governo da Nicarágua são óbvias, assim como são ainda mais evidentes as repetições de padrão de comportamento dos manifestantes.
Rita Coitinho é socióloga, Dra. em Geografia e membro do Conselho Consultivo do Cebrapaz
Fonte: Desacato.info