Brasil
Muçulmanos brasileiros encaram perseguição e preconceito crescentes sob novo governo
Em um auditório da Câmara dos Deputados, repleto de homens fardados com uniformes de alta patente, o telão exibe imagens de um senhor com longas barbas grisalhas, óculos e uma tradicional touca na cabeça. Na primeira foto, o homem de cabelos brancos aparece em uma manifestação com bandeiras da Palestina. Em outra, está ao lado de uma mulher com os cabelos cobertos por um hijab, o véu usado por muitas fiéis muçulmanas. Os dois estão em cima de uma laje na favela. “Esta foto foi feita na favela da Maré (no Rio de Janeiro). O que essas pessoas estavam fazendo lá? Qual o objetivo delas?”, provoca o apresentador.
Por Tulio Kruse*, para The Intercept Brasil
O homem das fotos é Cesar Mateus Rosalino, de 42 anos, um conhecido produtor cultural e ativista que mora em Embu das Artes, na região metropolitana de São Paulo. Desde que se converteu ao islamismo, Cesar adotou o nome Kaab Al-Qadir – a mudança é uma prática comum entre brasileiros convertidos. Ele já apareceu outras vezes em entrevistas à imprensa brasileira. O interesse dos jornalistas por Qadir se deve, principalmente, à sala de oração que ele inaugurou em 2013 no meio da favela Cultura Física, em Embu, hoje transformada em mesquita. Sua fonte de renda é o dinheiro de eventos que inscreve em editais públicos, além de oficinas e palestras que oferece a escolas de Embu. Ele participa de uma associação cultural na favela, a Zumaluma, que oferece à comunidade cursos de informática, dança e artes, que são pagos pela prefeitura em alguns casos e pelos inscritos em outros, para custear o pagamento dos professores.
Foi na laje em cima da casa onde mora – e não no Rio de Janeiro – que ele posou ao lado de sua amiga para a imagem, clicada para uma reportagem da CBN, que identificou o local. Cesar afirma que nunca esteve na Favela da Maré.
Nenhuma acusação formal de terrorismo pesa contra ele, e também não há qualquer evidência de que tenha sequer tentado praticar qualquer ato desse tipo. No entanto, seu rosto foi exposto a 138 oficiais-alunos do curso de Altos Estudos Militares, da Escola do Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), assim como a generais e coronéis já graduados. A ocasião era uma palestra sobre o preparo das autoridades brasileiras contra ataques terroristas, promovida pela Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CREDN) na tarde do dia 4 de julho, num evento transmitido ao vivo pela TV Câmara.
No palco, o assessor internacional e de comunicação da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional (CREDN) da Câmara dos Deputados, Marcelo Rech, acusava as pessoas na foto do protesto de fazer “apologia da Jihad” e, em seguida, questionava as “intenções” delas, sem apresentar informações concretas sobre quem são e por que estavam sendo expostas daquela maneira. “Não dá para saber até que ponto são extremistas”, disse Rech, deixando as suposições no ar para serem preenchidas pela imaginação dos militares.
O episódio é um exemplo de uma mudança recente na postura das autoridades brasileiras em relação ao Islã no Brasil. Se antes promovia campanhas contra a intolerância religiosa, desde a troca de governo houve uma sequência de exemplos em que autoridades brasileiras na área de segurança pública levantaram suspeita ou tomaram ações com base em estereótipos sobre muçulmanos, extrapolando evidências concretas que tinham sobre seus alvos – prática conhecida como profiling. Foi neste contexto que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), reintegrada a um gabinete militar, se lançou em uma campanha pela disseminação do medo em relação ao terrorismo. Em colaboração com a Polícia Federal (PF), a Abin também participou da Operação Hashtag, que prendeu 14 suspeitos de integrar uma suposta “célula terrorista” no Brasil. A operação foi cercada de questionamentos sobre a real ameaça que os investigados ofereciam – o juiz Marcos Josegrei da Silva, que autorizou as prisões, chegou a afirmar que “não se pode dizer que essas pessoas são terroristas, que vão cometer esses atos”.
A mudança nas políticas de segurança pública brasileiras está inserida em uma perigosa tendência global. Desde os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, praticado por 19 árabes muçulmanos, os Estados Unidos suspenderam direitos básicos em nome da “guerra mundial ao terrorismo”. Forças policiais e de inteligência espionaram comunidades muçulmanas, se infiltraram e vigiaram mesquitas e, em vários casos bem documentados, usando informantes para enquadrar jovens em conspirações terroristas. Mais de uma década depois, em resposta a uma série de ataques sangrentos e um influxo de refugiados, vários países da Europa seguiram o exemplo americano e adotaram suas próprias políticas de profiling, particularmente a França.
Essa cultura de suspeição oficial estimulou crimes contra a comunidade e incidentes islamofóbicos. Como consequência, muitos muçulmanos não se sentem seguros nas suas próprias cidades, tanto nos Estados Unidos quanto em outros países.
No Brasil, muçulmanos têm visto o preconceito da própria população crescer, mas sentem-se perseguidos também pelas forças de segurança do país. Equipes da Polícia Federal (PF) entraram em duas mesquitas na capital paulista entre o fim do mês de julho e o começo de agosto, sem portar qualquer mandado judicial de busca e apreensão, prisão preventiva ou condução coercitiva. Segundo o relato ao The Intercept Brasil de muçulmanos que frequentam um dos templos, oito policiais federais chegaram ao local identificados com uniformes e distintivos da PF durante uma palestra. Eles fizeram perguntas sobre a religião, sobre os assuntos que eram discutidos nas reuniões e a origem do dinheiro usado para administrar as mesquitas. Ao menos dois agentes estavam armados. Ninguém foi levado para prestar depoimento formalmente à PF.
A Defensoria Pública da União (DPU) foi comunicada sobre os casos, mas nenhuma investigação foi instaurada para apurar se houve abuso de autoridade. Representantes de entidades islâmicas disseram à defensoria ter medo de que um inquérito sobre a ação dos policiais causasse indisposição entre a comunidade e autoridades. As localizações dessas mesquitas não foram reveladas por temor a represálias e novos ataques preconceituosos.
Apesar da mudança de governo ter acontecido há menos de cinco meses, o aumento do preconceito contra muçulmanos no contexto político tem chamado a atenção de pesquisadores do tema. “A ascensão do governo de Temer trouxe significativas mudanças na política do Ministério da Justiça em relação, sobretudo, aos refugiados no Brasil”, diz o historiador Renato Cristofi, mestre pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador da história das relações entre Oriente e Ocidente.
Ao The Intercept Brasil, Cristofi disse que a maioria dos critérios para a vigilância de muçulmanos brasileiros são “nitidamente preconceituosos” e que essa política demonstra “despreparo e desconhecimento” sobre o terrorismo e o fundamentalismo islâmico por parte da atual pasta da Justiça, que tem o ministro Alexandre de Moraes à frente. “É parte do mesmo fenômeno que produz as cenas de agressão a mulheres muçulmanas pelas ruas do Brasil, ainda que esporadicamente.”
No Brasil, o número exato de muçulmanos é tema de controvérsia. O último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010, diz que há aproximadamente 35 mil fiéis. Mas associações islâmicas brasileiras estimam um número entre 800 mil e 1,5 milhão. Segundo as organizações, existem hoje cerca de 50 mesquitas e mais de 80 centros islâmicos espalhados pelo país. Historicamente, há registros da presença de muçulmanos desde o século 16, com a chegada de escravos que vinham de regiões da África onde já havia adeptos do Islã, como o Golfo da Guiné. Desde essa época foram perseguidos pela Inquisição portuguesa no Brasil e, em alguns casos, foram até obrigados a se tornar cristãos pelos donos do engenho. Na primeira metade do século 19, os muçulmanos de Salvador lideraram a mais importante rebelião urbana de escravos negros no país, em 1835, conhecida como a “Revolta dos Malês”.
Em São Paulo, estado que mais registra fiéis, eles são 11,4 mil atualmente, de acordo com o IBGE. Ali, há uma identificação especial do movimento negro e de jovens nas periferias com a religião, assim como aconteceu nos Estados Unidos nos anos 60 com Malcolm X e Muhammad Ali. É o caso de Qadir.
Entre vários muçulmanos entrevistados pelo The Intercept Brasil, há uma percepção de que os casos de agressão e preconceito vêm aumentando desde os atentados de extremistas do autodenominado Estado Islâmico em Paris, em novembro de 2015, que deixou 130 mortos. Essa impressão vem dos casos relatados nas mesquitas. Por enquanto, não há dados recentes sobre os casos, e a maior parte não é sequer denunciada. A DPU, que recebeu algumas queixas, disse a esta reportagem que muitos muçulmanos preferem não registrar ocorrência, inclusive por temer a reação das autoridades. As mulheres costumam ser os alvos mais frequentes.
“Por serem mulheres, as pessoas têm coragem de agredi-las.”
Segundo o relato de Qadir, há cerca de seis semanas, uma fiel que frequenta a mesquita de Embu das Artes estava com a filha dele, de sete anos, em uma agência dos Correios da cidade. Saiu de lá aos prantos após receber um chute na costela e ouvir de um homem: “volta para a sua terra, terrorista!”. Ela é brasileira, como Qadir.
Apesar da gravidade da agressão, eles não registraram a ocorrência na Polícia Civil.
Hoje, Qadir convive com ameaças de morte, agressões verbais diárias e perseguição nas redes sociais — algo cada vez mais comum para muçulmanos. Na rua e na internet, ele é chamado de terrorista. Mas uma breve conversa sobre religião é o suficiente para contestar a tese de que Qadir é um radical.
Sentado na sala do sobrado onde mora na favela, ele define seu conceito de Jihad como “esforço e empenho na luta contra si mesmo”, e “lutar para ser uma pessoa melhor”. Faz questão de enfatizar que grupos terroristas ferem princípios básicos da religião muçulmana ao matar inocentes. “A gente só quer seguir uma religião, seguir uma fé em que acreditamos e seguir a Torá, a Bíblia e o Alcorão”, diz. “Muçulmano que é muçulmano tem que seguir os três livros que foram enviados por Deus.”
Segundo líderes comunitários, a maior parte das agressões contra muçulmanos acontecem na região Sul do País, onde também há grande concentração de seguidores da religião. Em Porto Alegre, em dois meses, foram ao menos quatro casos de violência contra mulheres que usavam o hijab, apenas no círculo de amizades de Nader Rodrigues Ali, um engenheiro mecatrônico de 38 anos que frequenta a Mesquita Islâmica de Porto Alegre, no centro da capital gaúcha. Em frente ao mercado público da cidade, uma mulher de 26 anos foi atacada na segunda semana de agosto e teve seu rosto cortado pela presilha que segurava o lenço que cobria o cabelo, depois que o homem que a atacou puxou seu véu. Na última semana de junho, outra fiel da mesma mesquita foi perseguida à noite pelas ruas do centro de Porto Alegre por um homem que a chamava de terrorista. “Além disso, há muitas irmãs que não contam esses casos, se afastam e acabam por se retirar das mesquitas”, conta Rodrigues. “Por serem mulheres, as pessoas têm coragem de agredi-las.”
A atuação das autoridades não parece estar ajudando no combate ao preconceito. Pelo contrário. Na Câmara, a apresentação aos militares também contava com reproduções de páginas oficiais de entidades islâmicas. “Temos aqui essa página do Facebook, que seria de uma entidade chamada Mesquita Brasil, que também posta mensagens bastante extremistas”, diz Rech, o apresentador. “O grande problema é converter o país a uma outra religião e aplicar aqui a lei da Sharia.” A Sharia, conjunto de regras com base no Alcorão e no Islã, é parecida com o sistema judeu da Halachá e o direito canônico católico, mas virou uma obsessão extremamente mal-entendida nos discursos populares ocidentais.
A entidade que Rech acusa de extremismo é nada menos que a primeira mesquita construída na América Latina, inaugurada em 1952 pela Sociedade Beneficente Muçulmana e frequentada até hoje por famílias de imigrantes sírios, libaneses e palestinos que chegaram em São Paulo há mais de três gerações – e conhecidamente mantiveram boas relações com as comunidades cristãs e judaicas no Brasil durante todo esse tempo. Uma busca pela palavra “Sharia” nos arquivos da página denunciada vai trazer poucos resultados. Em 13 de outubro de 2015, por exemplo, aparece em um relato sobre aulas de islamismo que são ministradas na mesquita. Sobre a Sharia especificamente, há o seguinte trecho:
“Não vamos confundir ‘islamizar’ o mundo usando força, aplicando a Sharia, com a divulgação da mensagem. Deus nos ordenou no Alcorão a apenas divulgar a mensagem, quem quiser que aceite, e quem não quiser é livre.”
Meses após a palestra na Câmara dos Deputados ao seleto grupo de oficiais do Exército, Marcelo Rech não parece mais tão assertivo em relação àquelas pessoas nas fotos, que insinuou poderem ter ligação com o terrorismo sem apresentar provas e trazendo detalhes incorretos. Em entrevista a esta reportagem, ele argumenta que pode ter sido um caso em que “a intenção foi boa, mas a prática nem tanto”.
Rech estudou no National War College, em Washington, e diz ter participado de coberturas jornalísticas e cursos em 21 países. Ele não é uma voz solitária no debate sobre terrorismo, e seus equívocos não são exceção. Muitos comentaristas do tema se apoiam em factóides para fazer análises incendiárias e carregadas de medo, veiculadas em canais de TV e jornais internacionais.
Em uma entrevista à rádio CBN, poucos dias depois de sua palestra na Câmara, Rech notou que havia pessoas “exibindo camisas com instituições da Jihad” em uma manifestação na Avenida Paulista. A camisa em questão é um souvenir de um antigo grupo de rap, que inclusive já apareceu em reportagens da própria CBN. Pelo que se entende de sua declaração à rádio, a simples menção da palavra “Jihad” significa que eles deveriam ser monitorados pelo serviço de inteligência brasileiro para se certificar de que não são terroristas. Questionado pelo The Intercept Brasil, Rech deixou claro que as imagens foram retiradas “aleatoriamente na internet”. “Não tenho nenhuma informação, não fui atrás de nenhuma informação, eu só quis ilustrar minha apresentação”, ele disse.
Sobre sua apresentação na Câmara, Rech, que é assessor da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CREDN), frisou que não queria expor ou prejudicar ninguém na sua fala aos militares. “Eu não tive intenção nenhuma, absolutamente nenhuma, de tachar aquelas pessoas e não fiz isso. Em momento algum disse que as pessoas que aparecem ali são terroristas”, minimizou, por telefone. “E não tenho nenhum problema em pedir desculpas pela exposição.”
* Jornalista. Colabora em pesquisas e projetos de comunicação da Papel Social sobre violações de Direitos Humanos em cadeias produtivas; foi repórter do jornal O Estado de S. Paulo, onde escreveu sobre crime, religião, política e economia