Venezuela
Mark Weisbrot: Há saída para a crise na Venezuela?
Já faz algum tempo que a mídia internacional tem proporcionado um bombardeio constante de matérias e editoriais (nem sempre facilmente distinguíveis entre si) sobre o colapso da economia venezuelana. Dominam as páginas destes jornais relatos sobre a escassez de alimentos e remédios, as enormes filas para aquisição de itens básicos, os salários desvalorizados por uma inflação de três dígitos e até tumultos e brigas por alimentos.
Por Mark Weisbrot*
O senso comum tem um conjunto de narrativas previsíveis para explicar o caos econômico atual. O “socialismo” falhou – pouco importa se a grande maioria dos empregos criados durante os anos de Chávez tenha sido no setor privado, ou que o tamanho do Estado seja bem menor do que na França. Toda a experiência – dizem – foi, desde o início, um fracasso. Estatizações, políticas contra o capital, gastos excessivos populistas durante os anos de alto preço do petróleo, e depois a derrocada com o colapso do preço do petróleo, desde 2014. A espiral descendente continuará até que os chavistas sejam depostos do poder, seja por meio de eleições ou de um golpe (a maioria dos especialistas não parece se importar com qual será o desfecho).
A realidade, no entanto, é um pouco mais complexa. Primeiramente, a experiência bolivariana funcionou muito bem até 2014. Entre 2004, quando o governo de Chávez obteve controle sobre a indústria nacional de petróleo, e 2014, a renda real per capita cresceu mais de 2% ao ano. Foi uma enorme mudança comparada ao horrendo e longo declínio nos 20 anos anteriores a Chávez, quando o PIB per capita encolheu a uma média de 1,2% ao ano. Durante estes anos (2004-2014), a pobreza diminuiu 49%, e a pobreza extrema, 63% – levando em consideração apenas a renda. O número de pessoas com mais de 60 anos que recebe aposentadoria do Estado triplicou, e milhões de venezuelanos ganharam acesso à saúde e educação. São os ganhos ao longo desta década de chavismo que explicam como o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) foi capaz de obter 41% dos votos nas eleições da Assembleia Nacional, em dezembro, apesar da grave escassez de bens de consumo, de 180% de inflação e uma profunda recessão.
E a espiral descendente da economia nos últimos três anos, seria inevitável? É irreversível enquanto o PSUV não deixar o poder? Para responder essas perguntas, devemos observar como a Venezuela entrou nessa situação e como poderia sair dela.
No outono de 2012, e novamente em fevereiro de 2013, o governo reduziu drasticamente a disponibilidade de divisas internacionais. Foi nesse período que a escassez de bens básicos se acelerou, junto com a inflação e o preço do dólar no mercado paralelo. A taxa de câmbio oficial, pela qual o governo vendia a maior parte dos dólares obtidos com as vendas de petróleo, era de 6,3 Bolivares Fuertes (Bf) por dólar. Mas um mercado paralelo já existia, e a escassez de dólares na taxa oficial levou o mercado paralelo a disparar. Ao mesmo tempo, o preço mais elevado do dólar no mercado paralelo fez subir a inflação, pois aumenta o preço dos bens importados.
À medida que a inflação sobe, mais pessoas optam por comprar dólar, considerado moeda segura que não vai perder valor com a inflação. Isso eleva o preço do dólar no mercado paralelo, aumentando ainda mais a inflação. Este ciclo gera uma espiral de “inflação-depreciação”. Em outubro de 2012, a inflação estava em 18%, e a taxa no mercado paralelo era de 13%. No fim de 2015, a inflação anual era de 180% e a taxa de mercado paralelo 833%. A escassez de bens de consumo ao mesmo tempo contribui com esta espiral e é agravada por ela.
No primeiro trimestre de 2014, a economia venezuelana já estava em recessão, embora os preços internacionais do petróleo fossem superiores a 100 dólares o barril. Em janeiro de 2015, os preços caíram para 48 dólares o barril, aproximadamente o mesmo valor de hoje. Isso reduziu as receitas do governo em porcentagem semelhante, e o governo recorreu à impressão de moeda para cobrir as despesas. A criação de moeda não aceleraria a inflação necessariamente, mas no contexto da espiral inflação-depreciação, foi o que ocorreu, levando a inflação a subir ainda mais rápido.
Desde o fim de março, a taxa do mercado paralelo caiu de um pico de mais de 1.211 Bf para cerca de 1.025 Bf por dólar hoje, depois de disparar por mais de três anos. Ao mesmo tempo, o governo permitiu que o preço do dólar subisse em um terceiro mercado, chamado de taxa SIMADI ou DICOM. Está agora em cerca de 640 Bf por dólar, ou mais de 60% da taxa do mercado paralelo.
Isso não significa, no entanto, que a economia esteja no caminho da estabilização. Em primeiro lugar, a taxa paralela ainda é 100 vezes a menor taxa oficial de 10. Além disso, uma das principais causas da desaceleração da espiral de inflação-depreciação é o aprofundamento da recessão. Há bem menos pessoas com dinheiro para comprar dólares, e muitos estão esgotando suas economias em dólares para atender as necessidades básicas. Isso tem empurrado para baixo o preço do dólar no mercado paralelo.
Isto significa que a economia venezuelana não pode se recuperar sob o sistema de câmbio atual. Está presa na recessão. Além disso, o sistema de taxas de câmbio múltiplas, com grandes diferenças entre as diferentes taxas, cria um enorme incentivo à corrupção. Qualquer pessoa com acesso a dólares oficiais pode multiplicar seu rendimento por 100 simplesmente vendendo-os no mercado paralelo, acessível a quase qualquer um.
Mas o sistema oficial de taxas de câmbio é apenas uma das maneiras como o governo perde dinheiro em dólar. A gasolina, mesmo após o aumento recente, custa cerca de 6 Bf por litro – ou cerca de um centavo de dólar por litro na taxa de câmbio SIMADI. A eletricidade e o gás também são fortemente subsidiados. Estes subsídios custam ao governo mais de 13% do PIB. Para efeito de comparação, a receita total com imposto de renda (individual e corporativo) do governo federal dos EUA em 2015 era de cerca de 10,6% do PIB. Ao mesmo tempo, há controles de preços que são difíceis ou impossíveis de manter na atual situação econômica. Em 2015, os preços ao consumidor aumentaram 180%; mas os preços dos alimentos, sujeitos a controle, aumentaram em 300%. Uma demonstração bastante clara de que o controle de preços não está funcionando.
Milhões de venezuelanos vivem hoje de algum tipo de arbitragem, desde a espera em filas durante horas por uma pequena aquisição de alimentos subsidiados, para depois revendê-los, à negociação de moeda no mercado paralelo, passando pela venda de objetos roubados. Mesmo uma ditadura com poder repressivo considerável para reprimir todas as transações ilegais teria dificuldades para manter uma economia funcional com distorções de preços de tal magnitude. Mas a Venezuela não é uma ditadura; o Estado é, na verdade, muito fraco em termos de aparato policial.
Diante desta situação, é evidente a necessidade de reformas sérias para relançar a economia. A União das Nações Sul-Americanas (Unasul) reuniu uma equipe de economistas, liderada pelo ex-presidente da República Dominicana Leonel Fernández, que apresentou um conjunto de propostas. (Também faço parte desta equipe.)
A mudança necessária mais óbvia é a unificação do sistema de taxas de câmbio múltiplas. Isto deve ser feito rapidamente, de uma vez. O governo pode leiloar uma quantia fixa de dólares por dia, com o preço determinado pela oferta e demanda. Embora permitir que a moeda flutue possa assustar muita gente, sem dúvida o preço do dólar se estabilizaria em algum patamar consideravelmente menor do que a atual taxa de mercado paralelo, de cerca de 1.000. Uma taxa flutuante também é a única forma de evitar o desperdício de reservas de divisas escassas na tentativa inútil de manter uma taxa fixa sobrevalorizada.
Uma vez que desvalorizações geralmente levam a aumentos de preços, seria necessário proteger a população da elevação dos custos dos bens essenciais, como alimentos. Isso poderia ser feito com a expansão do programa do governo Tarjeta Misiones Socialistas, que ofereceria à população um grande desconto para compensar qualquer aumento de preços. Este programa entraria em vigor antes da unificação da taxa de câmbio.
Os subsídios à energia poderiam então ser gradualmente eliminados ao longo dos próximos 18 meses. Para tornar a medida econômica e politicamente aceitável, as receitas adicionais do governo, à medida que os preços da energia forem autorizados a subir, seriam repassadas às tarjetas. Representaria um ganho líquido para a grande maioria dos venezuelanos. Alguns controles de preços – incluindo aqueles que não permitem que os produtores cubram seus custos – seriam gradualmente eliminados.
Outras medidas para proteger o padrão de vida são a indexação dos salários à inflação e a criação de um programa temporário de obras públicas para a criação de emprego. Estas medidas poderiam ser financiadas por um imposto sobre o patrimônio similar ao da Colômbia, e por um imposto sobre transações financeiras.
O governo pode ajudar a financiar a transição através da venda de alguns de seus ativos estrangeiros. Ao mesmo tempo, terá que reestruturar sua dívida para reduzir os 17 bilhões de dólares em pagamentos da dívida (juros e principal) a serem pagos no próximo ano e meio.
Tudo isso é viável, mesmo com o preço do petróleo atual, porque a Venezuela já ajustou seu nível de importações para corresponder a esta queda do petróleo, que fornece mais de 90% dos ganhos em dólares do país. Foi um ajuste enorme; as importações caíram a mais de metade desde 2012. Para efeito de comparação, a Grécia, após mais de seis anos de depressão, reduziu suas importações em 28%.
Isso significa que a parte difícil do ajuste – que muitas vezes exige que as pessoas reduzam seus padrões de vida a fim de reduzir as importações drasticamente – já foi feita. Agora os preços relativos precisam ser ajustados para que a economia se recupere. A conclusão é que a Venezuela pode voltar a crescer rapidamente, sem a prolongada recessão criada normalmente pelo ajuste neoliberal.
Grande parte da esquerda, incluindo pessoas no governo e na base do PSUV, rejeitam essas reformas econômicas. Pensam que é um “pacotaço” semelhante às reformas do FMI ou neoliberais que aumentaram a pobreza no passado. Veem a taxa de câmbio fixa como uma medida socialista e uma taxa flutuante como uma reforma do “mercado livre”. Mas, na realidade, o mercado paralelo é um dos “mercados livres” mais prejudiciais que existem; é o “capitalismo salvagem” que Hugo Chávez denunciava. (O próprio Chávez flutuou com sucesso a moeda da Venezuela em fevereiro de 2002, e as reservas de dólares aumentaram apesar da grave instabilidade política). Podemos lembrar ainda que o FMI apoiou as taxas de câmbio fixas e sobrevalorizadas com resultados desastrosos na Argentina, no Brasil, na Rússia e em vários países asiáticos nos últimos anos do século 20.
Não há nada de neoliberal em um programa no qual o governo cria emprego, protege os salários da inflação (o que não aconteceu desde que a inflação começou a disparar, cerca de quatro anos atrás), subsidia alimentos e itens essenciais em grande escala e protege a população em geral do peso do ajuste dos preços relativos.
Há ainda aqueles à esquerda que parecem acreditar que a Venezuela pode se recuperar sem corrigir seus desequilíbrios mais fundamentais e destrutivos. Em 1º de setembro, Alfredo Serrano, assessor do governo, publicou oito “teses econômicas” sobre a Venezuela. Em 2.700 palavras, não há uma menção ao sistema de taxas de câmbio desequilibrado da Venezuela.
Ao mesmo tempo, o governo dos EUA – que tem buscado uma “mudança de regime” na Venezuela nos últimos 15 anos – vem tentando desestabilizar ainda mais a economia. Em março de 2016, o presidente Obama declarou mais uma vez que a Venezuela representava uma “ameaça incomum e extraordinária à segurança nacional” dos Estados Unidos e impôs sanções econômicas. As sanções em si não são economicamente importantes, mas são uma mensagem aos investidores que sabem o que acontece aos países rotulados como uma ameaça extraordinária para os Estados Unidos. O governo Obama também pressionou instituições financeiras norte-americanas a não negociar com a Venezuela.
A mídia internacional e suas fontes de sempre também desempenham seu papel tradicional, e algumas das notícias amplamente divulgadas estavam erradas. Em 2015, reportagens afirmavam que a taxa de pobreza havia aumentado para 76%, quando isso era praticamente impossível. O FMI, que tem um longo histórico de previsões influenciadas politicamente, projetou que o PIB encolheria em 10% no ano passado, quando o valor real foi de 5,7%. A mídia está divulgando projeções do FMI de uma inflação de 720% para este ano, embora seja provável que seja longe disso. A necessidade de tantos jornalistas de exagerar, mesmo quando a Venezuela enfrenta sua pior crise econômica em décadas, é uma evidência da extrema hostilidade da mídia ao governo venezuelano. Mas mesmo durante grande parte do boom econômico entre 2003 e 2008, quando o emprego crescia e a pobreza caía rapidamente, era bem difícil encontrar algo de positivo sobre a Venezuela na grande mídia.
Deve ficar claro, no entanto, que a economia venezuelana não se recuperará, mesmo que os preços do petróleo voltem a subir rapidamente, sem algumas reformas importantes capazes de resolver seus piores desequilíbrios econômicos.
*Mark Weisbrot é codiretor do Center for Economic and Policy Research, em Washington, e presidente do Just Foreign Policy.
Fonte: Portal Vermelho