Opinião

Impeachment ou Democracia – qual o papel histórico do STF?

02/06/2016

Num quadro especialmente complexo de degradação da confiança da população nas instituições políticas, desconfiança motivada também pelos numerosos casos de corrupção em investigação judicial na esfera partidária (e, também, pela amplitude da campanha midiática promovida nesse âmbito), incumbia ao STF assumir um papel enquanto “órgão-chave moderador nos embates democráticos”[1].

Alexandre Weffort, de Portugal, para o Resistência

Cabia historicamente ao STF, nomeadamente, a missão pedagógica da promoção da cultura democrática. Em 2009, o ministro Gilmar Mendes, à altura no cargo de Presidente do STF afirmava a convicção “de que o período ditatorial suportado pelos brasileiros serviu-lhes como antídoto contra o anátema odioso de regimes totalitários, alicerçados mais na ignorância, no despreparo do que em qualquer viés ideológico do povo”[2].

Discordando da forma, a opinião citada explicita algumas das razões mais profundas que determinam a luta pela democracia no Brasil e do papel que a Educação e a Cultura tiveram na última década. Discutível será a última frase, na medida em que a promoção do despreparo e da ignorância é, em si mesma, uma característica ideológica (do programa da direita). Por essa razão, com a direita no governo, será precisamente na Cultura e na Educação que veremos, desde logo, sinais evidentes de tentativa de retrocesso.

A sociedade brasileira aguarda o desenrolar de um tenso combate político que está em curso no Senado Federal, em torno do processo de impeachment imposto à presidente eleita Dilma Rousseff. O Senado, que será presidido pelo Presidente do STF, assumirá nesta matéria a competência de órgão judicial, julgador máximo e inapelável. Será, nesse momento (em parte, já o é agora), uma situação excepcional e que caracterizará, efetivamente, um ‘estado de exceção’.

Será excepcional um processo que se encontra previsto na Constituição? A questão não tem resposta simples. O processo, em termos formais, decorre no âmbito previsto pelo texto constitucional, com recurso a mecanismos previstos na ordem política e jurídica brasileira. E, verificadas no plano formal as condições necessárias à face da lei, a regra aplica-se com aparente normalidade. Mas, pela sua natureza específica, porque condiciona direitos e deveres também consagrados, adquire natureza excepcional.

O principal traço do atual ‘estado de exceção’ pode ser definido assim: o impeachment coloca em oposição, como se fossem dados contraditórios, a legitimidade do voto para a eleição presidencial e a legitimidade decorrente do voto para a representação parlamentar.

No entanto, o voto, fonte de legitimação do poder democrático, não é a causa dessa contradição. O sistema parlamentar comporta uma representação plural da sociedade através de um organismo coletivo – o Congresso –, enquanto o sistema presidencial assume a personalidade do Presidente eleito e o seu projeto político como fatores determinantes.

Todavia, algo de perverso ocorre neste âmbito. Observando o protagonismo dos principais atores políticos, o personalismo que impõem nas suas ações, agindo mais em função do título momentâneo que ostentam (presidente disto, vice-presidente daquilo…), reforça a impressão de estarmos perante uma guerra sucessória. O processo de impeachment tem em vista retirar a Presidente eleita – e o seu projeto político sufragado pelo eleitorado –, tendo sido movido por quem se achava na linha sucessória (se não em primeiro lugar, logo no segundo ou terceiro …).

No comportamento dos atores políticos ficou patente a falta de consciência destes em relação aos limites que os próprios se devem impor (limites de decoro), face à natureza da função parlamentar a que se remetem na condição de eleitos. A maioria parlamentar que aprovou o encaminhamento do processo deu um espetáculo degradante e, mesmo na forma do ato (que foi tumultuado, mais parecendo uma sessão pentecostal), demonstrou insuficiente preparo ético para o desempenho de funções representativas públicas.

O contexto do processo de impeachment é essencialmente político – o PMDB, abandonando o Governo de Dilma, procurou colocar um presidente interino (que tinha sido eleito como “vice” na base do projeto político de Dilma). O STF detinha um dever de fiscalização que não se podia limitar à observância do elemento formal. Precisava ir minimamente à substância dos atos. Todavia, assim não aconteceu. O processo de impeachment evoluiu com notória falta de consistência (na demonstração, mesmo que em sede política, de existência das condições tipificadas no art. 85 da Constituição), ficando-se pela manifestação de quezília política contra a Presidente Dilma e seu governo.

A diluição ideológica do PMDB é notória. Evolui ao sabor da maré. Essa será a marca da nova política. Ultrapassando o espírito do texto legal (como sabemos, a lei interpreta-se pela letra e pelo espírito que presidiu à sua elaboração), Temer não se assume na condição de “interino”. Isto é, sabendo das limitações naturais que o processo impõe (por exemplo, ter de aguardar a conclusão do processo no Senado), o presidente interino deveria traçar um plano de contingência. Tinha a obrigação, também moral, de aguardar e manter, pelo menos, uma reserva solidária com a orientação do governo legítimo (através da qual conseguiu ser eleito) e que pode, findo o prazo ou o processo de impeachment, voltar. Mas a agenda política de Temer segue outros critérios. E tem pressa.

A agenda do presidente interino é notoriamente antipopular. Os critérios são sobretudo financistas. E, resguardado numa maioria parlamentar de direita, Temer procura realizar o máximo de reformas no mínimo tempo. A contradição é expressiva. A pressa de Temer é a de quem sabe que tem pouco tempo e menos legitimidade. O prazo do impeachment é, afinal, curto para o seu projeto antipopular e demasiado longo para a formação da decisão no Senado.

As motivações de superfície foram políticas, como já se disse. A questão jurídica será agora dirimida no Senado. Mas, nos últimos dias tornaram-se públicas algumas motivações mais profundas. Por um lado, no sentido de alguns dos mais proeminentes líderes da direita conseguirem escapar à pressão da justiça, limitando assim as consequências do processo “Lava-Jato”. Por outro, servindo interesses geopolíticos que se movimentam em relação ao Brasil e à América Latina.

A direita no poder corre o risco de ver afirmar-se a consciência cívica de alguns dos senadores, que podem inverter o sentido do seu voto, reagindo à situação de degradação galopante nos direitos sociais, bem como ser sensíveis aos indícios de conluio golpista, revelados pelas gravações de conversas dos seus colegas, entretanto vindas a público.

O novo governo, nascido em meio de agitado comércio de influências, procura manobrar entre um poder transitório, porque interino, e um parlamento visivelmente incapacitado. Somou ao processo uma falta de legitimidade política, falta essa que começa por se manifestar no embate com a matéria processual já referida (gravações e delações) levando, para já, à demissão de dois ministros.

Voltamos à questão inicial: qual o papel do STF? A omissão do Supremo na moderação do embate democrático, confundiu-se com o critério de independência do poder Judiciário. Todavia, este critério “não é privilégio dos magistrados, mas garantia dos jurisdicionados”[3], pelo que independência implica também saber assumir o papel histórico de garante da Democracia. Tal constitui ónus que os atuais titulares do STF têm sobre seus ombros, do qual serão cobrados no futuro, tanto pela sociedade civil como pelos seus pares.

***

Diz Temer, o presidente interino, numa frase algo infeliz, valorizando sua experiência em São Paulo, que sabe governar, que “tratava com bandidos”[4], frase que poderemos entender como misto de caracterização do meio político e arrojo de autoritarismo. São dados passos no sentido de trazer ao cenário político personagens mais afeitas à prática repressiva e vemos alterar-se o padrão de comportamento de algumas forças policiais. Manifestam-se sinais de ambição totalitária na direita brasileira, articulando a sua intervenção no parlamento e no governo.

É contra a deriva totalitária no Brasil que importa promover o debate e a mobilização. O poder deixou de ser determinado pela representatividade do voto. Tal constitui um revés contra a democracia! Temer não foi eleito para o papel que procura desempenhar. Os seus ministros interinos também não. Aproxima-se a hora de devolver o poder decisório ao povo brasileiro, através do voto: um “plebiscito por eleições diretas para presidente que remete ao povo a decisão do melhor caminho para se restaurar a democracia”[5].

[1] http://www.stf.jus.br/arquivo/biblioteca/PastasMinistros/GilmarMendes/ArtigosJornais/830312.pdf

[2] http://www.stf.jus.br/arquivo/biblioteca/PastasMinistros/GilmarMendes/ArtigosJornais/835753.pdf

[3] http://www.stf.jus.br/arquivo/biblioteca/PastasMinistros/GilmarMendes/ArtigosJornais/835753.pdf

[4] http://www2.planalto.gov.br/presidente-interino/discursos/discursos-do-presidente-interino/discurso-do-presidente-interino-michel-temer-durante-cerimonia-de-apresentacao-das-medidas-economicas-brasilia-df

[5] Consigna apresentada em 20 de maio pelo PCdoB (http://www.pcdob.org.br/noticia.php?id_noticia=281230&id_secao=3), e secundada em iniciativas de senadores de outras forças políticas, conforme noticiado em http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/04/19/senadores-apresentam-pec-que-propoe-eleicoes-presidenciais-em-outubro.

 

 

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