Opinião
Guerra Híbrida: outra vez as garras do império sobre a Nicarágua
“Fue uma gran noticia para todo el mundo. La gente alegre, consciente de que todo cogía para adelante[1]”.
Por Rita Coitinho*
Tal como a vitória da revolução sandinista, depois derrotada pelas desestabilizações dos “contra”, financiados pelos Estados Unidos e pela interferência direta da CIA nos pleitos eleitorais nos anos 1990, as vitórias consecutivas da Frente Sandinista na Nicarágua, após as derrotas da década de 1990, trouxeram esperança ao povo nicaraguense e aos seus irmãos latinoamericanos. Como em outras nações na porção de cá do continente, a instalação de governos populares e democráticos pareciam inaugurar uma nova era de justiça social e unidade latinoamericana.
Acontece que o império não abriu mão da América Latina. Houve quem afirmasse que os EUA reorientaram sua política externa para o Oriente Médio e o cerco à Rússia e à China e, por isso, deixaram de intervir na América Latina. Uma ilusão, basta recordar o golpe que, em 2002, retirou Hugo Chávez do palácio Miraflores por dois dias. A presença de agentes estadunidenses no episódio foi amplamente relatada. É preciso compreender que, desde o Compromisso de Santiago, cuja concepção vem da Comissão Trilateral – conforme já exploramos em nosso artigo de fevereiro deste ano (http://www.resistencia.cc/democracia-aprisionada/), o império modificou seus métodos de atuação na América Latina, o que não implica em crer que tenha perdido o interesse em manter seu domínio sobre a região.
Ocorre que, com a adesão dos países aos princípios econômicos do neoliberalismo, pouco importa quem está no governo. A coisa muda de figura quando há ruptura dos “consensos” estabelecidos em torno do receituário neoliberal. Na medida em que os governos que se estabeleceram pelo voto na América Latina a partir de 1998, com Chávez na Venezuela, passaram a apostar em coalizões que reduzem a hegemonia dos EUA no continente, novas táticas de intervenção e desestabilização começam a ser utilizadas. Algumas dessas táticas nem são tão novas assim, pois já assistimos ao financiamento de grupos paramilitares e desordeiros em diversas ocasiões da história latinoamericana, como por exemplo na Nicarágua, que é a “bola da vez” do intervencionismo estadunidense versão século XXI. Recordemos[2]:
Em 1854, depois que o governo local tentou impor taxas à embarcação de um milionário estadunidense chamado Cornelius Vanderbilt, a marinha dos EUA bombardeou e destruiu o porto nicaraguense de San Juan del Norte. Logo após o ataque, um conhecido bandoleiro chamado William Walker adentrou ao território nicaraguense.
Em 1855, Walker, financiado pelos banqueiros Morgan e Garrison, invadiu a Nicarágua e proclamou-se presidente. Durante os anos em que esteve no poder, promoveu a invasão dos territórios vizinhos (El Salvador e Honduras) e restaurou a escravidão nos territórios sob seu domínio.
Os mesoamericanos insurgiram-se contra Walker, buscando reorganizar-se autonomamente, até que em 1910, outra vez a marinha estadunidense invadiu a Nicarágua, com objetivo de dar sustentação a um governo “amigo”, de Adolfo Díaz. Nos anos seguintes organiza-se uma resistência aos invasores e a seus fantoches, liderada por um pequeno exército formado por Augusto César Sandino – era um “exército de pés descalços”, genuinamente popular.
Em razão do crescimento da resistência, em 1912 os mariners dos EUA invadem novamente a Nicarágua, dando início a uma ocupação que se estenderia até 1933, com momentos de maior e menor presença de tropas.
Em 1926, diante das disputas entre os partidos Liberal e Conservador, os EUA enviam 16 navios de guerra e 5.000 mariners, em uma ação que garantiu que o líder do Partido Conservador, Adolfo Diás, assumisse a presidência. O exército popular criado por Sandino levanta-se contra os invasores estrangeiros e o governo do Partido Conservador. Ficou famosa a frase do líder popular que, tendo sido intimado a render-se, em 1927, teria dito “quero a pátria livre ou a morte”. Em razão da resistência popular, os EUA ordenam seu primeiro bombardeio aéreo à América Latina, onde morreram mais de 300 nicaraguenses sob bombas e metralhadoras estadunidenses.
Em 1933, os EUA deixam o controle da Nicarágua para Anastasio Somoza e sua Guarda Nacional. Em 1934 a Guarda Nacional de Somoza, com a cumplicidade do embaixador dos EUA, Arthur Bliss Lane, assassinam a Augusto César Sandino, que havia deposto as armas.
Somoza foi morto, em 1956 pelo poeta Rigoberto López Pérez, mas seu filho, Anastasio Somoza Debayle assume em seu lugar. Este só foi deposto pela Frente Sandinista de Libertação Nacional, em 1979.
Já em 1981, a administração de Donald Reagan inicia o financiamento da contra-insurgência com vistas a derrubar o governo sandinista. Os “contras”, como ficaram conhecidos os grupos paramilitares que promoveram tumultos, assassinatos e desestabilizações durante a década de 1980, eram organizados sob a direta orientação da CIA, tendo sido iniciados com sessenta antigos integrantes da Guarda Nacional de Somoza. Os contras chegaram a contar com cerca de 12 mil integrantes, entre os quais havia pelo menos 46 ex oficiais da Guarda Nacional. Juntamente com os assassinatos e desestabilizações, os EUA promoveram uma intensa guerra econômica contra a governo sandinista, com a participação direta do FMI e do Banco Mundial nas chantagens.
Nas eleições de 1990 Washington desempenhou papel central na organização e financiamento da coalizão de oposição, que logrou derrocar a Frente Sandinista, que só voltaria a governar a Nicarágua em 2007, com Daniel Ortega, em um contexto latinoamericano amplamente favorável às coalizões de esquerda.
Resgatar o histórico de intervenções do EUA na Nicarágua é importante porque a amnésia coletiva promovida pelos meios de comunicação a soldo do império tende a, uma vez mais, divulgar os recentes e estranhos episódios na Nicarágua como obra de uma “oposição” genuína, cujas aspirações seriam exclusivamente resultantes de suas insatisfações com o governo de Ortega. É claro que há uma oposição, ou oposições ao governo de Ortega. Essencialmente formada por grupos vinculados às grandes multinacionais que operam na Nicarágua, a oposição conta com algum respaldo nos setores médios, com um discurso muito semelhante ao que se assistiu no Brasil entre 2014/2016, na Venezuela, no Equador, na Argentina etc.: um descontentamento com as reformas sociais e com a articulação regional promovida pelo governo, priorizando as relações com o Caribe e a América Latina. Porém essa oposição não tem unidade interna nem respaldo popular suficiente para dar início a uma campanha bem-sucedida contra o governo. É aí que entra o “apoio” dos EUA.
A marca da guerra híbrida está aí: financiamento de grupos capazes de articular esse perfil, promoção de ações extremamente violentas, com pequenos grupos, de modo a funcionar como um rastilho de pólvora, provocando levantes dos setores médios. Ao fundo, os conglomerados midiáticos, articulados em um discurso unitário de denúncia de “corrupção”, críticas ao afastamento do país em relação aos EUA e promoção do ideário neoliberal e articulação de agentes internos ao próprio Estado – judiciário, polícias etc. Já assistimos a esse roteiro inúmeras vezes. É o imperialismo estadunidense, uma vez mais, retomando o controle da região. As bombas e os mariners já não são necessários, pois há quem faça o trabalho por dentro. Os “contra” foram o laboratório, o resultado nós já conhecemos.
* Rita Coitinho é socióloga, Doutora em Geografia e membro do Conselho Consultivo do Cebrapaz
[1] Omar Cabezas no romance Canción de Amor para los Hombres, acerca da revolução sandinista na Nicarágua.
[2] Informações de www.rebelion.org; Wikipedia (https://es.wikipedia.org/wiki/Anexo:Intervenciones_militares_de_los_Estados_Unidos) e jornal Granma (www.granma.cu)
Fonte: desacato.info