Opinião
Dâmocles e Jonas – leituras da crise através da mídia
Duas notícias veiculadas pela mídia suscitam interrogações sobre o processo da crise política brasileira e apontam a duas referências culturais: de Cícero, à espada de Dâmocles, e Jonas, da narrativa do Antigo Testamento e que, nas tradições náuticas, simbolizará aquele que, por incompetência ou má sorte, compromete aos seus correligionários.
Por Alexandre Weffort, de Portugal para o Resistência
Na primeira notícia, um ministro do STF intervém politicamente na praça pública como se fosse um cidadão comum, não evitando fazer uso do peso que a função em órgão supremo do Judiciário lhe outorga ([1]). Intervindo na esfera política, mesmo quando a toga aconselharia reserva, torna-se assim parte do processo e objeto de análise também pela urgência que revela em marcar o terreno ideológico.
Noutra notícia, desta feita sobre Temer, é denunciada a pressão que sobre ele exerce Eduardo Cunha ([2]). Segundo o Jornal do Brasil, citando coluna do Estadão, Cunha ameaçava, ao cair, “levar junto outros 150 deputados federais, um senador e um ministro próximo ao correligionário” (seria caso para dizer que quem tem amigos assim não precisa de inimigos). A notícia tem a tinta ainda fresca, faltando confirmação da sua consistência. Cunha nega (segundo o Estadão, por meio da sua conta no Twitter), mas foi exatamente isso que o vimos fazer com Dilma, desencadeando o processo de impeachment assim que viu negado apoio do PT na comissão de ética do Parlamento. Dificilmente saberemos a verdade, mas é já significativo a grande mídia dar seguimento à informação; e talvez isso seja até mais relevante que a veracidade do relato.
Sobre a primeira notícia referida, do ministro do STF, ela vem na continuidade de várias outras anteriores, tipificando um comportamento no mínimo estranho (quando comparado ao de outras cortes judiciais do mesmo estatuto, a nível internacional). O STF é composto por 11 ministros. 10 deles raramente são vistos no espaço midiático a opinar sobre questões políticas (essa é, aliás, a conduta que se espera de juízes cientes do princípio constitucional da separação e independência dos poderes).
A presidente eleita (agora afastada) Dilma Rousseff comunicou publicamente a sua disponibilidade para a realização de eleições antecipadas, como a única forma de resolução democrática da crise política no Brasil. Trata-se de uma proposta que começa a afirmar-se em vários quadrantes e que atende a dois princípios fundamentais: de um diagnóstico da séria crise ética que atravessa a política brasileira, cada vez mais visível, onde o sentido de serviço público cedeu lugar ao clientelismo, e do reconhecimento de onde deve situar-se a fonte legitimadora do poder democrático: o voto popular.
Assim que a possibilidade surgiu no horizonte, apareceram logo vozes que se empenham no seu combate a nível ideológico. No dia seguinte ao da afirmação de Dilma pelas eleições antecipadas, vimos o ministro do STF Gilmar Mendes perorando em sentido oposto, que “eleição antecipada é mote político”.
Mendes empenha-se em contrariar a viabilidade desse projeto político, enumerando dificuldades: “a proposta teria de passar inicialmente pelo Congresso Nacional com três quintos dos votos para uma emenda constitucional. Depois, teríamos de enfrentar uma discussão sobre a constitucionalidade da proposta, cuja realização é extremamente difícil”.
A notícia acrescenta, por fim, um vaticínio: “quem não conseguiu um terço de votos para impedir o impeachment terá dificuldade de obter três quintos para aprovar uma emenda constitucional”. O mesmo já dizia Mendes, 6 meses atrás no STF, sobre a impossibilidade de governar que a Presidente Dilma enfrentaria caso o impeachment não se consumasse. A sua preocupação política é notória, mas é sabido que não cabe ao poder judiciário garantir politicamente a governabilidade. Essa será competência partilhada apenas entre o legislativo e executivo.
O vaticínio considera apenas a dimensão formal da democracia representativa numa perspetiva estática. Faz por ignorar a dinâmica da sociedade, dos processos de formação e transformação das vontades coletivas, da luta de classes e dos movimentos sociais. É certo que a atual composição do Congresso, tanto da Câmara como do Senado, não suscita especial confiança numa resolução amplamente democrática.
Noutra notícia, também difundida pela mídia ([3]), diz-se: Mendes afirma que o “impeachment está a caminho de se concretizar”, e considera que “o processo de afastamento da presidente Dilma Rousseff evidencia que “algum tipo de falha grave nós cometemos”, em relação à “fiscalização das instituições”.
Segundo o articulista, Mendes diz que “não tem a ver com política de esquerda ou de direita”, e constata “que o Brasil se tornou uma república egoísta, corporativista”. De seguida, relata o articulista que “Mendes contou que conversou nesta semana com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) e ambos ficaram satisfeitos com o trabalho das instituições”, concluindo com a citação de uma curiosa opinião: “No passado, em crises dessa dimensão, começava-se a falar em nomes de generais. No momento, não conhecemos nomes de generais, mas de juízes”.
Que ilação se pode retirar disto? Que os juízes se devem sentir satisfeitos na condição de substitutos de generais, onde o poder judiciário substitua o militar, numa crise que abala a cúpula das estruturas do poder político? O atual processo de impeachment configura cada vez mais isso: uma tomada do poder apoiado, não na força da farda militar, mas na da toga. Mas isso não garante a eliminação das causas da crise, nem da corrupção que grassa no sistema político.
Diz Mendes que “a realidade fiscal não aceita desaforos, brincadeiras com essas questões resultam no estado que hoje nos encontramos. Se formos adotar uma ideologia, que seja a da estabilidade financeira”. Assim, numa penada, imiscuindo-se em processo que se encontra em fase de julgamento na mais alta instância, o magistrado dá antecipadamente por provada a acusação sem sequer ouvir a defesa, pretendendo ignorar que, estando o impeachment a meio caminho, competirá ao Senado, sob a presidência de Ricardo Lewandowski, julgar do sentido em que se fará a sua resolução.
Na sua intervenção política, Mendes acaba por desqualificar o papel de instituições do Estado (no caso, do Senado). Enfatiza a constatação de que os votos necessários para derrotar o impeachment são insuficientes para governar. Logo, o governo de Dilma estaria politicamente condenado à partida. Seguindo essa lógica, o próprio julgamento e o desempenho do Senado no rito do impeachment seriam reduzidos a mero formalismo e desperdício de tempo (vemos como se instalou a pressa no processo).
O linguajar é também indiciador do sentido que impregna o discurso político de Mendes: a sua ideologia é financista – da estabilidade a qualquer custo, dentro dos parâmetros da alta finança – e de autoritarismo (fala de uma realidade que diz não aceitar “desaforos” – quereria talvez dizer, “contradições”?).
E a satisfação que, segundo a notícia, terá sido manifesta por Mendes e FHC em relação ao trabalho das instituições? Ficaram satisfeitos com o nível de desempenho institucional revelado pela Câmara no passado dia 17 de Abril? Ficam satisfeitos por ver a cúpula do Senado debaixo da espada de Dâmocles, com inquéritos em curso no STF e pedidos de prisão (que só não foram atendidos porque os ilustres senadores não foram apanhados em flagrante)? Ou será que terão a satisfação de ver Cunha, tal qual Jonas, colocar em risco o próprio governo interino de Michel Temer?
A situação, os papéis desempenhados e os objetivos mais fundos, clarificam-se pouco a pouco. Muitas questões com uma única certeza: a cada dia que passa, opor-se ao impeachment, opor-se ao golpe, não é apenas uma questão política: é questão de dignidade.
[1] http://portugaldigital.com.br/politica/ver/20103622-gilmar-mendes-diz-que-eleicao-presidencial-antecipada-e-qmote-politicoq-de-dilma
[2] http://www.jb.com.br/pais/noticias/2016/06/13/eduardo-cunha-avisa-a-michel-temer-que-se-cair-leva-deputados-e-aliados/
[3] http://www.valor.com.br/politica/4596367/gilmar-mendes-impeachment-esta-caminho-de-se-concretizar