Opinião

Ciro e Haddad pelas lentes de Ignácio Rangel

19/09/2018

Marcos Aurélio da Silva (*) para Resistência

O economista de formação política leninista Ignácio Rangel tinha uma visão particular do processo histórico brasileiro. Uma visão que apegava-se como nenhum outro dentre os representantes da nossa intelectualidade de esquerda à fértil ideia hegeliano-marxista da progressividade da histórica.

Não é o momento de avaliar se esta visão guardava ou não um exagerado otimismo, sobretudo se pensamos nas condições políticas que estão diante de nós, quando as classes dominantes, partes interessadas no golpe que derrubou Dilma Rousseff, dão sinais de franco recuo diante de qualquer caminho para a democratização da vida nacional.

Estamos falando da instauração de um regime de direitos que, como o pensava Ignácio Rangel, superando as velhas relações que se combinavam na acumulação capitalista que correu o século XX, o País seria capaz de cumprir antes de abrir as portas do socialismo.

O fato é que há muito de atual nos problemas que Rangel enxergava na formação brasileira do período final da ditadura de 64. Economista de profissão, sua atenção voltava-se ao problema do investimento; comunista por opção, ligava este problema à uma estratégia de superação da dominação financeira que a ordem imperialista fazia recair sobre a nação.

Atento observador do processo de acumulação nacional, Rangel não se entregava às teses que, à direita ou à esquerda, explicavam esta acumulação apenas pelo arrocho salarial da camada proletária. Detendo grandes massas de meios de produção, ou em terminologia keynesiana, por ele também dominada com maestria, poupança potencial, os recursos ao crescimento econômico se localizavam não no bolso dos trabalhadores, mas exatamente nos “cofres” — sob a forma potencial como se disse, poupança ex post resultante do investimento em sentido keynesiano — das classes dominantes.

Eis que, gerar emprego e renda, bem como realizar outras reformas necessárias à instauração de um Estado de bem estar social, significava fazer a classe dominante investir. Seguramente, com um sistema financeiro já complexo, resultado de uma acumulação industrial que, não obstante nos marcos do Terceiro Mundo, avançou apreciavelmente, esta solução equivale a encontrar caminhos difíceis de tatear à primeira vista.
Finda a ditadura, os anos se arrastaram e as coisas não andaram exatamente como supunha Rangel. Os ziguezagues de Sarney, às voltas com a moratória da dívida externa e o combate à inflação, o ensaio de neoliberalismo de Collor, e depois a aberta adesão dos governos do PSDB aos ditames do mercado e aos interesses do império, entregaram aos governos do PT um rol de tarefas não desprezíveis no campo dos investimentos e da proteção social.
Para Rangel a carência de investimentos se situava notadamente no campo das infraestruturas (de transporte urbano e regional, de saneamento básico). Investimentos do capital operando no Brasil nestas áreas, vale dizer, ocupando materiais-primas, equipamentos e mão de obra nacional, seriam capazes de dispensar a cobiça imperialista, desejosa de abocanhar estas oportunidades com seus capitais e mão de obra, o que equivaleria a maciças importações, mais endividamento e mais dependência.

Bem vista as coisas, era o que Dilma Rousseff e o ministro Guido Mantega buscavam enfrentar quando, em 2012, um projeto de concessão de infraestruturas com controle das tarifas por parte do governo, bem como uma pressão do mesmo governo para o setor bancário reduzir as taxas de juros, não conheceu apoio das classes dominantes.  Sabemos do calvário que se seguiu, com as manifestações de 2013 (não por acaso tendo a deficiência das infraestruturas no centro dos protestos), a vitória apertada sobre Aécio Neves, a paralisação do governo em 2015 e o golpe do impeachment em 2016.

O fato é que havia um projeto em andamento no governo do PT e ele parecia responder aos problemas formulados por Rangel.  Os difíceis caminhos que a complexidade da economia nacional exigia trilhar para uma intermediação financeira que fosse capaz de conduzir a poupança potencial aos investimentos em infraestruturas pareciam passar pelas debentures. E aqui figuraria o papel do BNDES, banco de desenvolvimento que, fazendo valer suas funções precípuas, atuaria no mercado de ações comprando os papeis dos investidores em infraestruturas de modo a estimular a citada intermediação financeira.

Escrevemos sobre isso, destacando a emergência da solução “debentures”, em um artigo que analisava mais amplamente o reformismo da era Lula à luz da periodização de Rangel. A rigor uma leitura de longo prazo do processo de acumulação aberto na década de 1930, que concluiria a transição capitalista nacional, segundo assinalava o economista maranhense. Um processo que lembra os 80 anos transcorridos pela Revolução Francesa tal como a caracterizou Gramsci, embora entre nós se trate de uma revolução passiva, ou uma via prussiana, como o mesmo Rangel chegou a assinalar (O Brasil da era Lula: transição capitalista, reestruturação territorial e questão financeira. Revista Geousp – espaço tempo, vol. 18, nº 2, 2014, disponível em http://www.revistas.usp.br/geousp/issue/view/6465/pdf_39).

Tomemos agora os programas de Fernando Haddad e Ciro Gomes no que diz respeito a este problema. Me limito às entrevistas que os dois candidatos concederam à Carta Capital (Ciro Abre Fogo, edição de 22 de agosto, nº 1017 e Herdeiro de Lula, edição de 12 de setembro, nº 1020) e ao que apresentou a assessoria econômica de cada candidatura no Fórum Exame, realizado em 3 do corrente (os links estão disponíveis aqui https://exame.abril.com.br/economia/assessor-de-ciro-gomes-fala-em-privatizacao-de-77-estatais/ e aqui https://exame.abril.com.br/economia/pt-propoe-comprar-debentures-de-infraestrutura-para-acelerar-recuperacao/. Acessos em 15/09/2018).

A comparação, como acima ficou claro, deve se centrar nas propostas que envolvem os investimentos em infraestrutura e os recursos financeiros para isso.
Vale dizer que as duas candidaturas são as únicas que, com chances de vitória, estão empenhadas realmente em superar a trava aos investimentos que a emenda constitucional 95 impôs. Portanto empenhadas em remover um dos pilares centrais do golpe de Estado de 2016.

Proponho que se analise o que está sendo indicado para as reservas cambiais de US$ 370 bilhões acumuladas pelos governos do PT. Dando continuidade ao que já vinha sendo ensaiado durante os governos Dilma Rousseff, o programa Haddad fala do uso de cerca de 10% destas reservas para investimentos em energia. Ou, na exposição mais precisa do seu assessor econômico ao Fórum Exame, a ideia é “formar um fundo de investimento de infraestrutura com o dinheiro da reserva”, que seria “aplicada em debentures de infraestrutura que já estão no mercado”. Como se vê, exatamente o mecanismo que permitiria impulsionar a intermediação financeira de que falava Ignácio Rangel.

Em Ciro Gomes as reservas tem uma destinação um pouco diferente. Elas não são destinadas a auxiliar a recuperação dos investimentos. Como explica o próprio candidato na entrevista dada à Carta Capital, do montante de reservas cambiais de que dispõe o País, “só precisamos manter uns 200 bilhões, o suficiente para garantir um ano e meio de importação. O restante pode ser usado para abater a dívida.” Após esta operação, que usando cerca de 46% das reservas, consiste em chamar o credor e “pagar agora”, para com isso “consertar o fluxo” e “economizar uma montanha de dinheiro com juros”, a candidatura Ciro propõe “uma tributação mais progressiva sobre lucros e dividendos, sobre as grandes heranças” e “sobre as transações financeiras”.

Tributação progressiva é também uma medida assinalada pela candidatura Haddad. Fala-se de “uma reforma bancária, com imposto progressivo para o setor. Quanto mais juros o banqueiro cobrar, mais tributos ele vai pagar, até porque o lucro dele será maior.” E eis a grande diferença, segundo nos parece. Não há aqui a intenção de torrar as divisas pondo na mão dos banqueiros quase metade delas, um caminho que, voltando aos argumentos de Rangel, nada indica possa estimular a produção.

Certamente o programa Haddad não fala em auditoria dívida, uma medida muito mais profunda. Mas tampouco se fala em pagamento. As divisas servem à recuperação do crescimento econômico e para isso o principal instrumento estatal de intermediação financeira — o BNDES — é mobilizado. Ressalte-se, o Estado está no centro deste deslocamento setorial de recursos.

As diferenças entre estas duas medidas convidam a pensar nas composições políticas das duas candidaturas. A chapa Haddad-Manuela, até pelas dificuldades impostas agora pelo golpe, é uma chapa rigorosamente “puro sangue”, organizada em torno do PT e do PCdoB. Embora possa dizer algo sobre a marcha das continuidades que acompanha esta formação de tipo prussiano que é o Brasil, não muda muito o fato de que em torno dela as composições estaduais se abram para um leque mais amplo de alianças.

Com efeito, é na chapa Ciro Gomes-Kátia Abreu que o quadro é mais aberto a contradições. “O Brasil não aguenta um governo de esquerda. Precisa de uma conciliação entre quem produz e quem trabalha”, afirma Ciro, que arremata dizendo: “Queria que meu vice fosse um industrial de São Paulo. Não consegui. Kátia sempre se dispôs a me ajudar”, como sabemos ela mesma representante da burguesia agroindustrial. Na medida em que a burguesia desejada por Ciro revela um certo grau de financeirização, se pode aqui encontrar um argumento capaz de explicar o compromisso que assumiu diante da dívida pública.

Não significa isto que a candidatura Ciro não seja uma alternativa ao golpe. Talvez até mesmo porque essa financeirização das camadas proprietárias não serja tão profunda como às vezes se pensa — o próprio candidato levanta este argumento, e ele deve ser tomado em conta — , Ciro apresenta-se com um claro programa de ruptura com a ordem do golpe.

Uma ruptura todavia “por cima”, evidenciada no fato de que, as classes dominantes aceitam superar o atual estado de coisas, desde que sejam pagas com os recursos amealhados pelo Estado. Uma saída por assim dizer “bonapartista”, ainda que um bonapartismo de esquerda, que acena para os interesses das classes populares (emprego, revisão da cruel contrarreforma trabalhista) mas o faz sem lhes entregar tudo e um tanto a perda de vista. E eis que é também a candidatura Ciro que fala de privatização de estatais, ainda que não estatais estratégicas (entre as estratégicas estão a Petrobras, a Eletrobras e o Banco do Brasil) e até mesmo uma reforma da previdência que “conversa com o mercado”, como o disse André Singer em um artigo da Folha de São Paulo do último 18 de agosto (aqui o link: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/andresinger/2018/08/diferencas-substantivas.shtml?loggedpaywall. Acesso em 15/09/2018).

Como se vê, estas não são “trocas” encontráveis nos argumentos econômicos de Ignácio Rangel, ele que frequentemente alfinetava esquerda (João Manuel Cardoso de Mello, Conceição Tavares) e direita (Delfim Netto) pelo defeito de não observarem que a acumulação de capital no Brasil pode — e deve — dispensar qualquer forma de peso sobre o bolso dos trabalhadores. Ou, para usarmos palavras mais técnicas, não há, no economista marxista maranhense, qualquer trade off entre crescimento econômico e crescimento da massa salarial, dos salários reais e mesmo do conjunto de direitos que toca à população trabalhadora no seu todo. O que significa dizer que, tomando por corretas as formulações do mestre maranhense, a saída do golpe não pode ser por outro caminho senão aquele que, sendo antiimperialista — como de fato o são as candidaturas de Ciro e Haddad — , seja também rigorosamente democrático e popular.

* Prof. da Universidade Federal de Santa Catarina. Doutor em Geografia humana pela FFLCH-USP e estágio de Pós-doutorado em Filosofia política na Universidade de Urbino (Itália).

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