Opinião
Anão ou gigante? A Política Externa e as eleições presidenciais
Por Rita Coitinho (*)
O Plano de Governo de Lula/Haddad/Manuela inicia-se pela Política Externa. O item 01 do documento, intitulado “Soberania Nacional e Popular na Refundação Democrática do Brasil” articula a orientação externa do governo com o “desafio de refundar e aprofundar a democracia no Brasil na contramão do avanço do conservadorismo no cenário internacional, do autoritarismo na América Latina, do neoliberalismo e da intolerância no Brasil”. Retomar o caminho de uma política externa “Ativa e Altiva”, com foco nas iniciativas de integração regional, no multilateralismo, no aprofundamento de relações com o continente africano e a ênfase no fortalecimento de coalizões, como os BRICS, são as orientações gerais de um programa de governo formulado na perspectiva de um país soberano. Somente o programa de outro candidato do campo nacional e popular, Ciro Gomes, dá peso semelhante às relações internacionais do Brasil, dedicando-lhe quatro páginas, no 12º item do programa, onde afirma uma concepção autonomista, multilateralista e soberana de relações internacionais.
No documento de diretrizes da candidatura de Geraldo Alckmin, do mesmo partido do atual Ministro de Relações Exteriores, Aloísio Nunes, a política externa é um detalhe, mencionado vagamente em um parágrafo da página 15 – ter como referência os objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS/ONU). No Power Point de Jair Bolsonaro, o slide número 79, intitulado “O novo Itamaraty”, menciona o afastamento do Brasil das “ditaduras assassinas”, indica prioridade de aproximação com EUA, Israel e Itália e países latinoamericanos com governos ideologicamente compatíveis com o governo brasileiro. Contraditório, o documento fala ao mesmo tempo em “integração” – apenas com os países vizinhos politicamente alinhados – e em prioridade aos acordos bilaterais. Alguns slides antes, o documento de Bolsonaro enfatiza o que chama de “abertura comercial” e privatizações, o que pode ajudar a compreender o que quer dizer sua prioridade ao comércio na parte de política externa.
O geógrafo Milton Santos insistia em que a principal característica do processo denominado de globalização é a existência, a um só tempo, do aprofundamento crescente das relações econômicas dos países, a ponto de não ser mais possível compreender a economia global sem que se esclareça as articulações das realidades internas de cada formação nacional com suas relações exteriores e, de outro lado, o aprofundamento das assimetrias entre as nações e, mesmo, entre regiões de um mesmo país. Diante deste quadro, pensar um programa de governo sem que se tenha clareza da centralidade das relações internacionais nas determinações internas de uma formação nacional revela ou absoluto desconhecimento dos nexos entre a realidade nacional e externa do país ou, o que é mais provável no caso das candidaturas à direita (do PSDB e do “projeto Fênix” de Bolsonaro, mas também das candidaturas de Henrique Meirelles, Álvaro Dias, Marina Silva e João Amoêdo), uma aceitação tácita das assimetrias.
Durante os governos do PSDB nos anos 1990’s, a ideia de uma inserção internacional passiva, condizente com o baixo peso internacional do Brasil, levou o país a praticar aquilo que ficou jocosamente conhecido como “diplomacia dos pés descalços” (em alusão ao episódio em que o ministro das relações exteriores do Brasil tirou os sapatos num aeroporto dos EUA, seguindo passivamente as normas de segurança daquele país a despeito de sua posição como alto representante do Brasil). Nos anos de governo do Partido dos Trabalhadores adotou-se uma orientação pró-ativa que partia da ideia de que o Brasil tem grande peso no cenário internacional, por seu tamanho, tradição de nação pacífica e posição de destaque na economia mundial e regional. Em poucos anos o Brasil passou de país periférico a player mundial, liderando coalizões para lutar pela posição dos países em desenvolvimento na Organização Mundial do Comércio e nas reformas do Sistema das Nações Unidas. Articulado com outros Estados da América do Sul, o Brasil passou a integrar diversas iniciativas de integração regional, além de dar impulso ao MERCOSUL, um dos mais importantes blocos comerciais do mundo. Chamando tanta atenção para si, o Brasil passou a ganhar projeção em regiões distantes, como o Oriente Médio e Ásia, além de lançar pontes para ampliação de sua presença e cooperação com o continente africano, nova “fronteira” das disputas comerciais do século XXI. A consolidação dos BRICS como espaço de articulação política e econômica trouxe ao mundo esperanças de formatação de uma nova ordem econômica, em que o Dólar poderia perder sua proeminência a partir da articulação das novas economias emergentes na formatação de uma nova e poderosa instituição financeira – o Banco dos BRICS.
Com o golpe de Estado de 2016 e a ascensão de governos de orientação neoliberal também em países vizinhos, como foi na Argentina, quase todas essas iniciativas de imenso prestígio internacional foram colocadas em “modo de espera”. O impulso sensacional ao MERCOSUL foi refreado, a UNASUL começa a se despedaçar e, pouco a pouco, antigos espaços onde a vontade dos EUA tinha mais peso do que os demais países do continente, como a OEA (Organização dos Estados Americanos), retomaram a centralidade nos debates regionais. Os BRICS seguem seu caminho, contudo com sua letra B cada dia mais apagada e distante. O Brasil, sob a direção dos mesmos grupos que dominavam a cena política nos anos 1990’s, retorna à condição de anão diplomático, a despeito de suas dimensões de gigante.
A concepção que cada bloco político apresenta sobre as relações externas esclarece seu posicionamento interno. Se nos debruçamos sobre o período do pós-segunda guerra, de 1945 até os dias de hoje, observamos que a defesa de uma política externa autônoma e propositiva aparece junto com os governos de corte nacional-desenvolvimentista. Concomitantemente, a abordagem do tema pelos grandes veículos de comunicação, normalmente muito vinculados aos interesses de grandes conglomerados financeiros internacionais, revela a oposição reiterada de certos setores dominantes às iniciativas autonomistas.
É sintomático que a direita brasileira seja entusiasta de uma abertura comercial irrestrita e de um baixo perfil diplomático enquanto as burguesias europeias e estadunidense sejam campeãs do protecionismo quando se trata de sua economia doméstica. A inconclusão crônica da Rodada Doha (iniciada em 2001 no âmbito da Organização Mundial do Comércio) deve-se, fundamentalmente, à recusa dos europeus e estadunidenses em negociar seus subsídios agrícolas, posição que foi enfrentada por uma coalização (o G-20 comercial) onde o Brasil jogou papel de destaque – também sob os governos do PT. O discurso do livre comércio, quando emanado dos países centrais, é sempre de mão única: redução de tarifas por parte dos países mais pobres, especialmente para produtos manufaturados de alto valor agregado e manutenção de subsídios e outras estratégias protecionistas quando se trata de produtos agrícolas, onde os países em desenvolvimento são mais competitivos.
Para partidos como o PSDB, para os ideólogos do programa de Bolsonaro (e também de Marina, Amoedo, Henrique Meirelles e Álvaro Dias, que aqui deixamos de fora da análise por sua inexpressividade), não cabe ao Estado brasileiro dirigir uma ação externa autonomista e propositiva. O Brasil deve acomodar-se ao eterno papel de coadjuvante na cena internacional e aceitar os termos de troca impostos pelos países centrais. Essa posição revela a natureza cosmopolita das elites que sustentam tais programas. Seu “nacionalismo” resume-se às cores da bandeira, numa oposição artificiosa entre “vermelhos” e “verde-amarelos”. Adequam-se perfeitamente, na verdade, à posição de classe dirigente de um país subalterno na cena internacional e estão satisfeitas com a condição de sócias minoritárias do capital financeiro internacional.
De outro lado, num fenômeno muito semelhante ao ocorrido entre outros países periféricos, são os blocos políticos nascidos dos setores populares – trabalhadores assalariados, camponeses etc. – que assumem um papel genuinamente nacional, confirmando aquilo que já dissera Mao Tse-Tung, que nos países periféricos a luta nacional é uma questão da luta de classes. Isto porque a verdadeira “direção” da expansão capitalista mundial – que muitos denominam de globalização – parte do centro do sistema, das grandes potências. Na medida em que as burguesias internas concentram, cada vez mais, seus investimentos na esfera financeira, controlada a partir de fora, cresce sua dissociação da vida nacional e sua identificação, inclusive cultural, com os países centrais. Como esperar de uma elite cosmopolita, com hábitos cada vez distanciados da vida do povo, que traga em seus programas de governo metas e conceitos voltados a fazer do Brasil um ator de destaque no cenário nacional? Não se pode esperar. Política Externa nacionalista, soberana e democrática só se encontra nos programas e governos dos partidos de esquerda.
(*) Doutora em Geografia, integra o Conselho Consultivo do Cebrapaz – Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz