Turquia
Alexandre Weffort: Brasil e Turquia, correlações nas malhas do golpe
Os acontecimentos mais recentes na Turquia convidam à comparação com a situação vivida no Brasil: os dois países vivem a circunstância de “golpe de Estado”.
Por Alexandre Weffort*
Mas, sendo aquela circunstância (golpista) comum, há traços que os diferenciam, desde logo, pelos meios envolvidos no ato concreto: o golpe no Brasil segue uma via parlamentar, enquanto o golpe na Turquia segue a via militar. Também são diversas as fase da sua concretização: no Brasil, o golpe foi dado com o afastamento de Dilma da presidência, aguardando o desenrolar do processo no Senado, enquanto na Turquia o golpe ganhou o rótulo de “tentativa” – a intentona militar foi frustrada, dando sequência a uma reação revanchista por parte do presidente Erdogan, na perseguição aos seus opositores mais diretos.
Sendo visíveis as diferenças, há a apontar algumas similitudes. Se o Senado cumprir a sua missão de forma coerente, fazendo um julgamento do processo de impeachment em face à matéria concreta e dos dados apurados, o processo deverá ser arquivado ou derrotado. Mas essa possibilidade obriga que o juízo político a ser produzido seja coerente com as regras e a realidade apurada (a verdade dos fatos, em termos jurídicos), possibilidade que exigirá dos senadores um grau de elevação ética que não tem sido muito frequente observar (pelo contrário, ao declararem o seu posicionamento a favor do impeachment antes e independentemente da matéria probatória, demonstram falta da elementar isenção para o desempenho da missão de julgar).
Também encontramos, atendendo ao que a mídia repercute dos acontecimentos na Turquia, contradições gritantes, como a que foi fixada na seguinte frase: “Acerca da Turquia conseguimos ler ‘restabelecimento da democracia’ e ‘restabelecimento da pena de morte’ na mesma frase.”[1] E, nas notícias últimas, vemos o estado de emergência instaurado na Turquia e suspensa a Convenção Europeia dos Direitos Humanos no país. No Brasil também vemos surgir uma argumentação ultra-retrógrada na política educativa (a escola sem partido) e a ameaça explícita aos movimentos sociais, enquanto os apelos ao envolvimento militar na crise política se fazem ouvir no mesmo sentido, de um retrocesso à ditadura.
Também podemos encontrar uma certa semelhança na ação revanchista no caso brasileiro, ao considerarmos a forma como o judiciário tem focado a sua atenção no PT, nos seus militantes e em Lula da Silva, ou no modo como as forças policiais agem em relação aos protestos de rua.
E, embora o Brasil mantenha formalmente intocados direitos civis constitucionalmente consagrados, a política seguida pelo governo interino de Temer iniciou já o ataque às conquistas sociais (nos planos econômico, jurídico e cultural) com que a nação brasileira procura superar as sequelas do esclavagismo, do racismo e da exclusão social de milhões de cidadãos.
Também encontramos, no golpe no Brasil e no golpe na Turquia, a presença do fator religioso. No Brasil, vimos como o comportamento dos deputados foi marcado pela prática religiosa, nomeadamente, pentecostal. Por seu lado, na Turquia, é acusada uma comunidade religiosa – a Comunidade Gülen – de estar implicada na intentona militar.
As causas objetivas que conduziram às situações golpistas no Brasil e na Turquia são específicas. Mas em ambas as situações, a brasileira e a turca, manifesta-se de forma escamoteada a presença do “amigo americano”, dos interesses geopolíticos dominantes do capitalismo à escala global: a presença do imperialismo.
“Em cada situação há uma dissolução e uma crise multidimensional quanto à hegemonia do capital. O que é realmente perigoso não é essa dissolução, mas a desorganização da classe trabalhadora”, afirma o Partido Comunista Turco [2] ao pronunciar-se sobre o golpe.
Aquela afirmação também se aplica ao caso brasileiro, ressalvadas as diferenças óbvias das circunstâncias históricas, sociais e culturais de cada nação. Na apresentação à edição brasileira do livro de Domenico Losurdo, A esquerda ausente – crise, sociedade do espetáculo, guerra, Walter Sorrentino ressalta, do pensamento daquele autor, algo que ajuda a perspectivar a análise do momento atual:
“O entrelaçamento de dois processos entre si conflitivos: aquele dos países saídos da dominação colonial e neocolonial, empenhados na luta pelo desenvolvimento econômico e tecnológico autônomo (que alcança sucessos importantes, caso da China e de outros), que tende a contrastar e restringir o processo que por alguns séculos reservou ao Ocidente uma posição de absoluta superioridade em relação ao restante do mundo; e aquele, simultâneo, em que nos países capitalistas avançados se abre um abismo, a “grande divergência” que separa do resto da população uma elite opulenta cada vez mais restrita”[3].
No Brasil contemporâneo observamos traços da coexistência desses dois processos. No rescaldo da eleição de Rodrigo Maia para presidente da Câmara de Deputados, José Reinaldo assinala que a “esquerda sofreu dura derrota (…) agravada pela orientação confusa e errática que adotou”, afirmando, em consequência, que a “esquerda precisa urgentemente reaprender a fazer oposição às classes dominantes e seus partidos, recompor suas forças e construir uma política de alianças ampla, das forças democráticas, populares, patrióticas e progressistas, com nitidez programática”[4].
Na sua posição geográfica, a Turquia, fronteira histórica da Europa ocidental e do mundo islâmico, encontra-se no cerne do conflito: os dois processos nela se exprimem através das suas contradições internas e do seu papel no jogo geo-estratégico, hoje confrontada com a crise migratória, a guerra na Síria (da qual é parte interessada e cúmplice), assim como as tensões provocadas pelo processo de aproximação (com vista à integração) na comunidade europeia.
Temos, assim, o Brasil e a Turquia em etapas diferentes de uma luta comum.
*Alexandre Weffort, residente em Portugal, é professor, mestre em Ciência das Religiões e doutorando em Comunicação e Cultura
[1] Joana Manuel, citada na newsletter AbrilAbril de 19 julho’16 (http://www.abrilabril.pt/)
[2] http://www.resistencia.cc/pc-da-turquia-erdogan-e-um-politico-burgues-inimigo-da-classe-trabalhadora-nao-e-diferente-dos-golpistas-que-pretendem-derruba-lo/
[3] http://www.pcdob.org.br/noticia.php?id_noticia=283726&id_secao=3
[4] http://www.zereinaldo.blog.br