Opinião
A mensagem que vem de Samarcanda: o mundo multipolar nasceu
A cúpula da Organização de Cooperação de Xangai, realizada em Samarcanda, mostra que os EUA não podem deter as mudanças no mundo
Por José Reinaldo Carvalho (*)
A cúpula da Organização de Cooperação de Xangai (SCO na sigla em inglês) foi realizada em Samarcanda, no Uzbequistão, nestas quinta e sexta-feira (16). Um acontecimento de peso na conjuntura internacional, embora muitos não se deem conta. Alguns, desinformados, desconhecem a importância da Ásia Central, outros por obstinação em posições ultrapassadas, recusam-se a admitir que a situação mundial mudou.
Para ficarmos preliminarmente nos aspectos mais aparentes e simbólicos, vale destacar que os líderes de duas das maiores potências da atualidade estiveram presentes e regeram o encontro – Xi Jinping, líder máximo da China socialista e do Partido Comunista da China, e Vladimir Putin, presidente da Rússia, país que reagiu energicamente às pretensões expansionistas do braço armado do imperialismo estadunidense, a Otan – Organização do Tratado do Atlântico Norte.
A cúpula da SCO é a primeira depois da assinatura da Declaração Conjunta pela China e a Rússia em 4 de fevereiro deste ano, do início da operação militar especial da Rússia na Ucrânia. Ocorre também sob o efeito do fracasso estadunidense no Afeganistão e da crise no Estreito de Taiwan desencadeada pela ação dos EUA de estímulo aos separatistas da província rebelde da China e em desrespeito aos tratados que reconhecem a existência de apenas uma China no mundo, que é a República Popular da China.
A cúpula de Samarcanda salienta-se também em meio a uma ofensiva estadunidense visando a criar mecanismos de hegemonia, intervenção e militarização da Ásia, com o reforço da aliança QUAD (Diálogo Securitário Quadrilateral, formado pela Austrália, Índia, Japão e EUA), e a criação do bloco AUKUS (Austrália, Reino Unido e EUA). Nesse quadro, as atenções dos chefes de Estado se concentraram no apoio ao posicionamento da SCO de promover “o surgimento de uma ordem mundial multipolar justa, baseada nos princípios universalmente reconhecidos do direito internacional, no multilateralismo, bem como na igualdade do acesso à segurança compartilhada, indivisível, inclusiva e sustentável” e de condenar como inaceitáveis as tentativas de alguns países de “tentar garantir a própria segurança à custa da segurança de outros países”.
A Organização para a Cooperação de Xangai foi exaltada por Xi e Putin e os demais chefes de Estado reunidos em Samarcanda como um modelo de cooperação multilateral, de exercício de novos métodos de governança coletiva em torno de assuntos comuns e do desenvolvimento compartilhado, algo raro se considerarmos o período turbulento das atuais relações internacionais e as tendências unilaterais manifestas mesmo quando os Estados Unidos estão sob o governo do Partido Democrata, tido como globalista e multilateralista.
A SCO tem realizado projetos de cooperação nas esferas política, econômica, comercial, cultural-humanitária e outras. Além de fomentar o desenvolvimento compartilhado, e propiciar o incremento de fluxos comerciais e de investimentos na região centroasiática, cujas dimensões se ampliaram com a iniciativa chinesa intitulada Um Cinturão, Uma Nova Rota da Seda, a SCO promove também ampla cooperação e segurança com base em interesses comuns e no direito internacional. Disso resulta que os países vizinhos do entorno da SCO não se sentem ameaçados quando mais países se juntam à organização. Vale dizer que cada vez mais aumenta o número de países dispostos a aderir à organização, demonstrando que se trata de um mecanismo em crescimento.
A cúpula da SCO realizada nos últimos dias é mais uma evidência entre muitas de que emerge o mundo multipolar, sendo necessário considerar nesse novo ciclo da vida internacional o peso de potências como China e Rússia e a importância de regiões como a Ásia Central.
“Estão surgindo transformações fundamentais na política e na economia mundiais e elas têm caráter irreversível”, disse nesta sexta-feira (16) Vladimir Putin na cúpula da Organização de Cooperação de Xangai, sintetizando o sentido da reunião. Ele observou que “está se tornando cada vez mais aparente o papel crescente de novos centros de poder que interagem uns com os outros não se baseando em certas regras impostas de fora que ninguém viu, mas em princípios universalmente reconhecidos do primado de direito internacional e da Carta da ONU, de garantia de segurança equitativa e indivisível, respeito à soberania, valores nacionais e interesses mútuos”.
A SCO foi fundada em 15 de junho de 2001 e é herdeira do antigo grupo dos Cinco de Xangai criado em abril de 1996, como um bloco político, econômico e de segurança .A China e a Rússia, sem hegemonismo, exercem seu papel protagonista, impulsionando o multilateralismo e zelando para contrabalançar o poder da Otan no mundo.
Até a realização da cúpula de Samarcanda são oito os membros permanentes da SCO, segundo o site da Rádio Internacional da China: China, Rússia, Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Uzbequistão (desde 2001); Índia e Paquistão a partir de 2017. O Irã tornou-se agora membro permanente. Devem ingressar na SCO três países observadores: Afeganistão, Bielorrússia e Mongólia, bem como nove parceiros de diálogo: Azerbaijão, Armênia, Camboja, Nepal, Sri Lanka, Arábia Saudita, Egito, Qatar e a Turquia (único membro da Otan no grupo), de acordo com a mesma fonte.
(*) Jonalista, editor do Resistência, membro do Comitê Central e da Comissão Política do PCdoB e secretário-geral do Cebrapaz