Opinião
A importância de celebrar o 130º aniversário de Mao Tsetung
O momento atual confirma a posição clássica dos marxistas, e em especial de Mao Tsetung, sobre a natureza e o caráter do imperialismo e suas tendências de desenvolvimento
Por Gabriel Gonçalves Martinez (*) – Em 26 de dezembro, o mundo celebra o 130º aniversário de Mao Tsé-tung, um dos políticos e líderes revolucionários mais importantes do século XX. Seu nome é frequentemente envolto em controvérsias dentro do Movimento Comunista Internacional e continua a ser alvo de ataques e difamações por parte da burguesia internacional.
O povo chinês comemora o 130º aniversário de Mao Tsé-tung em um contexto internacional caracterizado pelo agravamento das contradições entre China e Estados Unidos. A chamada guerra comercial, iniciada por Trump, pôs fim à antiga “lua de mel” estabelecida entre os dois países desde os anos 80 e intensificada, principalmente, a partir dos anos 90. Esse fim contribuiu para dissipar as ilusões, inclusive daqueles dentro do sistema político chinês que nutriam grandes expectativas sobre o sucesso das relações sino-americanas.
O momento atual confirma plenamente a posição clássica dos marxistas, e em especial de Mao Tsé-tung, sobre a natureza e o caráter do imperialismo e suas tendências de desenvolvimento.
Embora Mao Tsé-tung tenha sido um dos artífices da reaproximação entre Estados Unidos e China, é importante destacar que, durante seu período, essa reaproximação não se traduziu em um alinhamento político e ideológico. A China manteve, de maneira mais ou menos consistente, a política de condenar as chamadas “duas potências imperialistas” – o imperialismo norte-americano e o “social-imperialismo” soviético. Com o início da política de “reforma e abertura”, em 1978, a China começou a passar por profundas transformações econômicas, refletindo-se em diversos âmbitos da política e da ideologia. Sob o lema de que era necessário “emancipar a mente” [1], a liderança do Partido Comunista da China iniciou um movimento ideológico de transformação que, objetivamente, acabou abrindo margem para o desenvolvimento de uma onda anticomunista e antimaoísta dentro da República Popular da China.
O discurso oficial chinês, pelo menos em relação à interpretação de certos eventos históricos ligados a Mao Tsé-tung (os seus 30% de erros), começou a ter pontos de contato com o discurso oficial dos países capitalistas ocidentais. Ainda que o Partido Comunista da China, sob a liderança de Deng Xiaoping, sempre tenha ressaltado a necessidade de se defender o legado de Mao Tsé-tung [2], a burguesia imperialista percebeu rapidamente essa “abertura ideológica” e começou a buscar e financiar seus representantes dentro da China. Era a era da derrubada das estátuas de Mao Tsé-tung e do desenvolvimento de movimentos “pró-democracia” (isto é, movimentos de cunho liberal burguês) que culminariam, anos depois, nos eventos contrarrevolucionários de Tiananmen. Como bem descreveu o economista marxista Zhou Xincheng:
“Na luta contra várias correntes antimarxistas, gradualmente percebi uma verdade: os objetivos políticos finais de todas as correntes anti-marxistas que surgiram desde a abertura e reforma em nosso país são completamente os mesmos. Basicamente, elas se opõem à liderança do Partido Comunista, à democracia popular, à propriedade pública dos meios de produção e à orientação do marxismo. Em resumo, buscam negar os quatro princípios fundamentais e rejeitar o caminho do socialismo com características chinesas”[3]
O colapso da União Soviética e o desaparecimento dos países socialistas do Leste Europeu, em grande parte devido às atividades corrosivas do revisionismo; a intensificação das contradições entre os países capitalistas; a persistência da política de Guerra Fria contra os países socialistas e em desenvolvimento, algo reconhecido pelo próprio Deng Xiaoping em 1991; e o aumento das guerras de agressão por parte do imperialismo norte-americano são fatores que confirmam, em diversos níveis, várias teses previamente levantadas por Mao Tsé-tung. No que se refere às duas primeiras questões (o colapso da União Soviética e a continuação da política de Guerra Fria contra os países socialistas), Mao Tsé-tung não havia, já na década de 60, elucidado que, no socialismo, a contradição principal continuava sendo a existente entre burguesia e proletariado e que, também no socialismo, persistia uma aguda luta entre “dois caminhos” (capitalista ou socialista)? Não afirmava Mao Tsé-tung que, no socialismo, ao buscarmos pela burguesia, era necessário olhar para dentro do Partido Comunista? O desenvolvimento dos acontecimentos, tanto na URSS quanto em outros países que reivindicavam o socialismo, não demonstrou que o capitalismo foi restaurado pelas mãos daqueles que atuavam dentro do Partido Comunista? Quanto às críticas sempre incisivas de Mao Tsé-tung ao imperialismo norte-americano e ao seu caráter agressivo – ao mesmo tempo em que alertava para o fato de que estrategicamente ele “não era assim tão poderoso” – as guerras no Iraque e no Afeganistão, com a consequente derrota sofrida pelos Estados Unidos, não seriam uma comprovação da acurácia das avaliações de Mao Tsé-tung?
Ao fazer essa breve recapitulação, é essencial destacar as recentes transformações “sutis” que estão sendo implementadas no âmbito da interpretação histórica oficial pelo Partido Comunista da China. Embora o Partido sempre tenha enfatizado que a obra de Mao Tsé-tung pode ser classificada como 70% positiva e 30% negativa, na prática, com a aprovação da Resolução de 1981, passou a prevalecer na sociedade uma percepção de que o período maoísta teria sido uma catástrofe. Esta visão, claramente equivocada e reacionária, é compartilhada até mesmo por alguns oficiais, políticos e dirigentes chineses – evidentemente de uma maneira velada, pois, ao menos do ponto de vista oficial, o Partido reconhece que, mesmo durante a época da “Revolução Cultural”, foram obtidas importantes conquistas no campo da construção econômica do país.
Foi justamente com o objetivo de erguer um muro de defesa contra certas ideias perniciosas, que na prática contribuem para minar a legitimidade histórica do Partido Comunista da China, que o Partido, sob a liderança de Xi Jinping, oficializou a linha de que não se pode contrapor os dois períodos históricos da construção socialista na China (antes e depois da Reforma). [4]
Essa mudança contribuiu recentemente para criar um ambiente ideológico um pouco mais favorável ao socialismo, ao marxismo e ao próprio Pensamento Mao Tsé-tung. Experiências como o envio de estudantes ao campo começaram a ser reavaliadas e até mesmo exaltadas por veículos de comunicação oficiais. Isso também oferece um certo suporte ideológico para que grupos marxistas possam debater de forma mais aberta certos tópicos considerados sensíveis, o que frequentemente desperta a ira e a curiosidade da burguesia internacional e de seus monopólios.
Neste contexto, observa-se na China um renovado interesse pela figura de Mao Tsé-tung. O autor chinês Mobo Gao, em seu livro “The Battle for China’s Past”, publicado em 2008, desafia as versões oficiais ocidentais e chinesas sobre um suposto caráter “catastrófico” das ideias e do legado de Mao Tsé-tung. De maneira convincente, Gao apresenta os avanços políticos, econômicos e sociais alcançados pelas políticas de Mao, mostrando que seus efeitos foram percebidos e absorvidos de formas distintas pelos diversos grupos sociais da China naquela época. Enquanto a classe operária e os camponeses pobres têm uma percepção diferente dos eventos históricos que marcaram a República Popular da China, os intelectuais e alguns oficiais veem-nos de outra maneira. Com a ascensão e a popularização da internet, esta se tornou um importante campo de disputa ideológica na China. Muitos cidadãos chineses utilizam a internet para expressar suas opiniões sobre o cotidiano e suas visões políticas e históricas. A internet permitiu que visões que valorizam o legado de Mao, inclusive eventos como a “Revolução Cultural”, ganhassem espaço, desafiando a quase total hegemonia das obras literárias e cinematográficas liberais que visam demonizar o período maoísta.
Esta é uma batalha em pleno desenvolvimento, crucial para a legitimidade presente e futura da governança do Partido Comunista da China. Mais do que isso, é uma batalha essencial para que a China continue a afirmar e construir o socialismo, refletindo a luta de classes no âmbito ideológico. Além das batalhas ideológicas, outras frentes de luta se abrem. Os marxistas-leninistas lutam pela retificação das políticas econômicas que, ao longo de mais de 40 anos de reformas e abertura, levaram à expansão das relações de produção capitalistas, a ponto de atualmente cerca de 80% do emprego urbano ser gerado por tal setor. [5] Isso criou uma situação em que a grande maioria dos trabalhadores ativos vende sua força de trabalho como mercadoria e é explorada por uma nova classe capitalista. Portanto, é necessário superar o que o economista marxista chinês Liu Guoguang classificou como “direita na economia e esquerda na política”. [6]
Para nós, brasileiros e marxistas, a comemoração dos 130 anos do nascimento de Mao Tsé-tung possui grande importância. Devemos ter em mente que a revolução liderada por Mao impactou significativamente o desenvolvimento da luta anticolonial no período pós-Segunda Guerra Mundial. Não apenas isso, Mao liderou o início do processo de construção do socialismo no país mais populoso do mundo. Esse impacto decorre de um movimento histórico liderado por um partido comunista, fundamentado em uma teoria científica, o marxismo-leninismo. Mao compreendeu e adaptou os princípios universais do marxismo-leninismo às condições específicas da China, resultando em ensinamentos e desenvolvimentos teóricos de validade universal. Assim como é essencial referir-se à obra de V.I. Lenin ao falar de marxismo, as contribuições teóricas e práticas de Mao Tsé-tung são indispensáveis ao marxismo-leninismo. Nossa comemoração, portanto, não pode ser do tipo formalista, burocrática, tratando Mao Tsé-tung como uma mera figura nacional de um país distante, algo do passado que já não diz mais nada sobre os dilemas do presente e do futuro. Comemorar Mao Tsé-tung dessa maneira seria a mesma coisa que jogar lama em seu nome, ou seja, seria mais uma difamação do que uma real comemoração. Como afirmou o PCdoB, em carta enviada ao Comitê Central do Partido Comunista da China, por ocasião do falecimento de Mao Tsé-tung, em setembro de 1976:
“Ao lado de suas qualidades de político lúcido e perspicaz, e de homem de ação, o camarada Mao Tsé-tung foi um teórico renomado que desenvolveu o marxismo-leninismo em todos os campos, pois não há movimento revolucionário sem teoria revolucionária. Ele soube aplicar a verdade universal da doutrina do proletariado à prática da revolução chinesa, identificando as leis que a regiam e apoiando-se nelas para alcançar o triunfo. Suas contribuições originais enriquecem o marxismo e auxiliam aqueles que lutam pela emancipação. As vitórias do povo chinês são vitórias do pensamento revolucionário, marxista-leninista, de Mao Tsé-tung. Ele tornou-se um dos grandes mestres do proletariado mundial.” [7]
Ao lançar a Revista Hongqi, em homenagem ao legado revolucionário de Mao Tsé-tung, nosso objetivo principal é apresentar ao público brasileiro artigos e análises que ofereçam uma compreensão mais realista e prática das complexidades da luta ideológica e política pelo desenvolvimento do socialismo na China. Nosso foco é destacar os debates e reflexões atuais no país, dando voz aos verdadeiros protagonistas deste processo significativo: o povo chinês. A intenção é fornecer uma visão esclarecedora sobre as questões e desafios enfrentados, promovendo uma leitura materialista e dialética sobre a China.
(*) Gabriel Gonçalves Martinez – Mestre em Filosofia Marxista pela Universidade Normal de Pequim, editor da Revista Hongqi
Notas
[1] Depois de terminada a “Revolução Cultural”, Deng Xiaoping e os seus colaboradores iniciaram uma campanha ideológica dentro do Partido, que buscava reverter as orientações ideológicas dadas por Hua Guofeng, líder que substituiu Mao Tsé-tung após a morte do líder chinês. A linha de Hua Guofeng ficou conhecida como liǎng gè fán shì, ou “Dois Todos”, e preconizava que “Nós iremos firmemente apoiar todas as decisões políticas que o Presidente Mao tomou e seguir inabalavelmente todas as instruções que o Presidente Mao deu”. Esta declaração apareceu no artigo “Estudar bem os documentos e compreender o elo chave”, publicado no Diário do Exército Popular de Libertação e na revista Bandeira Vermelha em 7 de fevereiro de 1977. Posteriormente, com ajuda de Hu Yaobang, Deng Xiaoping promoveu um ataque contra esses veredictos anteriormente colocados adiante por Hua Guofeng. No artigo “A prática é o único critério para testar a verdade”, publicado em 10 de maio de 1978, no Guangming Ribao. Neste artigo, era levantada a ideia de que os militantes do Partido Comunista da China deveriam “emancipar a mente”, criticando o que o grupo liderado por Deng Xiaoping considerava ser o “dogmatismo” e “sectarismo” do período de Mao Tsé-tung. Essa campanha ideológica foi fundamental para consolidar a linha que advogava pela realização de reformas políticas e econômicas dentro da China.
[2] Em entrevista feita com a jornalista italiana Orina Fallaci, ao responder à pergunta se o retrato de Mao Tsé-tung permaneceria em Tiananmen, Deng Xiaoping respondeu de maneira enfática: “Será, para sempre”, e continuou afirmando que “Em nossos corações, nós chineses sempre o acalentaremos como um fundador de nosso partido e de nosso Estado.” Ver:https://dengxiaopingworks.wordpress.com/2013/02/25/answers-to-the-italian-journalist-oriana-fallaci/
[3] Zhou Xincheng, “O marxismo é científico e, ao mesmo tempo, combativo”, artigo originalmente publicado em chinês em Estudos sobre a Teoria de Mao Zedong e Deng Xiaoping, Edição 7, 2013. O artigo pode ser lido no link a seguir: https://www.hswh.org.cn/wzzx/llyd/zx/2018-10-19/53086.html
[4] Logo após o 18º Congresso do Partido Comunista da China, Xi Jinping enfatizou: “Não devemos negar o período histórico anterior à reforma e abertura usando o período histórico posterior à reforma e abertura, nem devemosnegar o período histórico posterior à reforma e abertura usando o período histórico anterior à reforma e abertura. Devemos aderir à linha de pensamento pragmática, distinguir entre a corrente principal e as correntes secundárias, manter a verdade, corrigir erros, promover experiências, aprender lições e, com base nisso, continuar a impulsionar o avanço do partido e da causa do povo”.
[5] De acordo com informações fornecidas pela revistaQiushi, principal órgão teórico do Comitê Central do Partido Comunista da China, em artigo publicado na versão em inglês do seu site oficial: “Durante mais de 40 anos de reforma e abertura, orientado pelos princípios e políticas do Partido Comunista da China, o setor privado chinês cresceu em tamanho e força. Atualmente, ele representa mais de 50% da receita fiscal, mais de 60% do PIB, mais de 70% da inovação tecnológica, mais de 80% do emprego urbano e mais de 90% do número total de empresas.” Ver: Growing the Private Sector, Qiushi, http://en.qstheory.cn/2023-05/05/c_931411.htm
[6] “Direita na Economia e Esquerda na Política” refere-se à ideia de que o que acontece na China atual seria um aprofundamento das reformas de mercado e da liberalização em termos econômicos (direita), com um aumento na ênfase nos aspectos políticos e ideológicos do socialismo (esquerda). Liu Guoguang, um dos primeiros economistas marxistas a propor as reformas de mercado, ainda no final da década de 70, argumenta contrariamente a esta ideia em um artigo intitulado “Prevenindo que a ‘Direita Econômica, Esquerda Política’ cause divisão na sociedade.” Para o economista, as reformas econômicas não podem corroer o setor socialista da economia, devendo o governo central prestar atenção no fenômeno do crescimento das tendências pró-privatização.
[7] A Classe Operária, Edição Especial Mao Tsetung, n.110, setembro de 1976: https://www.marxists.org/portugues/tematica/jornais/classe_operaria/pdf/51_81.pdf