Opinião

A dimensão internacional por detrás da deposição de Dilma

22/08/2016

O início do século XXI iniciou com sinais promissores em diversos campos, notadamente, os projetos progressistas da América Latina, o renascimento da África e a crescente sinergia dos países emergentes, sobretudo aqueles reunidos no acrônico BRICS. A crise de 2008 iniciada nos EUA tem recrudescido as políticas liberalizantes e reascendido os movimentos de extrema direita. Ondas de desestabilização se alastram pelo Oriente Médio desde a Primavera Árabe, enquanto na América Latina há o retorno das forças conservadoras pelas urnas ou através de Golpes Brancos.

Por Diego Pautasso *    

No Brasil, as manifestações de meados de 2013 iniciaram um revés cujos contornos ainda não estão claros, mas parecem ultrapassar em muito o sentido da deposição da Presidenta Dilma Rousseff. E há alguns elementos de continuidade e mudança nesse ciclo que parece ter se inaugurado. A continuidade é perceptível pela comunhão do novo governo com o interesse de grande parte das elites e com os meios de comunicação. As mudanças são preocupantes e causam apreensões. Primeiro, não há o ‘centrão’ que caracterizou a política brasileira desde a Redemocratização, servindo como ‘amortecedor’ e como moderador, sobretudo das políticas neoliberais dos anos 1990. Segundo, o grupo que está no poder encampou um pensamento mais privatista e conservador do que aquele dos anos 1990 – com mais açodamento e menos polidez. Por fim, grande parte das forças de resistências parecem prostradas e sem projetos, com dificuldades para mobilizar e produzir alternativas à nova agenda.

Mais do que derrubar um governo nucleado pelo PT, está em jogo o desmonte de um projeto. Trata-se de desarticular o projeto de desenvolvimento iniciado com Vargas, continuado com sobressaltos e reveses ao longo do século XX, e cujo amadurecimento institucional tinha sido plantado com a Constituição de 1988. Na verdade, os governos de Lula e Dilma ao invés de subverter, foram os que mais deram conteúdo ao marco legal surgido com a Redemocratização. Sob o argumento de combate à corrupção, entusiasmando até setores de esquerda, a grande mídia, forças dominantes na justiça e elites econômicas lançam fortes ataques a um projeto (e conquistas) construído por gerações. Assim, o parque produtivo brasileiro vem sendo completamente paralisado com as denúncias de corrupção – ironicamente iniciadas contra a Petrobrás após a revelação das escutas da NSA contra a empresa. A guerra econômica começou com a Petrobrás e alcançou as empreiteiras (Odebrecht, Andrade Gutierres, OAS), chegando à JBS-Friboi e, certamente, aos grandes bancos nacionais. O desemprego e as demais perdas econômicas e políticas fazem a corrupção parecer xixi de borboleta…

É nesse aspecto que a crise doméstica se entrelaça à dimensão internacional, cujos reveses também são dramáticos. É notável o recuo político em relação ao protagonismo do Brasil no BRICS, na integração sul-americana e/ou na presença no continente africano. No caso da integração sul-americana, de prioridade da política externa, a região converteu-se em problema central (notadamente a Venezuela e o Mercosul). À deterioração do projeto de integração regional, soma-se o enfraquecimento das grandes corporações nacionais, públicas e privadas, sem as quais não há a internacionalização das empresas brasileiras e os meios para aprofundar o desenvolvimento nacional e a integração da América do Sul, sobretudo a partir das obras infraestruturais formatadas pela IIRSA e reorganizadas sob a coordenação do Conselho de Planejamento (COSIPLAN) da UNASUL[1].

Curiosamente, grandes players brasileiros internacionalizados, com tecnologia nacional e responsável por setores que vão da produção de alimentos à construção civil, passando pela geração e distribuição de energia, petroquímico e de fertilizantes, e chegam, não por acaso, à indústria de defesa. Cabe ilustrar com o papel crucial da Odebrecht Defesa e Tecnologia na autonomia tecnológica brasileira e das Forças Armadas no contexto de implantação da Estratégia Nacional de Defesa (END), com um conjunto de produtos de alta tecnologia e sistemas complexos para uso militar e civil. Isso inclui os submarinos de propulsão convencional e o submarino de propulsão nuclear; o Sistema de Comunicação Segura por Enlace de Dados; um leque enorme de mísseis (míssil ar-ar de curto alcance, 3a geração, o único totalmente integrado ao Supertucano ALX; míssil ar-ar de curto alcance, 5a geração, desenvolvido em parceria entre Brasil e África do Sul; míssil ar-superfície, antirradiação, utilizado em missões de supressão da defesa antiaérea inimiga; míssil ar-ar de curto alcance, 4a geração; míssil superfície-superfície, antinavio, utilizado em combates navais em mar aberto; míssil superfície-superfície, antitanque, de médio alcance); e um conjunto amplo de satélites (como o Satélites Amazônia Multi-Missão para subsistemas de energia e de rastreamento, telemetria e telecomando; o Satélites CBERS ¾ em parceria com a China); e os Veículos Lançadores de Satélites VS-40/SARA e VLS/VSISNAV. Definitivamente, com a fragilização desses setores e eventual desmonte não sobraria muito ao país em termos de desenvolvimento e inserção autônoma no sistema internacional.

Não é possível, portanto, ignorar tais desdobramentos políticos e deixar para os arquivos históricos revelarem o entrelaçamento entre guerra econômica e geopolítica, diplomacia e operações encobertas. Seria ingenuidade supor que a ascensão do BRICS se daria sem maiores sobressaltos. Aos setores da elite brasileira comprometidos com o protagonismo do país na cena internacional, fica o ensinamento que política internacional não se faz só com acordos, discursos bem construídos e cooperação internacional. Em suma, não se entendem esses processos de desestabilização e golpes do século XXI (ou políticas de regime change como prefere a elite estadunidense) fora do quadro internacional. Da mesma forma, o abandono de conceitos centrais do marxismo, como de imperialismo e luta de classes, fez setores progressistas não entenderem as raízes profundas dos acontecimentos no Brasil. De um lado, os conflitos (de classe) que atravessam o aparelho de Estado estão no âmago da crise atual; e as ingênuas noções ‘republicanistas’ deixaram míope a esquerda brasileira. De outro lado, o poder (imperialista) das grandes potências inspiram e apoiam os grupos que patrocinam a trajetória atual do país, ansioso por atuar no Pré-Sal; ter acesso privilegiado ao gigantesco mercado doméstico e seus recursos naturais; e, sobretudo, desmobilizar o protagonismo diplomático do país na integração regional, na articulação política do BRICS e na presença na África.

[1] Ver detalhes dos projetos da Iniciativa para Integração Regional Sul-Americana (IIRSA) disponível em: http://www.iirsa.org/Page/Detail?menuItemId=45

* Diego Pautasso é doutor e mestre em Ciência Política, professor de Relações Internacionais da ESPM Sul e UNISINOS, autor do livro China e Rússia no Pós-Guerra Fria, editora Juruá, 2011. E-mail: dgpautasso@gmail.com

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