Opinião
A destruição da cultura e a guerra
Por Marcos Aurélio da Silva (*)
Bolsonaro e sua trupe, apoiados em reiterados blefes, acusam a esquerda de destruição da cultura universal (de modo mais redutor, adaptado às suas limitações, eles falam apenas de cultura ocidental). Com três meses e pouco de governo, não é preciso dizer muita coisa para saber quem está realmente engajado nesta destruição — com as ameaças às universidades à frente, mas não só.
Não é de assustar, já que a extrema direita sempre atuou por meio da destruição, e exatamente assim compreende e teoriza a história (a história como palingênese).
No que diz respeito à esquerda, os princípios elevados que governam a sua visão diante da cultura e da história do mundo, incluindo aquela burguesa — princípios rigorosamente dialéticos, coisa que a trupe bolsonarista tem certa dificuldade de entender, não há dúvida — , podem ser bem avaliados em um pequeno trecho de Lênin:
“O marxismo conquistou a sua significação histórica universal como ideologia do proletariado revolucionário porque não repudiou de modo algum as mais valiosas conquistas da época burguesa, mas, pelo contrário, assimilou e reelaborou tudo o que houve de valioso em mais de dois mil anos de desenvolvimento do pensamento e da cultura humanos.” (1)
No fundo, como Bolsonaro não é senão expressão das relações capitalistas agora imperantes no Brasil, com uma determinada estrutura econômica e de classe — em que os postos de destaque cabem não só a uma burguesia autóctone, mas também aos estratos burgueses que representam o capital internacional que aqui penetrou — , bem como da crise desta estrutura, bastante articulada internacionalmente (com o papel do país guia do Ocidente à frente), toda a destruição em curso não é senão a expressão da queima de capitais — e da necessidade de recuperar a lucratividade na margem — que a crise capitalista mais geral está exigindo.
Aliás, é este mesmo processo que deve servir para interpretar as ameaças de guerra contra a Venezuela, as mesmas ameaças que põem à vista de todos o caráter antinacional do governo Bolsonaro. Afinal, como escreveu Palmiro Togliatti tratando de um contexto com o qual o atual cenário brasileiro começa a se assemelhar, “uma política de guerra é uma política antinacional”. (2)
De fato, e ainda uma vez seguindo as iluminantes análises de Togliatti, não se pode reduzir a política externa de um estado capitalista — que a rigor é a continuação da política interna — aos “caprichos” e às “inconsequências” de um homem (3); e exatamente por isto é justo lembrar aqui de uma conhecidíssima máxima de Marx e Engels, quando ainda em meados do século XIX este se referiam às crises de superprodução engendradas no interior do modo de produção capitalista: trata-se de um contexto em que tudo o que é “sólido e estável se esfuma” (4), e do qual faz parte mesmo a mudança geoeconômica mas também geopolítica que estamos observando no mundo sob liderança da China.
Mas é também a partir desta compreensão, e ainda uma vez voltado ao grande dirigente do PCI, que se deve tomar por desaconselhável apostar na superação do atual estado de coisas pela simples desintegração interna do bolsonarismo, supostamente entregue a insolúveis contradições. A existência de correntes de oposição rebeldes e irrequietas, assinalou Togliatti examinando a experiência italiana dos anos 1920, é uma coisa inevitável nas fileiras de um movimento de massas pequeno-burguês, e até opera, muito funcionalmente, como as reservas do regime. (5)
Certamente, como noutras fases da história do mundo, novamente comunistas, socialistas e setores democráticos que não se deixaram levar pela onda irracionalista em curso, serão aqueles que irão se colocar à altura da cultura e dos valores mais elevados da humanidade. Isso não poderá ser alcançado, porém, apostando-se simplesmente na súbita conversão de frações do bloco de poder que agora revelam discretas divergências (se Bolsonaro falou de guerra militar contra a Venezuela, Mourão acenou para o bloqueio econômico, a guerra por outros meios).
O projeto de fundo das diferentes frações da tropa bolsonarista é essencialmente o mesmo, e a tarefa central do conjunto da oposição é expor à população o seu conteúdo e as suas mazelas, de modo a produzir defecções na base — notadamente aquela menos orgânica — de apoio do governo.
Notas:
(1) Lênin, V. I. Sobre a cultura proletária, Obras Escolhidas, Vol. 3, Ed. Progresso: Moscou; Ed. Avante: Lisboa, 1981, p. 398.
(2) Togliatti, P. Per comprendere la politica estera del fascismo italiano. In: La politica nel pensiero e nall’azione. Scritti e discorsi 1917-1964, Michele Ciliberto e Giuseppe Vacca (orgs.). Bompiani: Milano, 2014, p. 180.
(3) Op. cit., p. 179.
(4) Marx, K. e Engels, F. Manifesto do Partido Comunista. In: Marx e Engels – Obras Escolhidas. São Paulo: Alfa Omega, 1980, p. 24.
(5) Togliatti, P. Contro le false analogie tra situazione tedesca e situazione italiana. In: Sul movimento operaio internazionale. Franco Ferri (org.). Roma: Riuniti, 1964, p. 80-1.
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(*) Professor no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (CFH/UFSC), com atuação nos cursos de graduação e pós-graduação em Geografia