Opinião
A Arábia Saudita, os valores americanos e a importância da amizade sincera
A Arábia Saudita é, sem dúvida, um exemplo de democracia. Pelo menos pelos padrões dos EUA e da União Europeia, dupla com a qual este país mantém uma aliança inquebrantável. Em maio de 2015 a France Press registrou a fala do presidente estadunidense, Barack Obama, sobre o país irmão: “O presidente americano, Barack Obama, elogiou nesta quarta-feira (13) a solidez dos vínculos entre os Estados Unidos e a Arábia Saudita. ‘Os Estados Unidos e a Arábia Saudita estão unidos por uma amizade extraordinária e uma relação que remonta a Franklin Roosevelt e ao rei Faisal’, declarou Obama ao receber o príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Nayef ”.
Por Wevergton Brito Lima*
Obama, para quem não liga o nome à pessoa, é presidente do mesmo país que vive dando lições ao mundo, atacando nações que, segundo os EUA, “não compartilham os valores da democracia”. E, no entanto, não se incomodam de manter uma “amizade extraordinária” com a monarquia absoluta teocrática da família Al Saud, que há 90 anos manda e desmanda monocraticamente na Arábia Saudita, onde sequer existe constituição.
A lei é o Corão e a Sharia (conjunto de leis islâmicas, pretensamente baseadas no Corão, o que é contestado inclusive por numerosos muçulmanos). Na bandeira do país está escrito “ “Não há outra divindade além de Alá, e Maomé é o seu profeta”, e se você morar lá é bom concordar com isso pois volta e meia os dissidentes são decapitados em praça pública, mesmo que defendam enfaticamente a frase da bandeira e tenham apenas divergências quanto ao tipo de “democracia” que é aplicado.
Em 2012, o jovem Ali Mohammed al-Nimr, então com 17 anos, foi preso por participar de protestos contra o governo. Em 2014 foi condenado à morte por decapitação. A sentença também determina que depois de morto seu corpo seja crucificado e exposto em praça pública. Apenas um alerta ao leitor distraído: isto está acontecendo no século XXI.
Al-Nimr já perdeu todas as apelações e atualmente aguarda a execução. Foi acusado de várias coisas, que confessou, segundo sua família alega, sob tortura. Parece que seu principal problema é ser sobrinho do clérigo Sheikh Nimr al-Nimr, opositor do regime, que foi decapitado em 2 de janeiro de 2016, juntamente com 46 outros prisioneiros. Excepcionalmente neste caso as execuções não foram em praça pública pois o líder religioso dissidente era muito querido e o governo temia reações populares.
Ao noticiar estes fatos a mídia hegemônica não utiliza dos adjetivos que costuma empregar ao se referir à países anti-imperialistas que nem de longe comentem tais barbáries, mas que são logo alcunhados de “ditaduras”, seus líderes são tachados de “ditadores”, etc. A Revista Época, por exemplo, ao noticiar o caso do jovem Al-Nimr, diz singelamente que a Arábia Saudita “patina no respeito aos direitos humanos”. Chamar Salman bin Abdulaziz Al Saud de tirano? Jamais, ele é Rei ora bolas!
Na Arábia Saudita o poder da família real é total e não é permitida a existência de oposição ou de partidos políticos. As mulheres não podem dirigir (em 2013 um ex-ministro da Justiça, Saleh al Lohaidan, declarou que a direção de veículos afeta negativamente os ovários da mulher); só podem viajar com a companhia ou a autorização de um guardião (um mahram), um homem da família como o pai, marido ou irmão; se o homem espancar uma mulher o máximo que pode lhe acontecer é ter que pagar uma multa em dinheiro, mas até isso raramente acontece; e por aí vai.
Arábia Saudita e a crise do petróleo
Gigantesca produtora de petróleo, a Arábia Saudita ao notar em 2014 uma tendência de queda no preço do barril, fez o que menos se esperava de uma economia que depende quase que exclusivamente desta commodity: aumentou ainda mais sua produção e usou sua influência para induzir seus aliados da Organização dos Países Produtores de Petróleo (Opep), Kuwait, Emirados Árabes e Catar a fazerem o mesmo, causando uma baixa colossal no valor do barril. Se até 2014 o valor do barril comumente batia a marca dos US$ 110,00, em 2016 chegou a menos de US$ 31,00 e agora está oscilando entre os US$ 40,00.
Há quem diga que a Arábia Saudita fez isso para neutralizar a produção de xisto nos EUA, país que pela primeira vez assumiu, em 2015, o posto, que era da Arábia Saudita, de maior produtor de petróleo do mundo.
Mas há quem especule que existe bem mais coisa por trás. Afinal, de uma tacada só renhidos adversários dos EUA viram-se fortemente atingidos pela queda no preço do barril, como a Rússia e o Irã, sem falar na Venezuela.
Riad e Washington não deixam de dar mostras públicas de sua fraterna relação. Atacam juntos países como a Síria (que por acaso é laico, tem constituição, garante os direitos das mulheres, etc.). Treinam, armam e financiam, sempre de forma coordenada, grupos de fanáticos religiosos que possam servir a seus interesses.
Existem, é certo, pequenos dissensos entre eles (o acordo nuclear com o Irã foi um deles), mas nada que uma “amizade extraordinária” não possa superar.
A BBC publicou, em janeiro, uma declaração de Mariano Aguirre, diretor do Centro Norueguês para Construção da Paz, onde ele afirma que existem diversos fatores que explicam essa ligação carnal entre a Arábia Saudita, os Estados Unidos e a União Europeia. Relata a BBC:
“Em primeiro lugar, diz, está a condição de país exportador de petróleo da Arábia Saudita, que durante décadas liderou as vendas mundiais do produto. Essa riqueza permitiu, de acordo com Aguirre, que Riad se convertesse em um grande investidor nos centros financeiros mundiais, como Londres. ‘Isso acarretou um forte clientelismo no setor financeiro internacional, que persiste até hoje’, disse. O especialista lembra também que a Arábia Saudita é um dos principais compradores de armas do mundo, tanto dos EUA como da Europa Ocidental”.
A “amizade extraordinária” entre o imperialismo e o clã Al Saud baseia-se fundamentalmente no poder econômico vindo da riqueza do petróleo. O imperialismo abençoa e protege a “democracia” da monarquia absolutista e teocrática, deixando-a também de mãos livres para exercer sua hegemonia despótica na Península Arábica. Em contrapartida a Arábia Saudita dá suporte aos interesses geopolíticos dos EUA e da UE na região, e continua despejando bilhões de petrodoláres no mercado financeiro e na indústria bélica dos países amigos. No próximo subtítulo vamos narrar um fato que revela de forma concreta como funciona a influência financeira saudita e no seguinte mostraremos a importância do investimento do país na indústria bélica.
Obama não contraria um velho amigo
No dia 17 de maio, o senado americano, com o argumento de que a maioria dos acusados era de origem saudita, aprovou uma lei que permite que as famílias das vítimas do 11 de setembro de 2001 processem o governo da Arábia Saudita pelo atentado contra as torres gêmeas, o que foi referendado no dia 09 de setembro pela Câmara dos Deputados.
O chanceler saudita, Adel Al-Jubeir, reagiu dizendo que o governo de seu país seria forçado a resgatar US$ 116,8 bilhões em títulos do Tesouro americano que estão em suas mãos, caso a lei entrasse em vigor.
Mas Obama, que por nenhum motivo do mundo iria querer contrariar um velho amigo, se apressou em garantir que irá vetar tão malfadada lei.
Guerras e mortes muito lucrativas
A Reuters divulgou, no início de setembro, que os Estados Unidos venderam 115 bilhões de dólares em armamentos para a Arábia Saudita durante a administração Obama (leia aqui o original em inglês).
Desde março de 2015 a Arábia Saudita iniciou uma agressão ilegal contra um país soberano, o Iêmen, com apoio militar direto de Israel e respaldado politicamente por EUA e União Europeia. O Reino Unido, apenas no primeiro ano da agressão, vendeu 3,3 bilhões de libras em material bélico para os sauditas.
Nos dias 11 e 12 de setembro, a Arábia Saudita bombardeou áreas civis do Iêmen, o que tem feito repetidas vezes, matando 50 pessoas – inclusive idosos, mulheres e crianças – e ferindo dezenas.
Relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), divulgado no final de agosto de 2016 (leia artigo da especialista em Relações Internacionais Moara Crivelente sobre isso) revela que desde o início da ofensiva militar liderada pela Arábia Saudita contra o Iêmen, quase quatro mil civis iemenitas foram mortos. Outro relatório, este divulgado em abril e elaborado pela TV iemenita Al-Massira, apontava um número de 32 mil vítimas entre mortos e feridos, a maioria civis.
Não se culpe se você nunca tinha ouvido falar deste massacre. Eram apenas iemenitas, não eram franceses, britânicos, americanos, ou qualquer outra destas raças realmente humanas, cujos cidadãos, quando são afetados pelo mesmo tipo de terrorismo que seus países promovem (mas nunca na proporção que atinge os palestinos, sírios, líbios e outras sub-raças) as mortes ocupam dias inteiros de reportagens e mobilizam mensagens tocantes em redes sociais. Não teria mesmo sentido nenhum colocar no facebook “somos todos iemenitas” com as cores do Iêmen, que ninguém sabe afinal quais são.
Pode ser que no caso do Iêmen a Arábia Saudita tenha cometido um erro de cálculo. No início da agressão achava que em pouco tempo, no máximo em dois meses, o país já teria sucumbido. A realidade é outra e a resistência iemenita assegura que pode enfrentar a Arábia Saudita por “2.000 anos”, prazo muito longo para um país que apostou numa estratégia que desvalorizou o produto que sustenta sua riqueza e que agora gasta só na guerra contra o Iêmen cerca de US$ 200 milhões por dia.
Mas com tanto dinheiro e interesses geopolíticos em jogo, é bem capaz que a família Al Saud consiga seguir, talvez por outros 90 anos, decapitando democraticamente seus opositores, financiando o fanatismo e a barbárie, agredindo nações vizinhas, oprimindo seu próprio povo, especialmente as mulheres, tudo com o apoio compreensivo e fiel dos EUA, da Inglaterra, Alemanha, França e congêneres.
Não são pequenos detalhes que abalam a força de uma amizade sincera.
* Jornalista, membro da Comissão de Política e Relações Internacionais do PCdoB