Geopolítica
A ameaça russa: Sigam a pista do dinheiro para perceber a origem
Se vivem no Ocidente, e a menos que tenham estado trancados num guarda-roupa, devem ter ouvido frases ameaçadoras como “A ameaça russa”, “Agressão russa na Europa” e “A Rússia preparada para invadir a Polônia/Estônia/Ucrânia/Finlândia”.
Por Neil Clark*
Certas pessoas estão a tentar assustar-nos estupidamente com a Rússia e com a “ameaça” que este país parece representar. A histeria faz-nos lembrar a montagem da guerra do Iraque, quando éramos alertados todos os dias para a “ameaça” das mortíferas armas de destruição maciça, que – surpresa, surpresa – afinal não existiam.
Podemos passar horas a falar das grandes teorias bombásticas na área da geopolítica e das relações internacionais numa tentativa de explicar porque é que isto está a acontecer.
Mas o que temos que fazer é seguir o “rastro do dinheiro”. Pensem em quem se beneficia financeiramente com todo este alarmismo e logo compreenderão.
Esta semana, The Intercept revelou como os fornecedores da defesa dos EUA têm andado a dizer aos investidores que a alegada “ameaça russa” é boa para os negócios.
Richard Cody, general do exército reformado, e vice-presidente da L-3 Communications, o sétimo maior fornecedor de defesa, lamentou o fato de que “quando acabou a velha Guerra-Fria”, os orçamentos para a defesa sumiram-se, mas agora, uma “Rússia ressuscitada” significava que “vinha aí um aumento”.
Stuart Bradie, chefe executivo da CBR, também enviou uma mensagem igualmente otimista que falava das “oportunidades” que a atual situação apresenta.
O processo para maiores gastos com a defesa para conter a “ameaça russa” foi montado por uma série de grupos de reflexão. E sabem que mais? Os mais aguerridos lobistas – perdão, “grupos de reflexão” – recebem um considerável financiamento dos fornecedores de defesa dos EUA!
The Intercept cita os exemplos do Instituto Lexington e do Atlantic Council.
Mas ainda há muitos outros. Em fevereiro passado, escrevi sobre um instituto político dos EUA, “não partidário”, chamado Center for European Policy Analysis. O CEPA emitiu um documento em que atacava a agência noticiosa russa Sputnik por dar voz a “políticos anti-establishment” que criticavam a Otan.
E quem financia a CEPA “não partidária”? Os doadores mais recentes incluem o Departamento da Defesa dos EUA, a Boeing, a Raytheon Company, a Textron Systems, a Sikorsky Aircraft, a Bell Helicopter e a Lockheed Martin Corporation.
O que está a acontecer hoje na Europa é o mesmo que tem acontecido no Oriente Médio há anos.
Os EUA criam o caos, depois acorrem a vender aos países da região os últimos equipamentos militares para os “proteger” do caos. É uma verdadeira fraude e uma clara imitação dos esquemas de extorsão da Máfia. Os países que não querem pagar, como a Iugoslávia nos anos 90, sujeitam-se a serem bombardeados.
Reparem como começou a crise na Ucrânia. Os EUA gastaram milhares de milhões de dólares numa operação de “mudança de regime” para derrubar o governo democraticamente eleito de Viktor Yanukovych e substitui-lo por uma administração fantoche pró-EUA. Até ouvimos Victoria Nuland do Departamento do Estado – depois de ter entregue bolachas aos protestantes antigoverno em Maidan – a analisar quem devia figurar ou não no novo governo “democrático” ucraniano, com o embaixador norte-americano, Geoffrey Pyatt.
Quando o povo da Crimeia votou “Nyet”, como seria de esperar, à operação do Departamento de Estado e votou esmagadoramente num referendo a favor da união com a Rússia, a Rússia foi acusada de ser a “agressora” que tinha “invadido” a Ucrânia. Os EUA deviam saber que a sua operação de mudança de regime na Ucrânia provocaria o caos e aumentaria as tensões com a Rússia. E foi isso mesmo o que fizeram!
Para combater a nova “ameaça” russa não apenas à Ucrânia “democrática”, mas a outros países na Europa do Leste, disseram-nos que era preciso um grande aumento nas despesas da Otan com a “defesa”. Quem se beneficia com isso? Claro, os fornecedores da defesa norte-americanos!
No ano passado a Polônia mandou melhorar militarmente os Patriot Missiles, feitos nos EUA – fabricados por Raytheon – e os helicópteros militares Airbus, por 5,53 bilhões de dólares.
Em novembro de 2014, a Estônia “ameaçada” adquiriu 80 mísseis Javelin aos EUA, por 40 milhões de euros. Em fevereiro, ouvimos dizer que o país ia gastar, em 2020, 818 milhões de euros em novo armamento e equipamento.
Como comentou Charlie Chaplin na sua clássica comédia de humor negro de 1947, “Guerras, conflitos, é tudo negócio!”
Qualquer análise objetiva revela que é a Otan – e não a Rússia – com a sua concentração de armas e soldados nas fronteiras da Rússia, que ameaça a paz da Europa. Mas quem quer que assinale isso e refira a incessante Drang nach Osten (“Afã rumo ao Leste”, NR) da aliança militar, ameaça os lucros das empresas de defesa dos EUA e é atacado como “pacifista” ou “marionete do Kremlin” por aqueles que têm manifestos interesses financeiros em manter a tensão elevada.
Reparem nos ataques histéricos ao líder do Partido Trabalhista Britânico, Jeremy Corbyn, pelos seus recentes comentários muito conscientes sobre a Otan e a Rússia.
Perguntaram a Corbyn num debate televisivo: “Enquanto primeiro-ministro, como reagiria se Putin violasse a soberania de um estado membro da Otan?”
Respondeu: “Obviamente, em primeiro lugar, tentaria impedi-lo. Estabeleceria um bom diálogo com a Rússia para lhes pedir e os manter dentro das respetivas fronteiras. Tentaria fomentar a desmilitarização da Rússia e da Ucrânia e de todos os outros países na fronteira entre a Rússia e a Europa do Leste. Não podemos é permitir uma série de continuadas concentrações de tropas de ambos os lados, que só poderão conduzir a um enorme perigo para o futuro. Começa a ter o aspeto terrível da política da Guerra Fria na presente época. Temos que nos comprometer com a Rússia, comprometer com a desmilitarização naquela área, a fim de tentar evitar que esse perigo aconteça… Não desejo entrar numa guerra, quero é conseguir um mundo em que não haja qualquer necessidade de entrar em guerras, em que elas não sejam necessárias. É possível fazer-se isso”.
Como assinala Carlyn Harvey, ao escrever no The Canary: “Para milhões de cidadãos em todo o mundo, isso (a posição antiguerra de Corbyn) é uma ótima notícia. Mas para os que tencionam manter a política de poder e para as indústrias lucrativas que os apoiam, a visão de Corbyn está condenada ao desastre”.
O incansável grupo de pressão para a guerra classifica Corbyn como um “perigoso extremista” porque, se outros políticos ocidentais o seguirem, e promoverem o desarmamento e o diálogo, em vez da confrontação e da guerra, os lucros da defesa sofrerão um rude golpe.
Foi um presidente norte-americano, Dwight D Eisenhower, o primeiro a alertar-nos contra o complexo militar-industrial, em 1961: “Temos que nos precaver contra a aquisição de uma influência indesejável, procurada ou não, do complexo militar-industrial”, disse.
Ninguém podia acusar o Supremo Comandante da Forças Aliadas na Europa, na II Guerra Mundial, de ser “comuna” ou “marionete do Kremlin”. Mas a situação é hoje muito pior do que era na época de Eisenhower.
Os neoconservadores imiscuíram-se nos corredores do poder. Apregoam estar interessados em espalhar a “democracia”, mas na realidade o movimento neoconservador só se preocupa com dinheiro e lucros. Henry “Scoop” Jackson, o político norte-americano que se opôs violentamente à détente com a União Soviética nos anos 70, foi alcunhado, com toda a razão, de “Senador para a Boeing”.
Trinta anos depois, a primeira reunião pós abertura da Sociedade Henry Jackson discutiu como difamar o acadêmico antiguerra Noam Chomsky, por ele não aceitar a classificação de genocídio quanto ao massacre de Srebrenica. Parece que, para certas pessoas, a velha Guerra-Fria nunca acabou.
Quanto tempo mais os cidadãos do mundo aguentarão uma situação em que os defensores da guerra, com ligações com o complexo militar-industrial, têm toda a liberdade de alimentar as tensões internacionais? Na próxima vez que lerem ou ouvirem alguém a falar da “ameaça russa” – e porque é que a Otan precisa de reforçar os seus gastos para lhe fazer frente – simplesmente sigam a pista do dinheiro.
Provavelmente será uma revelação.
* Jornalista, escritor, homem de rádio e blogueiro. Tem escrito para muitos jornais e revistas no Reino Unido e noutros países, incluindo The Guardian, Morning Star, Daily e Sunday Express, Mail on Sunday, Daily Mail, Daily Telegraph, New Statesman, The Spectator, The Week e The American Conservative.
Tradução de Margarida Ferreira
Fonte: Resitir.info