Opinião
A agenda da indignação de Washington e as contradições da esquerda
Um paradoxo inquietante atravessa hoje, de maneira crescente, a identidade da esquerda ocidental. Não apenas o anti-imperialismo e o anticolonialismo não estão mais nos seus discursos, já confinados, estes, à estrita área euro-atlântica dos direitos civis. É o seu olhar para o mundo que está além dos Estados Unidos e da Europa, que se desperta apenas quando este se torna um alvo crítico contra o qual se voltar, e lhe permite retomar a conhecida contraposição “Nós” – “Eles”: “Nós” governos democráticos, respeitosos dos valores e dos direitos, “Eles”, tiranos cruéis, a serem derrubados a qualquer momento e por qualquer meio.
Por Emiliano Alessandroni (*)
Sabemos que a demonização do inimigo constitui uma prática corrente na história do colonialismo: a insistência repetitiva dos jornais e da intelligentzia europeia sobre “bárbaros” a redimir, sobre “canibais” a civilizar, o chamamento moral da “responsabilidade do homem branco” (white man’s burden); toda a retórica dos valores e dos direitos foi sempre posta em campo para criar e consolidar o consenso diante das mais sanguinárias operações coloniais. Para não falar, naturalmente, de quando os “bárbaros” e os “canibais” são capazes de pôr em pé seus governos: como ocorreu em São Domingos (o nome do Haiti na época. N.R.) após a revolta dos escravos negros liderada por Toussaint Louverture. Não era de governos que se tratava, segundo as reportagens que nos chegavam, mas de macabros despotismos.
A esquerda ocidental (salvo as correntes mais radicais: a jacobina após a Revolução Francesa e a filha da Revolução de Outubro) sempre sofreu o fascínio pelas mitologias brancas, absorvendo e repropondo inconscientemente, nas mais variadas configurações, a lógica maniqueísta “Nós” – “Eles”, “sadios” – “doentes”, “racionalidade”‒ “loucura”.
Assim ocorre nos nossos dias: quando nenhum radicalismo, nenhuma visão universalista inspirada na tradição revolucionária domina o horizonte cultural, mas a “moderação” euro-atlântica, cristalizando-se em ideologia (e em sistema de valores), que constitui o eixo de orientação dos modos de pensar coletivos.
Deveria estar bem claro que a Síria foi posta entre os objetivos de Washington desde o “Project for the new american century”, datado do fim dos anos 1990, para depois ser inserida na lista dos assim chamados “Estados canalhas”. E que desde então as atenções foram redobradas com o apoio do Ocidente ao ISIS (sigla em inglês do chamado Estado Islâmico. N.R.) e ao terrorismo de matriz islâmica. Mas a Síria, sabe-se, não é a Europa, e, portanto, não pode ser senão, para a esquerda ocidental, uma tirania, uma forma governamental de “canibalismo”, que teimosamente não obedece, não aceita submeter-se às diretivas do Ocidente.
Estamos assim diante de um paradoxo: tão logo os EUA ampliam sua vocação imperialista, a esquerda euro-atlântica se mostra pronta a conciliar-se com Trump: criticado com razão pelas posições retrógradas assumidas em matéria de direitos civis (no que concerne aos direitos dos homossexuais, dos imigrantes e o direito ao aborto), seu comportamento torna-se subitamente conciliatório tão logo este mostra a própria agressividade contra países ou regiões como o Irã, a China, a Coréia do Norte, Donbass e, por último, a Síria.
Rios de lágrimas, por 50, 70 mortos em Khan Sheikhun, na guerra que combate o governo sírio contra os terroristas, mas um silêncio estonteante diante das 180 mortes provocadas por estes últimos em Homs e Damasco, ou diante de outras 300 pessoas carbonizadas, há poucos dias, pelos bombardeios americanos efetuados sobre a cidade de Mossul (1). Assim como, em comparação aos atentados de Paris e de Londres, um silêncio estonteante cercou aquele de São Petersburgo.
A raiva e a indignação desperta, substancialmente, na esquerda pós-moderna de nossos países bem pensantes, apenas quando as mortes são provocadas pelas forças que se contrapõem ao “Project for the new american century”.
Acreditando, ou querendo fazer crer que se ocupa unicamente de moral e não de política, a esquerda ocidental não faz outra coisa que seguir, no que diz respeito aos eventos em escala planetária, a agenda da indignação estabelecida por Washington. Uma indignação imperialista – podemos assim definí-la -, da qual emana uma torrente de lágrimas destinada a escorrer pelos jornalistas a serviço de Trump, pela CIA e por Israel.
Os efeitos de tudo isso? Mais que nefastos. Uma vez que também as emoções têm um forte papel político na luta pelo consenso que se joga em escala planetária, esta indignação filo-americana, centrada sobre a inverossímil história do ataque com armas químicas ordenado por Bashar al-Assad, terminou na verdade por preparar o terreno consensual para a intervenção armada dos Estados Unidos na Síria.
No lugar de apontar o dedo contra o caráter faccioso, mentiroso e instrumental dos nossos aparatos de informação, a opinião pública do Ocidente acreditou na tese segundo a qual não o ISIS, mas o presidente eleito, constituiria na Síria o principal inimigo a abater, o responsável pelos horrores.
Fortalecido por este terreno consensual construído com esmero, Donald Trump pode assim assegurar a integridade moral do mundo euro-atlântico: “nenhuma criança sofrerá mais assim”, brada com veemência. E o faz sem sentir o dever de dar qualquer explicação pelas centenas de mães e filhos trucidados poucos dias antes em Mossul, no Iraque: não havendo acusação da opinião pública, não há necessidade nem mesmo de uma defesa.
Assim, cada vez mais forte pela aprovação dos nossos governos e da moral ocidental, ordena, sem a autorização do Congresso e do Conselho de Segurança da ONU, o lançamento de 59 mísseis Tomahawk contra a região central da Síria que matam 9 civis, entre os quais 4 crianças. Israel e Arábia Saudita se congratulam. O ministro do exterior britânico, Boris Johnson, exulta, e afirma que se deveria atingir ainda mais. Naturalmente, estes e aqueles de Mossul (como todos os casos dos civis mortos por bombas com a marca das estrelas e listras), para a grande imprensa euro-atlântica, não são casos de homicídios, mas “crianças secundárias”.
Cadáveres, portanto, não faltam a ninguém, nem mesmo ao ISIS, que, em simultâneo ao ataque americano, lança uma ofensiva contra o exército sírio em Homs (2).
Mais crível que a versão de Trump, que afirma agir em nome da salvação das crianças, resulta então aquela do Aiatolá iraniano Mohammad Emami Kashani, substituto do Guia supremo Sayyed Ali Khamenei na pregação de sexta-feira em Teerã, o qual, sem meios-termos, descreveu o bombardeio dos Estados Unidos contra a Síria como “uma cobertura para salvar terroristas” (3).
A esquerda ocidental, no lugar de denunciar a cooperação já evidente entre os Estados Unidos e o terrorismo islâmico, o renitente faccionismo dos nossos meios de informação e os projetos do eixo EUA-Israel de controle do Oriente Médio, oculta as incongruências lógicas da propaganda com doses maciças de emotividade, e, assim fazendo, dá a palma da mão a uma estranha parceria: afinal de contas, era suficiente que a Casa Branca colocasse um pouco de gás em seu expansionismo, para que as posições da citada esquerda se conciliassem com aquelas de Donald Trump. Talvez, então, a caracterizar a sua natureza política, mais que o deslocamento da centralidade dos direitos econômico-sociais em nome dos direitos civis, esteja a forte atração nutrida, seja qual for o presidente estadunidense de turno, pelo horizonte moral e as structures of feeling do imperialismo.
(1) Cf. Corriere.it
(2) Cf. Rt.com e Affaritaliani.it
(3) Cf. Ansa.
(*) Emiliano Alessandroni é Doutor em Estudos Interculturais Europeus pela Universidade de Urbino. Autor, entre outros, de Ideologia e Strutture Letterarie (Aracne, 2014) e Potenza ed Eclissi di um sistema: Hegel e i fondamenti della trasformazione (Mimesi, 2016). Artigo publicado originalmente no site da Associazione Politico-Culturale MarxXXI.
Tradução de Marcos Aurélio da Silva, professor do programa de pós-graduação em Geografia da UFSC.