História
72 anos da libertação de Auschwitz pelo Exército Vermelho
Nesta sexta-feira (27) completam-se 72 anos da libertação de Auschwitz pelo Exército Vermelho. Este fato, de incontestável relevância histórica, é alvo de repetidas tentativas de manipulação, na busca por diminuir ou ocultar o papel do movimento operário e comunista na luta contra o nazi-fascismo e o forte apoio do capital industrial e financeiro a esta corrente política, que agora volta a ter ativos propagandistas. O Resistência, em comemoração à data, reproduz artigo de Manuela Pires sobre o tema, publicado na revista O Militante, órgão teórico do Partido Comunista Português (PCP).
A libertação de Auschwitz pelo Exército Soviético
Por Manuela Pires
Assinalar os 72 anos da libertação do campo de concentração de Auschwitz pelo Exército Vermelho não deve ser encarado como uma mera efeméride, mas sim como mais um momento da permanente reflexão sobre as causas e as consequências do ascenso do nazismo e da Segunda Guerra Mundial que lhes estão associadas, retirando as necessárias conclusões para o presente e para o futuro. Uma reflexão tanto mais imprescindível quanto um pouco por todo o lado se assiste ao levantar cabeça das forças neonazis e a uma ofensiva de desvalorização e apagamento do papel determinante da União Soviética e do Exército Vermelho para a derrota do nazismo e a libertação dos povos.
Um momento para relembrar a conivência do fascismo português com o nazi-fascismo alemão e italiano, não permitindo que se apague da memória que o governo fascista de Salazar, já depois de ter ativamente participado ao lado de Franco na mortífera Guerra da Espanha (1936-1939), tinha afirmado a neutralidade portuguesa, o que seria de fato uma permanente colaboração. As notícias sobre os campos de concentração eram cortadas pela censura. Na Igreja dos Mártires da Pátria celebrou-se missa pela alma de Mussolini e mais tarde pela de Hitler. O campo de concentração do Tarrafal (inaugurado em 1936) continuou a funcionar até 1956, sendo reaberto em 1961 para os resistentes das ex-colônias.
Não há nenhuma revisão da história que possa apagar o fato de que foram os soldados do Exército Vermelho que no dia 27 de janeiro de 1945, depois de imensos sacrifícios e pesadas derrotas infligidas aos exércitos nazis, libertaram o campo de concentração de Auschwitz, um imenso complexo de campos de trabalho forçado e extermínio, o maior de todos da Alemanha nazi. A libertação de Auschwitz ganhou assim enorme força simbólica (1). No local encontraram cerca de 7 mil presos nas mais terríveis condições de degradação física. Na iminência da derrota, os alemães tinham procedido ao extermínio de milhares de pessoas, à evacuação de outros milhares de presos nas denominadas “marchas da morte” e tentado apagar os vestígios das atrocidades cometidas.
Instrumento de repressão
Sob a tutela direta das SS e orientados por Himmler, os campos de concentração surgiram na Alemanha nos primeiros anos do regime nazi, espalhando-se pela Europa nos territórios que iam sendo conquistados. Num total de 27 campos principais e mais de 1.100 campos satélite, eram um instrumento de repressão dos opositores ao regime nazi; de trabalho escravo para o Estado alemão e “aluguel” de mão-de-obra a empresas privadas agrícolas e industriais; de experiências médicas sobre os detidos; e eliminação física de grupos pré-determinados pelos nazis (prisioneiros de guerra soviéticos, judeus, ciganos, homossexuais, entre outros); vários tinham câmaras de gás e crematórios.
O primeiro grande objetivo dos campos de concentração foi a repressão política. Dachau foi criado na Primavera de 1933, logo a seguir à posse de Hitler como chanceler, para acolher as primeiras vítimas do terror fascista.
No início de março, a pretexto do incêndio do Reichstag, é aprovado um decreto que suspende todas as liberdades políticas e civis, é iniciada uma vaga de terror, sendo detidas cerca de 5 mil pessoas, na sua maioria comunistas e sindicalistas, assassinados e feridos dezenas de opositores pelas forças paramilitares. Até finais de abril esse número ascendeu aos 40-50 mil, sendo detido Ernst Thälmann, líder do Partido Comunista da Alemanha, executado em Buchenwald em agosto de 1944. No final de 1933 o número de detidos (extrajudicialmente e por tempo indefinido), quase todos de nacionalidade alemã, atingiu os 200 mil.
Posteriormente, os diversos campos criados para detenção dos opositores internos foram sendo reestruturados com o objetivo de conversão em campos de trabalho forçado, sobretudo a partir de 1938, ano dramático para os judeus, que apesar das perseguições e da emigração forçada representavam até então um número reduzido de prisioneiros.
Com o eclodir da guerra começam as detenções em massa de cidadãos estrangeiros dos territórios ocupados, levando ao gigantesco aumento do número de presos. De destacar os combatentes republicanos na guerra de Espanha, muitos deles refugiados em França e que, com a ocupação, foram enviados para os campos de concentração (cerca de 6 mil), sobretudo Mauthausen.
Campos de trabalho forçado e de extermínio
Os campos de concentração foram campos de trabalho escravo utilizados pelo Estado nazi e por empresas privadas, a maioria grandes monopólios alemães (tais como a IGFarben – que integrava, entre outros, a Bayer, a AGFA, a BASF; o grande consórcio de armamento Rheinmetall, que incluía a AEG ou a Blaupunkt; a Bata; Krupp, Heinkel, BMW, Volkswagen, etc.).
Em 1940 o regime nazi decide utilizar intensivamente a mão-de-obra dos campos de concentração para o esforço de guerra. A partir de 1941 começam a chegar aos campos de concentração grandes contingentes de prisioneiros de guerra soviéticos.
Na Primavera de 1941 a Alemanha nazi tinha já 1,2 milhões de prisioneiros de guerra e 1,3 milhões de trabalhadores “civis” que representavam 8,4% da força de trabalho. A intensificação do esforço de guerra e a falta de mão-de-obra, levaram à elaboração de um programa gigantesco de trabalho forçado, em março de 1942. Assistiu-se à mobilização de milhões de trabalhadores de toda a Europa, mais de metade vindos da Europa do Leste com idades entre os 12 e os 22 anos.
Em janeiro de 1942, com as primeiras derrotas a Leste e a necessidade de substituir os prisioneiros de guerra soviéticos, os nazis decidem recorrer ao trabalho escravo dos judeus (que representavam no início de 1942 menos de 5 mil dos 80 mil presos nos campos). Num telegrama, Himmler escrevia: “Prepare-se para acomodar 100.000 judeus e até 50.000 judias nos KL [campos de concentração] nas próximas quatro semanas”. (Wachsmann, p. 306).
No Outono de 1944 o número de trabalhadores forçados estrangeiros atingia quase 8 milhões, representando mais de 20% da força de trabalho; na indústria de armamento representavam mais de um terço.
As intensas jornadas de trabalho, as carências alimentares, as dramáticas condições de encarceramento, foram fator de extermínio de muitos milhares de seres humanos. A exploração foi levada à sua expressão mais terrível. “Dos 1,65 milhões de presos nos campos de concentração utilizados num momento ou noutro na economia alemã – referindo aqui apenas os campos não envolvidos na fase final de extermínio da Solução Final – não sobreviveram à Guerra mais de 475.000. O que implica a morte, pelo menos de 1,1 milhão de trabalhadores (…)”. (Tooze, p. 523).
Estes trabalhadores dadas as condições de trabalho e encarceramento tinham uma menor produtividade, mas não deixavam de ser mais lucrativos, além de estarem disponíveis. Como refere o Prof. Tooze, os nazis tentaram sempre conciliar os seus impulsos assassinos e um sistema racional de exploração da mão-de-obra disponível nos campos.
A partir de 1941 começam as execuções em massa por gás asfixiante, primeiro com os prisioneiros de guerra soviéticos e alargando-se depois aos outros detidos. Em Majdanek e sobretudo em Auschwitz, escolhidos para funcionarem como centros de genocídio, foram construídas, a partir de 1942, câmaras de gás com crematórios integrados para garantir maior eficiência na eliminação imediata dos cadáveres.
Segundo Waschmann (p. 636), estima-se que dos 2,3 milhões de detidos em campos de concentração terão morrido mais de 1,7 milhões (dos quais um milhão de judeus); só em Auschwitz morreram cerca de um milhão de pessoas.
Os prisioneiros de guerra soviéticos
A invasão da União Soviética, em junho de 1941, foi classificada por Hitler como uma guerra de total extermínio. A ocupação da URSS envolveu planos genocidas em grande escala que incluíam a liquidação maciça dos prisioneiros de guerra soviéticos. O objetivo estratégico era a tão ambicionada conquista do chamado “espaço vital” que envolvia o deslocamento de populações e o estabelecimento de colonatos alemães (2).
No Outono de 1941 começaram a chegar aos campos de concentração os prisioneiros de guerra soviéticos, alvo de um brutal tratamento, para os quais não houve qualquer misericórdia. A maioria morreu nos campos de prisioneiros vitimada pela fome e pelo frio ou assassinados fora ou dentro dos campos de concentração.
Para além dos milhares que morriam no transporte para os campos, a maioria dos sobreviventes era executada pouco depois. Pela primeira vez verificam-se execuções em grande escala. Menos de um ano depois já cerca de 40 mil haviam sido executados. Só em Sachsenhausen foram executados 9 mil prisioneiros de guerra soviéticos entre setembro e outubro de 1941, mortos a tiro na nuca. Em Dachau iniciaram-se os fuzilamentos coletivos. Em setembro de 1941, em Auschwitz tem lugar o primeiro gaseamento em massa de presos num campo de concentração com Zyklon B, tendo sido executados, depois de outros ensaios prévios, 900 prisioneiros de guerra soviéticos, seguindo-se matanças idênticas noutros campos. Apenas em outubro de 1941 quase 5 mil foram mortos por dia. Em fevereiro de 1942, dos mais de 3 milhões de prisioneiros de guerra soviéticos tinham morrido 2 milhões à fome, frio, doença ou assassinados.
“Os líderes políticos e militares alemães encaravam os prisioneiros de guerra soviéticos não apenas sob o ponto de vista racial mas como inimigos potenciais, obstáculos na conquista germânica do ‘espaço vital’ (…) O tratamento alemão dos prisioneiros de guerra soviéticos diferiu dramaticamente da política alemã relativa aos prisioneiros de guerra de Inglaterra ou dos EUA, países que os alemães encaravam como iguais aos alemães do ponto de vista racial. Dos 231.000 ingleses e americanos presos pelos alemães durante a guerra apenas 8.300 – 3,6% – morreram sob custódia alemã” (United States Holocaust Memorial Museum).
Pela Paz, contra o fascismo e a guerra!
Não deixar esquecer os crimes do nazismo e lutar hoje contra os perigos do nazi-fascismo e as ameaças de uma nova guerra é tarefa inadiável a exigir a mobilização das forças democráticas e de todos os trabalhadores.
Como salientava a nota do Secretariado do CC do Partido Comunista Português – PCP (abril de 2015) a propósito do 70º Aniversário da Vitória sobre o nazi-fascismo: “O fascismo é a ditadura terrorista dos círculos mais reacionários e agressivos do capital financeiro. Hitler foi um instrumento dos monopólios alemães que alimentaram, apoiaram e lucraram com a criminosa política nazi, incluindo com a mão-de-obra escrava dos prisioneiros dos campos de concentração. Nada disto pode ser esquecido. As tentativas para apagar as responsabilidades do grande capital na hecatombe da Segunda Guerra Mundial e esconder a natureza de classe do nazi-fascismo devem ser fortemente combatidas. (…) Devem ser firmemente rejeitadas operações de falsificação da História que visem apagar, diminuir ou deformar a heroica contribuição do movimento operário, dos comunistas e da União Soviética para a derrota do nazi-fascismo e absolver os EUA, a Grã-Bretanha e a França da política de ‘apaziguamento’ simbolizada pela traição de Munique que, procurando encaminhar a Alemanha nazi contra a URSS, conduziu ao desencadeamento da guerra”.
Notas
(1) Já no Verão de 1944 as forças militares soviéticas tinham libertado campos de concentração na Polônia: Madjanek, Belzec, Sobibor e Treblinka. O grande escritor soviético Constantino Simonov descreveria a situação em Madjanek num artigo publicado no Pravda, em Agosto de 1944, ignorado na altura pela imprensa ocidental.
(2) “No Outono de 1941 na discussão do futuro da Alemanha no Leste, Hitler repetidamente retornava ao exemplo americano. O Volga, afirmava, seria o Mississippi alemão. E a sangrenta conquista do oeste americano forneceu à Alemanha o mandato histórico necessário para justificar a limpeza da população eslava. ‘Aqui no Leste um processo similar repetiria pela segunda vez a conquista da América.’ O estabelecimento duma população de colonos ‘superior’ afastaria uma população nativa ‘inferior’ abrindo o caminho a uma nova era de possibilidade econômica. […] ‘A Europa – e não a América – será a terra das possibilidades ilimitadas.’ ” (Tooze, p. 469).
Bibliografia
– Dossiê Segunda Guerra Mundial, Edições «Avante!», Lisboa, 2015.
– Dossiê 60.º, 65.º e 70.º aniversários da derrota do nazi-fascismo. www.pcp.pt/dossiers
– Mémoire Vivante. Bulletin de la fondation pour la Mémoire de la Déportation, n.ºs 41/42.
– Tooze, Adam. The wages of destruction, Penguin Books, London, 2006.
– United States Holocaust Memorial Museum https://www.ushmm.org
– Wachsmann, Nikolaus. KL. A história dos campos de concentração nazis, D. Quixote, Lisboa, 2015.