Opinião
O que é o socialismo afinal?
Por Gabriel Martinez *
Ao debatermos o que seria o socialismo, não raro nos deparamos com diferentes interpretações e divergências sobre o que seria o conteúdo essencial desse novo sistema social. Apesar de não ser um debate novo, até os nossos dias existem personalidades, correntes e organizações políticas que buscam oferecer explicações “alternativas”, alheias e opostas às definições clássicas do marxismo-leninismo, ao problema do que seria o socialismo. Não raro, costumam afirmar que as explicações “tradicionais” estariam ultrapassadas, sendo necessário atualizá-las de acordo com o que consideram ser a “mudança das circunstâncias”. Os que assim procedem, na esmagadora maioria dos casos, buscam apenas reintroduzir no interior do movimento operário teorias e teses há muito tempo refutadas, apresentando-as, porém, como se algo novo fossem. Com as derrotas sofridas pelo Movimento Comunista Internacional, que resultaram na dissolução da União Soviética, não faltaram aqueles que tentaram buscar nos próprios fundamentos teóricos do marxismo-leninismo as razões que levaram a queda da primeira experiência socialista da história. Para muitos, o “modelo rígido” daquelas sociedades era incompatível com os avanços e transformações operados nas “sociedades modernas”, sendo assim, a derrota de tais sistemas era algo inevitável. Os que professam tais teses clamam estar buscando por “novas explicações sobre o que é o socialismo”. Infelizmente, esse tipo de concepção possui um certo “mercado”, não apenas no interior de organizações reformistas e social-democratas tradicionais, mas também em organizações que ainda reivindicam abertamente o marxismo e o comunismo. Sendo assim, neste artigo, tentaremos fazer alguns apontamentos introdutórios sobre quais seriam as características e elementos do que seria o socialismo.
Organização do partido proletário e a supressão da propriedade privada dos meios de produção: estabelecimento do sistema básico do socialismo
A social-democracia tradicional, em seus ataques furiosos contra o Movimento Comunista Internacional, sempre condenou os fundamentos básicos do marxismo-leninismo. No pós- Segunda Guerra Mundial, desde a conferência de Frankfurt, realizada em 1951 pela chamada “Internacional Socialista”, a social-democracia passa a realizar violentos ataques contra os países socialistas e o marxismo-leninismo. Qualquer pessoa que ler com atenção a chamada “Declaração de Frankfurt”, pode notar a semelhança dos argumentos da social-democracia daquela época com os revisionistas atuais.
Um dos defeitos fundamentais do chamado “socialismo-democrático” é que este não compreende o socialismo como um novo sistema político ou um novo modo de produção superior, que surge como uma negação fundamental do sistema básico do capitalismo, mas sim como um projeto ético, tendo como base “novos valores morais” e em defesa de “justiça” e “igualdade social”. Na prática, defendem a preservação do sistema capitalista e do chamado “sistema democrático” dos países capitalistas desenvolvidos. A negação do marxismo é acompanhada pela adoção aberta de concepções humanistas burguesas sobre a sociedade. Nesse sentido, resultaria impossível tentar buscar a explicação da sociedade socialista levando em consideração suas características básicas no âmbito econômico e político. O socialismo, neste caso, seria apenas um “slogan” baseado em preceitos éticos e morais. Dessa forma, a social-democracia abandona qualquer tentativa de justificar de maneira científica o socialismo, adotando posições pré-marxistas e utópicas.
Como devem, então, os marxistas entender o socialismo?Antes de buscarmos “desenvolver” ou acrescentar novas formulações e teses sobre o que seria o socialismo – tarefa, sem dúvidas, necessária, porém deturpada e frequentemente utilizada por revisionistas como forma de se castrar a essência revolucionária do marxismo e do socialismo – é necessário que tenhamos um entendimento básico de como os clássicos enxergavam essa questão. É necessário respondermos à pergunta “o que é socialismo” levando em consideração o problema a partir de uma perspectiva política e econômica. O que seria o sistema político básico do socialismo e quais seriam as suas principais características no âmbito econômico? Através do estudo dos clássicos, podemos compreender o significado contemporâneo de suas formulações. Antes de querermos desenvolver a nossa ciência, é necessário entendermos do que ela trata. Fazendo isso, bem como observando a experiência concreta de construção do socialismo nos antigos países socialistas – e também nos países socialistas remanescentes – é que podemos ter uma correta compreensão sobre o que seria o socialismo. É necessário destacar que ao falarmos em “socialismo”, utilizamos e concordamos com a definição básica dada por Lênin de que o socialismo seria a fase inferior da sociedade comunista. [1]
Marx e Engels, ainda no Manifesto Comunista, afirmaram que “os comunistas podem condensar a sua teoria numa única expressão: supressão da propriedade privada”. Essa definição é importante para entendermos em traços gerais a natureza e as características do tipo de sociedade que os comunistas buscam construir. Ela, longe de ser uma proposta fruto de um devaneio dos autores, é na verdade uma constatação que deriva da observação crítica das próprias contradições geradas pelo desenvolvimento da produção capitalista. É a partir dela que também podemos traçar uma linha divisória entre o que seria o socialismo, em sua forma científica, e todas as vertentes de socialismo que não correspondem às concepções do marxismo.
Para iniciarmos, observemos o problema do socialismo a partir de uma dimensão política. Também no “Manifesto Comunista”, Marx e Engels ressaltaram a importância do proletariado se organizar em partido político e assim lutar pela tomada do poder. Tal partido proletário, por sua natureza, não possui interesses diferentes dos interesses do proletariado em seu conjunto. Como afirmou Marx e Engels:
“Os comunistas não são um partido particular face aos outros partidos operários. Não têm interesses separados dos interesses de todo o proletariado. Não estabelecem princípios particulares segundo os quais pretendem moldar o movimento proletário. Os comunistas distinguem-se dos demais partidos proletários apenas porque, por um lado, nas diferentes lutas nacionais dos proletários acentuam e fazem valer os interesses comuns, independentes da nacionalidade, do proletariado na sua totalidade, e porque, por outro lado, nas várias etapas de desenvolvimento por que passa a luta entre o proletariado e a burguesia, representam sempre os interesses do movimento na sua totalidade.” [Karl Marx e Friedrich Engels, Obras Escolhidas, Volume 1, Edições Avante, pg.119]
A necessidade da organização do proletariado em partido político próprio, cujo objetivo principal é lutar contra os partidos burgueses e a sociedade burguesa de um modo geral, tomando o poder político, decorre do fato de que o processo de desenvolvimento capitalismo despojou as massas trabalhadoras dos meios de produção, convertendo-as em trabalhadores assalariados separados do controle dos meios de produção materiais. Nesse sentido, a organização é a única arma que o proletariado possui em sua luta contra a burguesia e o capitalismo. Sem resolver a questão do poder político e, consequentemente, da propriedade, resulta impossível falarmos em socialismo. Resolver o problema de quem controla a propriedade, ou seja, quem controla os meios de produção, passa a ser uma questão fulcral para corretamente entendermos a questão do socialismo. Daí, Marx e Engels proporem que o proletariado se organizem em partido político no sentido da luta pela tomada do poder político. Neste processo, o proletariado se converte em classe dirigente da sociedade, estabelece o seu próprio sistema político em oposição ao velho regime burguês e despoja a classe capitalista do controle dos meios de produção colocando no lugar o controle público e social desses meios de produção. Dessa forma, o proletariado estabelece um sistema político e econômico que está baseado na propriedade pública dos meios de produção, ou seja, no controle proletário da produção. Todas as experiências socialistas que ocorreram no século passado realizaram, pelas mais diferentes vias, esse processo inicialmente anunciado e cientificamente fundamentado em obras como o “Manifesto Comunista”. Sendo assim, do ponto de vista econômico, o socialismo só pode ser entendido como propriedade pública e social dos meios de produção, ou seja, como propriedade dirigida e controlada pelos próprios trabalhadores. Essa é uma definição que também foi sustentada por V. I. Lenin:
“A emancipação da classe operária só pode ser obra da própria classe operária. Todas as demais classes da sociedade moderna desejam manter as bases do regime econômico existente. Para alcançar a autêntica emancipação da classe operária é necessária a revolução social, preparada por todo o desenvolvimento do capitalismo, ou seja, a supressão da propriedade privada sobre os meios de produção, sua transformação em propriedade social, e a substituição da produção capitalista de mercadorias pela organização socialista da produção de objetos, a cargo de toda a sociedade, para assegurar o pleno bem-estar e o livre e múltiplo desenvolvimento de todos os seus membros.” (V.I.Lenin, Projeto de Programa do Partido Operário Social-Democrata da Rússia (1902), Obras Completas, Tomo 6, Akal Editor).
Também, como afirmou Engels ao referir-se à revolução proletária:
“(…) o proletariado toma o poder político e, por meio dele, converte em propriedade pública os meios sociais de produção, que escapam das mãos da burguesia. Com esse ato redime os meios de produção da condição de capital, que tinham até então, e dá a seu caráter social plena liberdade para impor-se, A partir de agora já é possível uma produção social segundo um plano previamente elaborado. O desenvolvimento da produção transforma num anacronismo a sobrevivência de classes sociais diversas. À medida que desaparece a anarquia da produção social, vai diluindo-se também a autoridade política do Estado. Os homens, donos por fim de sua própria existência social, tornam-se senhores da natureza, senhores de si mesmos, homens livres.” (Friedrich Engels, Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico, Obras Escolhidas de Marx e Engels, Edições Avante, 1985, p.167)
Obviamente, a questão da eliminação da propriedade privada e do estabelecimento da propriedade social dos meios de produção precisa ser analisada de maneira histórica, cuidadosa. Engels também alertava sobre o fato de que a abolição da propriedade privada precisava ser entendida como um processo que não poderia ser realizado “de um só golpe” (Karl Marx e Friedrich Engels, Obras Escolhidas, Volume 1, Edições Avante, pg. 86). Isso se torna ainda mais verdade se levarmos em consideração a grande diferença e discrepância que persiste até nossos dias entre os níveis de desenvolvimento econômico existente entre os vários países, diferença que se aprofunda cada vez mais no contexto da intensificação do caráter parasitário e putrefato do sistema capitalista-imperialista. Dessa maneira, também levando em consideração a experiência histórica, é correto entendermos que o ritmo e fases da transição para o socialismo e para o comunismo em países cujo nível desenvolvimento das forças produtivas ainda é bastante baixo ocorrerá de maneira diferente da dos países capitalistas desenvolvidos. A partir dessa reflexão somos colocados diante de um problema diferente do problema de definirmos o que é socialismo, que é o problema de respondermos como o socialismo pode ser construído.
A direção do Partido Comunista como garantidor da correta direção ideológica da construção socialista
Com a tomada do poder político pelo proletariado e com o estabelecimento do sistema básico do socialismo por meio da expropriação das antigas classes proprietárias, um novo regime político, de caráter superior, emerge. Como a história das experiências socialistas demonstrou empiricamente, tal regime político se caracteriza, principalmente, pela liderança do partido do proletariado sobre o novo Estado que se origina do processo revolucionário. Sendo o Partido Comunista um partido de tipo proletário, que comparte dos mesmos interesses desta classe, ele vai ocupar uma posição de extrema importância também na nova sociedade que emergiu através da luta revolucionária. O Partido, como organização composta pelos elementos mais destacados e avançados da classe trabalhadora, desempenha um destacado papel de liderança ideológica durante o processo de construção e consolidação do socialismo. Sua existência é fator de extrema importância para garantir que as posições do marxismo sirvam como ideologia guia da classe trabalhadora durante todo o processo de construção do socialismo e do comunismo.
Nas antigas experiências socialistas, os países imperialistas e intelectuais burgueses costumavam atacar de maneira violenta a direção dos partidos comunistas e operários que comandavam essas nações. Segundo eles, o “monopólio do poder” pelo Partido Comunista era a demonstração do caráter não democrático e autoritário daquelas sociedades. A burguesia assim procedia, pois ela, sabiamente, identificava que a existência e a direção do Partido Comunista era garantia de preservação do sistema socialista. Claro, não podemos desconsiderar que muitos desses partidos, a partir de um determinado momento, enveredaram pelo caminho do revisionismo, foram se afastando do povo e, por fim, se converteram em organizações burocráticas, amorfas, que já não podiam desempenhar o papel pela qual originalmente foram fundadas. Porém, isso tem tudo a ver com o fato de que, também nesses partidos, circulavam ideias que negavam o papel orientador primordial que tais organizações deveriam cumprir. O caso extremo dessa deriva se deu justamente com a Perestroika de Gorbachev, que teve como obra principal a própria destruição do Partido Comunista e a anulação completa de qualquer vestígio de socialismo que existia na União Soviética. Para entendermos esse aspecto do problema, é necessário enfatizarmos a relação umbilical que existe entre a liderança do partido na sociedade socialista e a ideologia guia, ou seja, o marxismo. O partido só pode exercer corretamente o seu papel como força-guia da sociedade socialista caso tenha como ideologia o marxismo-leninismo e suas ações estejam baseadas em uma correta linha política.
O revisionismo no interior dos países socialistas também tinha como alvo de seus ataques o entendimento correto, marxista-leninista, sobre o que era socialismo. Na antiga União Soviética, com o advento de toda sorte de ideias reformistas burguesas, aos poucos o socialismo científico foi sendo substituído pelo “socialismo democrático”. No âmbito econômico o socialismo já não era mais sinônimo de propriedade pública dos meios de produção, mas sim de “economia de mercado” e “busca pela eficiência”. Na política, os princípios básicos do marxismo-leninismo foram gradualmente sendo substituídos em favor da ideologia burguesa dos chamados “valores universais”. Atualmente, também na China ideias como essa possuem uma certa popularidade entre intelectuais deslumbrados com as “maravilhas” do mercado e do capitalismo. O economista Wu Jinglian, por exemplo, abertamente apregoa a tese de que socialismo não necessariamente precisa ter como fundamento a propriedade estatal dos meios de produção (propriedade pública). Buscando subverter completamente o entendimento correto estabelecido pelo socialismo científico, de que o regime socialista só pode se desenvolver sobre a base da economia pública dos meios de produção, o economista chinês busca vender a ideia de que socialismo seria “justiça social + economia de mercado”. Posteriormente, frente a enxurrada de criticas que Wu Jinglian recebeu do público, o economista alterou sua definição de socialismo, afirmando que este seria a “justiça social e a prosperidade comum”. Não seria essa definição muito próxima do que também defendem os social-democratas e revisionistas do marxismo? Entender o problema da “prosperidade comum” – em essência, um conceito utilizado para se referir a elementos do processo de distribuição na sociedade socialista – desconectando-o da questão das relações de produção e da base econômica da sociedade é algo que não faz sentido. A “prosperidade comum” é algo que só pode ser realizado no contexto da existência da propriedade pública dos meios de produção, onde os trabalhadores possuem com tais meios uma relação de “donos” dos mesmos. Wu Jinglian, a exemplo de outros economistas burgueses e revisionistas, fala em “prosperidade comum” ao mesmo tempo que defende a privatização da economia nacional chinesa. Como afirmou Zhou Xincheng, importante economista marxista chinês ao criticar as teses de Wu Jinglian:
“Não só a produção deve ser desenvolvida, mas a exploração deve ser eliminada e a polarização erradicada para, gradualmente, alcançar a prosperidade comum. Para isso, deve ser estabelecida a propriedade pública socialista, pois sob a propriedade pública, todos são iguais perante os meios de produção, e ninguém pode possuir os frutos do trabalho alheio sem compensação através da posse dos meios de produção. Essa é a premissa básica para alcançar a prosperidade comum, o que é impossível com base na propriedade privada.” (Zhou Xincheng, O socialismo pode existir sem uma economia estatal? – Análise da entrevista de Wu Jinglian, 2014)
Todos esses elementos apresentados acima, obviamente, não esgotam o problema da explicação do que é o socialismo, mas eles servem como uma orientação inicial para entendermos o problema a partir de uma perspectiva marxista. Argumentamos, portanto, que o socialismo só pode ser entendido como uma sociedade baseada na existência e predominância da propriedade pública dos meios de produção. Ainda que reconheçamos as complexidades e desafios que se apresentam no processo de construir objetivamente uma sociedade com tais características, caso não tenhamos claro esse ponto não estaremos discutindo de maneira séria a questão do socialismo.
Notas
[1] V.I.Lenin em O Estado e a Revolução: “Aquilo a que se chama habitualmente socialismo, chamou Marx a ‘primeira’ fase ou fase inferior da sociedade comunista.”
[2] Na obra “Crítica ao Programa de Gotha”, escrita em 1957, Marx vai pela primeira vez dividir a sociedade comunista em dois estágios, inferior e superior. O estágio inferior do comunismo – ou socialismo – seria a etapa onde, apesar de os meios de produção já serem propriedade social, a distribuição ainda se realiza de acordo com a quantidade de trabalho aportada. Segundo Marx, tal forma de distribuição ainda carrega uma “limitação burguesa”, já que ela não pode levar em consideração as diferenças que existem entre os trabalhadores (diferença no tamanho da família, habilidades, padrões de vida, etc). Apesar de a fase inferior da sociedade comunista (socialismo) ainda trazer em seu seio as marcas da velha sociedade, ela é também fundamentalmente distinta da sociedade capitalista, no sentido que aqui a supressão da propriedade privada dos meios de produção também aboliu a exploração do homem pelo homem.
Referências:
Karl Marx e Engels: Obras Escolhidas, Volume 1 e 3, Edições Avante, Lisboa, 1985.
V.I.Lenin: Obras Completas, Volume 6, Akal, Madrid, 1976.
周新城, Zhou Xincheng. 2014. 社会主义能够不要国有经济吗?—— 评吴敬琏的访谈绿 (O socialismo pode existir sem uma economia estatal? – Análise da entrevista de Wu Jinglian). Acessado em: http://www.wyzxwk.com/Article/sichao/2014/09/328578.html
*Mestre em Filosofia Marxista pela Universidade Normal de Pequim