Opinião
O poder de fato
Por José Reinaldo Carvalho (*)
As movimentações políticas dos últimos dias em torno dos dois principais projetos do governo de extrema-direita são reveladoras de qual é o padrão consistente dos mecanismos de imposição da vontade dos poderosos ao povo, principalmente quando se trata de liquidar direitos democráticos e sociais: um misto de manipulação com hipocrisia, uma jogada demagógica para convencer os incautos de que o presidente está cumprindo “promessas de campanha” e inovando na metodologia política.
Mas a teatralização não consegue esconder as coisas fundamentais da vida real, mormente quando os atores principais mostram a cara e das coxias vêm à tona as contas a pagar pelo público. É onde e quando se revela o que é o poder de fato no Brasil.
A visita de Bolsonaro à Câmara dos Deputados para entregar o projeto da reforma previdenciária ao titular da casa, cercado de acólitos, nada tem a ver com inovação de métodos nem muito menos com uma inclinação democrática do presidente, repentinamente acometido por um surto de apego às instituições.
É hora de perguntar aos analistas de cartilha onde e como ficam as teses sobre o “fim” do “presidencialismo de coalizão”. Afinal, não foi isto que prevaleceu quando o ex-juiz de Curitiba foi obrigado a fatiar seu projeto “anticrime”? Não é isto que está prevalecendo quando, diante de toda uma nação assustada pelo que virá em termos de corte de direitos, os inomináveis chefes dos poderes Executivo e Legislativo fazem uma aliança explícita para aprovar a toque de caixa uma reforma destinada a massacrar o povo pobre e a beneficiar os magnatas do negócio do seguro privado? Não é também o que já transparece das negociatas em torno de emendas parlamentares e entendimentos para o preenchimento de cargos de segundo e terceiro escalões? Ou mesmo da chantagem explícita sobre governadores, alguns dos quais, embora oposicionistas, já com a cerviz recurvada manifestando adesão ao plano Bolsonaro/Guedes?
Alguns incautos ungiram o ultraliberal presidente da Câmara como herói, pela derrota infligida ao governo na terça-feira (19), quando foi rejeitado um decreto contrário à transparência de dados e informações. A rejeição ao decreto foi uma vitória democrática. Porém, efetivamente, Maia estava mandando mais um recado ao chefe do Executivo de que ele detém uma grande fatia de poder e instrumentos para levar adiante planos de ilimitada ampliação desse poder. É ele quem vai conduzir a tramitação da reforma previdenciária e como tal alternará o uso das artes da negociata parlamentar, atuando como efetivo líder do governo, com a emissão de sinais de que pode ser oposição, pela direita, a fim de obter benesses para si e seus sequazes.
Este é o invariável padrão de funcionamento do sistema político brasileiro, que a demagogia bolsonariana é incapaz de alterar, a não ser para promover uma mudança para outro padrão já conhecido por nós e cujo exemplo mais recente (ainda é recente!) é o período de 1964 a 1985. É para isso que estão aboletados na Esplanada dos Ministérios oito fardados-estrelados, alguns dos quais em salas contíguas à do titular da Presidência, acompanhados de (até agora) cerca de cinquenta outros altos funcionários de origem castrense. Com poderes efetivos, aos quais se agregam, como que pairando acima de todos, o vice Mourão e o ex-comandante Vilas-Bôas.
Faz parte também desse invariável padrão a alternância de ferozes contradições entre as várias facções do sistema político e a unidade de todas elas em favor da agenda antidemocrática, antissocial e antinacional. Esta unidade é o que constitui o poder de fato. É contra ele que o povo precisa se organizar e unir.
(*) Jornalista, editor da Página da Resistência