Opinião
O futuro do Brasil hipotecado pela ideologia neoliberal
“O velho mundo morreu, o novo mundo tarda a aparecer e neste claro-escuro, surgem os monstros”. (Antonio Gramsci)
Vivemos, como diz Edgar Morin, numa era planetária que se acelera nos anos 1990 com a globalização que estabelece um mercado mundial. E uma rede de comunicações extremamente ramificada, em todo o planeta. A expansão tecnológica, assim como o desenvolvimento cientifico e econômico, projetava uma visão de futuro comum para toda a humanidade. Entretanto, o desenvolvimento continuou desigual, assim como a repartição de riquezas.
Por Marilza de Melo Foucher, de Paris para o Correio do Brasil
Alertas não faltaram da parte do mundo associativo e dos poucos governos progressistas. Muitos milhões foram gastos em conferências internacionais para poucos resultados. Infelizmente, o planeta Terra segue até hoje ameaçado de morte ecológica. As usinas nucleares vetustas representam ameaça de morte. A agricultura transgênica e os agrotóxicos se espalham. Ameaçam a biodiversidade do planeta e as enfermidades epidêmicas se proliferam.
Ou seja, a situação atual de nosso planeta é hoje caracterizada por várias crises. Econômicas, financeiras, sociais, políticas, ambientais, diplomáticas, entre outras. Sem contar as ameaças. Entre elas, a existência de guerras civis e novas formas de terrorismo que se alastram. Causam massacres humanos em vários lugares do mundo. Assiste-se ao retorno da religião no espaço da política onde predomina um fundamentalismo altamente perigoso para a coesão social. Passamos a viver numa sociedade individualista, e cada vez mais competitiva. Estamos diante de um estranho mundo, cada vez mais obcecado por números.
A economia guia o nosso destino, porém, às vezes nos leva por caminhos incertos. Aproprio-me das palavras de Edgar Morin quando dizia: “A ciência econômica, notadamente, passou a ser rainha e guia das políticas. Ela não pode conceber o que lhe escapa ao cálculo, ou seja, as emoções, paixões, infortúnios, crenças, esperanças que estão na carne da existência humana”.
A democracia refém da globalização da ideologia neoliberal
Os países do Norte foram os principais atores de uma governança mundial junto com a ONU, FMI, Banco Mundial, União Européia, empresas multinacionais e transnacionais. Os métodos aplicados para a regulação foram desequilibrados e sempre favoreceram as grandes potências. Este fato não dá à governança global uma legitimidade democrática. Esses atores permitiram a financeirização do capitalismo. Primeiro, impondo aos países do sul reformas estruturais para se adaptar às novas exigências da economia neoliberal que terminara por se transformar em estratégia ideológica. Hoje, o livre comércio cria uma concorrência.
Não apenas de produtos, mas de sistemas sociais, em detrimento daqueles que conseguiram, depois de anos de muitas lutas, obter ganhos sociais significativos. Sabe-se que a hegemonia do capitalismo financeiro só poderia ser alcançada pela via política, mediante o manejo oportuno de recursos de poder. Hegemonia, para lembrar Gramsci, se estabelece com liderança intelectual e moral.
Esses grandes atores globais esqueceram que, na era planetária em que vivemos, tudo interage. E os problemas enfrentados no Sul terminam atingindo o Norte, e vice-versa. Por esta razão, os países do Norte não poderiam sair indenes de uma crise global. Esta ultima crise do capitalismo internacional (2008) provocou vários desequilíbrios. Ou seja, o desequilíbrio entre as finanças e a economia real. Os desequilíbrios macroeconômicos entre os principais atores da economia internacional. E desequilíbrio ecológico, que se tornará necessariamente uma restrição ao crescimento futuro. Não só por causa da mudança climática, mas também, dado a outros problemas de catástrofes ambientais.
Apatia social
Se não conseguirmos impedir a evolução ditatorial do capitalismo financeiro e sua ideologia neoliberal, torna-se impossível pensar em emancipação humana. Na dignidade humana, na justiça social e em uma sociedade mais fraterna. A sustentabilidade do desenvolvimento ficará pendurada em números. Basta ver como a sustentabilidade ecológica se transformou rapidamente em marketing ecológico, voltada para a rentabilidade da natureza e seus ecossistemas.
A democracia participativa, vista como a chave de sucesso do desenvolvimento com sustentabilidade, exigia a participação dos atores locais, em todos os níveis de discussão concernente aos projetos. Entretanto, foram rapidamente abandonados. O exercício da cidadania política é visto como perigo para a propagação ideológica neoliberal. Às vezes, a convocação da comunidade para os projetos ambientais representa apenas um verniz de legitimidade, para obtenção de financiamentos internacionais ou para impor mega-projetos.
Desde 2008, os governantes dos Estados Unidos e Europa discursam em regular o sistema financeiro. Mas, na prática, pouca coisa avançou. É notório que os sistemas regulatórios globais não estão na escala dos desafios que a humanidade enfrenta. A chamada aldeia global vive, hoje, em caos permanente, sem coesão, sem redistribuição de recursos e sem justiça. O pior, e talvez o mais grave, seja que somos uma minoria a puxar o sinal de alerta. A desilusão é grande, e isto vem provocando certa apatia por parte dos cidadãos.
Direita neoliberal
Outro dado preocupante. O mundo pode deslizar em uma espécie de regime autoritário, cuja única intenção é manter privilégios de uma casta ou de uma oligarquia. Isso é politicamente dramático, e pode representar o fim da democracia. Essa ameaça ronda a Europa, onde a democracia se encontra enferma e a política não se regenera. A maioria dos cidadãos desiste de exercer a cidadania. Ou vota na extrema direita, que sempre emerge em período sombrio de crise econômica. Hoje a União Européia é composta de uma maioria conservadora e de extrema direita.
Estamos diante de um processo de despolitização engendrada pela ideologia neoliberal, e nada é mais letal do que a resignação dos cidadãos. Nos Estados Unidos o ideal democrático, há anos, foi substituído pelo poder do dinheiro. Na América do Sul os governos progressistas que chegaram ao poder, principalmente no Cone Sul (Brasil, Chile, Paraguai, Argentina e Uruguai) foram confrontados à realidade sócio-política. Deixados por décadas de políticas neoliberais traduzidas pela falência do Estado e de seus serviços públicos. Esses países serviram de laboratório para a implantação da ideologia neoliberal. Necessitarão, agora, de muitos anos para mudar a lógica exclusiva do desenvolvimento e de seu sistema de educação, tomando o exemplo do Brasil.
Infelizmente, a tendência hoje no Brasil é a retomada desta ideologia com o novo governo oriundo do golpe parlamentar.
A hegemonia do quarto poder
Vale ressaltar, também, a tirania do poder midiático. Os defensores do neoliberalismo têm investido pesadamente nos meios de comunicação. Visam construir uma máquina de guerra limpa, para remover qualquer consciência política para o povo. Para torná-lo suscetível a aceitar os ditames da ideologia neoliberal. O sistema de comunicação será o vetor de propagação e legitimação desta ideologia. As técnicas de comunicação são altamente sofisticadas. E diante do numero considerável de analfabetos políticos, qualquer medida ou campanha publicitária pode transformá-los em cidadãos passivos. Em bons consumidores.
Por estranha coincidência, os grandes grupos econômicos são hoje proprietários de jornais e canais de televisão. A mídia está cada vez mais concentrada. Os jornalistas cada vez mais dóceis e a informação cada vez mais pobre.
O quarto poder vem colaborando largamente na despolitização da vida em sociedade e ao rebaixamento do senso político. E, no entanto, a política é o cerne de qualquer processo de socialização humana e de todas as sociedades. Das mais antigas até as mais contemporâneas. Uma coisa é certa, não podemos refazer a sociedade, deixando de lado da participação política. Isto requer que os cidadãos tenham interesse de participar da política para obter mudanças de uma vida melhor.
Quando as pessoas se tornam indiferentes às coisas públicas, elas permitem que políticos descomprometidos com o interesse geral passem a governar em seu nome e deste modo os cidadãos legitimam uma democracia sem o povo! O golpe parlamentar que destituiu a presidenta Dilma Rousseff é bem ilustrativo do papel do quarto poder. A crise econômica e a corrupção serviram apenas de álibi para preparação do golpe.
Exagerar a crise econômica para provocar uma crise política
Há três anos, a economia do Brasil estava crescendo. As perspectivas eram boas e não havia nada que pudesse alarmar os investidores internacionais. Porém, o ambiente econômico global deteriorou-se com a desaceleração da China. Com a fraqueza da economia europeia e a lentidão da melhoria dos Estados Unidos. Tudo isto fez com que a situação mundial fosse desfavorável. Especialmente para países que dependem da exportação de commodities, a exemplo do Brasil.
Os meios de comunicação já vinham fazendo uma oposição ferrenha ao governo de Dilma Rousseff. Tudo fizeram para que ela saísse derrotada na disputa de seu segundo mandato. Como não conseguiram derrotá-la, investiram junto com a oposição governamental numa campanha violenta para impedir sua governabilidade. Com um congresso hostil, todas as propostas do governo eram barradas pelos parlamentares. Também o quarto poder aproveitou os sinais de fragilidade da economia brasileira para exagerar sobre a gravidade crise econômica.
Criou-se então um clima político hostil, e os meios de comunicação começaram a explorar o descontentamento das categorias sociais mais afetadas pela crise. Afirmavam, permanentemente, que o desastre econômico era culpa governo Dilma. Para os meios de comunicação não existia crise mundial e sim uma crise econômica brasileira.
Em novembro de 2015 o prêmio Nobel de economia (2008) Paul Krugman visitou o Brasil e disse:
— Existe elemento de pânico espalhado por uma mídia sensacionalista, que tem retratado o Brasil como um caso de desastre total.
Colapso econômico
O pesquisador da Universidade de Princeton chamou a atenção para a visão derrotista da mídia local e global. Disse ainda que existia uma tendência entre os jornais financeiros de abordar com mais severidade as crises que ocorrem sob governos de centro-esquerda. Todos estes fatores criam um clima de pessimismo, desconfiança e caos que desestimula os negócios no país.
O prêmio Nobel da economia parecia otimista quanto à capacidade do Brasil no enfrentamento da crise: “Não vai ser no mês que vem, nem no ano que vem, mas em breve ficará óbvio que os danos estavam sendo superestimados”, antecipa. Assim que o declínio do real ficar para trás, a economia deve voltar a crescer. A inflação vai cair, as taxas de juros poderão ser reduzidas. Com esse alívio na pressão sobre a economia, a situação orçamentária vai melhorar também. Todavia, os meios de comunicação preferiram apostar no colapso econômico do país do que injetar o otimismo para estimular os investidores.
Junto com os representantes da indústria e comércio, e com alguns membros do poder judiciário, eles apoiaram — de modo irresponsável — uma campanha internacional dando uma percepção de que a crise da economia era a maior crise jamais conhecida no Brasil. A mensagem que os irresponsáveis transmitiam para seus aliados do capitalismo financeiro era que a única saída era destituir Dilma. O impeachment da presidenta seria uma das principais causas da recuperação do real. Um novo governo poderia, sem dúvida, aprovar leis cruciais para equilibrar as contas do Estado. O novo governo poderia contar com uma base mais sólida no Congresso, o que seria mais fácil para adotar novas medidas austeridade.
Esfacelamento do sistema de educação na esfera mundial
A conseqüência da globalização neoliberal em termos de educação é o surgimento e expansão de um mercado educacional. Patrocina, assim, o aumento da concorrência entre as instituições de ensino, nomeadamente na rede pública. Vimos, em muitos lugares, o aumento de escolas particulares e a proliferação de universidades privadas. A qualidade do ensino baixou consideravelmente. O sistema de formação escolar, universitário, profissional tem criado seres humanos politicamente cegos para decifrar a complexidade e os desafios de nosso planeta.
A ideologia neoliberal coloca tanto a educação como a cultura na esfera da concorrência comercial.
O objetivo é excluir completamente a educação da categoria de direitos humanos básicos, para classificá-la na categoria de bens mercantis. Tanto a educação como a cultura tornam-se um produto oferecido ao mercado. Em 2003, o grande sociólogo francês Edgar Morin já lançava um grito de alerta sobre a urgência vital de “educar para a era planetária”. Ele, que admira tanto o Brasil e tecia elogios aos programas de inclusão social posto em pratica pelo governo Lula, na certa hoje deve estar vivendo o mesmo drama que muitos intelectuais brasileiros vivem. O Brasil não só teve um golpe parlamentar, mas vive hoje um grande retrocesso com o desmantelamento de todas as conquistas sociais dos governos Lula e Dilma.
Os investimentos realizados na área de educação não foram suficientes para melhorar a qualidade do ensino no Brasil. Todavia, o governo pós-golpe do senhor Temer decidiu de modo arbitrário, e sem consultar o corpo de professores e instituições ligadas ao ensino, realizar uma reforma na Educação. Reacionária e punitiva. O governo tenta criar um processo de “deseducação” no Brasil.
Ideologia neoliberal
A reforma educacional foi aprovada pelos mesmos que aprovaram o golpe parlamentar. A proposta de emenda constitucional PEC 241 congela os gastos públicos por 20 anos. Ela diminui os investimentos em educação, saúde, e assistência social. A PEC, considerada prioritária pelo governo Temer, decreta o fim da obrigação do Estado com os direitos sociais. Na reforma educacional são retiradas de obrigatoriedade do currículo escolar as matérias como História, Sociologia, Artes, Filosofia.
Já dizia Paulo Freire “Não basta saber ler que ’Eva viu a uva’. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho”. É exatamente este modo de pensar a educação que o governo golpista propõe destruir. O Temer coloca assim o Brasil como principal laboratório para adoção da ideologia neoliberal.
Com o apoio incondicional dos meios de comunicação, dos grandes grupos econômicos, dos organismos patronais, uma grande parte do poder judiciário, o Brasil possui hoje todos os ingredientes necessários para a implantação definitiva desta ideologia. Existe uma direita e extrema direita organicamente bem articuladas para impor não apenas um modelo econômico neoliberal para o Brasil, que associa o modelo socioeconômico a regras e valores.
Luta social
A ideologia neoliberal não se encontra somente centrada na economia; ela consiste na ampliação e disseminação dos valores de mercado em matéria de política social e envolve todas as instituições do Estado, mesmo que o mercado conserve como tal sua singularidade. A política então fica submetida a uma racionalidade econômica. O que está em jogo hoje é uma mudança radical de um projeto de sociedade que a esquerda timidamente tentou construir há mais de uma década.
Logicamente, com todas as imperfeições, muitas pautas de reivindicações oriundas de lutas foram postas em prática. Houve certos avanços no reconhecimento dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Todas essas conquistas foram frutos de longos anos de luta social e acabam de ser interrompidas por Temer. O futuro do país fica assim hipotecado pela ideologia neoliberal.
Marilza de Melo Foucher, é economista, jornalista e correspondente do Correio do Brasil, em Paris.