Opinião

Nós, humanos, criamos uma nova época geológica

09/09/2016
Pesquisadores na Groenlândia, onde fósseis de 3,7 bilhões de anos foram encontrados. A vida na Terra está mudando, por conta dos humanos / Foto: University of Wollongong - AFP

Os atuais habitantes deste planeta desfrutam de um privilégio duvidoso, mas ainda mais raro do que o de ter comemorado a chegada do terceiro milênio. É compartilhado apenas com a geração que, há quase 12 mil anos, começou a experimentar com agricultura enquanto se derretia a Idade do Gelo e mirravam os campos de caça. Ou, se ampliarmos o conceito de “humano”, com os hominídeos ancestrais que, 2,58 milhões de anos antes, enquanto surgiam as geleiras, desceram das árvores para começar a se alimentar de carniça. É a segunda ou terceira expulsão da humanidade do Paraíso e a primeira da qual ela é a única culpada.

Por Antonio Luiz M. C. Costa

No 35º Congresso Geológico Internacional, de 27 de agosto a 4 de setembro na Cidade do Cabo, África do Sul, a comissão encarregada pela União Internacional das Ciências Geológicas (UICG) recomendou o reconhecimento oficial do início de uma nova época geológica, chamada Antropoceno. Para melhor se compreender o significado disso, recorde-se como os geólogos dividem os 4,55 bilhões de anos da história da Terra.

Para começar, em quatro éons: Hadeano (sem vida), Arqueano (primeiras formas de vida bacteriana), Proterozoico (células complexas e primeiros multicelulares) e Fanerozoico (formas de vida diversificadas). Cada éon divide-se em várias eras, que no caso do Fanerozoico são três: Paleozoico (plantas, peixes, insetos, anfíbios e primeiros répteis), Mesozoico (“era dos dinossauros”) e Cenozoico (“era dos mamíferos”). O Mesozoico divide-se em três períodos, Triássico, Jurássico e Cretáceo, e o Cenozoico em outros três: Paleogeno, Neogeno e Antropogeno (mais conhecido como Quaternário).

Cada período divide-se, por sua vez, em duas a quatro épocas, a maioria das quais com duração de 5 milhões a 30 milhões de anos, cada uma marcada por mudanças notáveis na composição das camadas de rochas e no caráter de distribuição de fósseis, resultantes de alterações drásticas do ambiente. Contavam-se 37 épocas desde o início do Paleozoico, sete das quais no Cenozoico, incluídas as duas que formam o Quaternário: o Pleistoceno, “Idade do Gelo”, no qual as geleiras cobriram a maior parte da América do Norte e da Europa, e o Holoceno, quando o clima voltou a se aquecer e surgiram a agricultura e a civilização.

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O Antropoceno é, portanto, a 38ª época do Fanerozoico e a terceira do Quaternário. O Nobel de Química Paul Crutzen, que em 2000 foi o primeiro a propor a ideia com seriedade, indicou 1800 como o início do “primeiro estágio”, de difusão das máquinas a vapor industriais, consumo maciço de combustíveis fósseis e aumento da concentração de dióxido de carbono na atmosfera, e 1945 do “segundo estágio”, de aceleração súbita da industrialização e do crescimento demográfico.

A maioria dos membros da comissão da UICG sugere uma data precisa: 16 de julho de 1945, detonação da primeira bomba atômica, o experimento Trinity.

Outros sugeriram os anos de 1610, data de uma marcada retração no gás carbônico atmosférico e expansão de florestas devidas ao colapso das civilizações e ao genocídio das populações ameríndias após a conquista europeia (acompanhada pela redistribuição de espécies vegetais e animais pelas navegações) e 1964, auge do depósito de isótopos radioativos pelos testes nucleares pela superfície da Terra.

Do ponto de vista estritamente técnico, essas datas teriam a vantagem de estar mais claramente marcadas na geologia, mas os próprios geólogos parecem, na sua maioria, inclinados a deixar o cientificismo de lado para enfatizar o significado ético, social e histórico dessa virada. A detonação da primeira bomba atômica apropriada como símbolo, um equivalente real e laico do momento mítico no qual Adão e Eva comeram o fruto proibido. A Revolução Industrial é ainda mais importante pelas consequências (enquanto não houver uma guerra nuclear generalizada), mas é um processo de mais de dois séculos com o qual nos acostumamos demais.

A questão é que o impacto da humanidade no funcionamento do ambiente planetáriotornou-se comparável a grandes forças da natureza, como a expansão e retração das geleiras, ou mesmo o meteorito cuja queda teria liquidado os dinossauros.

A composição da atmosfera está sendo drasticamente modificada – de, no máximo, 280 partes por milhão de há mais de 300 mil anos (antes do surgimento do Homo sapiens) até a invenção de James Watt para mais de 400 hoje –, com efeitos na temperatura média do planeta, no clima e na acidificação dos oceanos e, em breve, no nível do mar. Isótopos e compostos químicos persistentes e inexistentes na natureza, do plutônio ao PVC, misturaram-se ao solo e à água e deixam marcas indeléveis nos sedimentos marinhos e lacustres, nas geleiras e nas estalactites e estalagmites das cavernas.

O impacto da humanidade na geologia já se compara ao de geleiras e meteoros / Foto: SSPL-Getty Images

O impacto da humanidade na geologia já se compara ao de geleiras e meteoros / Foto: SSPL-Getty Images

Espécies de animais e vegetais extinguem-se a um ritmo cem a mil vezes mais rápido do que em tempos normais. A maioria das espécies selvagens de médio e grande porte está hoje extinta ou aparentemente condenada – inclusive algumas das mais icônicas, como leões, rinocerontes, onças e elefantes – e os domésticos se multiplicaram absurdamente.

Não foi uma mudança de grau, mas de qualidade, da qual nos damos conta tarde demais para revertê-la. É possível, no máximo, tentar desacelerá-la, e isso se mudarem de direção os ventos direitistas hoje prevalecentes na política e na economia e o desenvolvimento, promoção e difusão de tecnologias mais limpas se tornarem a prioridade máxima.

Não adianta fechar os olhos ao inexorável: a população do planeta atingirá pelo menos 9 bilhões em 2050 e, enquanto não se cogitar de mudar radicalmente o sistema econômico, o crescimento econômico a qualquer custo continua a ser objetivo de pobres sufocados pela miséria e pelo desemprego, da classe média em busca de melhores oportunidades e de ricos atrás de lucros ainda maiores. Para não falar de indivíduos, governos e empresas não enxergam além das dificuldades presentes ou, quando muito, do tempo de vida dos atuais dirigentes.

Restam duas possibilidades. Uma é a humanidade aprender a sustentar um ponto de equilíbrio artificial com o ambiente terrestre, no qual seja possível sobreviver ainda que em condições muito diferentes daquelas às quais a espécie humana se adaptou biologicamente e nas quais construiu suas culturas e civilizações. Será um mundo mais quente, de ar viciado, oceanos ácidos, terras habitáveis reduzidas em extensão, sem consumo de combustíveis fósseis ou materiais não recicláveis e – o que talvez seja ainda mais difícil de imaginar – sem crescimento econômico ou capitalismo tal como os entendemos hoje.

Não é possível a produção crescer sem fim em um mundo finito e, sem perspectiva de crescimento indefinido, não se pode falar de acumulação de capital e concorrência, a não ser no sentido mais primitivo, predatório e suicida. Imagine-se um mundo de crescimento zero, no qual o consumo seja criteriosamente racionado e restrito a substâncias recicláveis, todo desperdício seja um crime, nenhum território novo possa ser ocupado e nenhuma inovação possa ser testada sem controles e autorizações especiais. Nossos descendentes aprenderão sobre como nossa geração os expulsou do Paraíso da irresponsabilidade ambiental e os obrigou a tomar consciência do bem e do mal contidos em cada pequena escolha de consumo.

Nem mesmo a eventual exploração da Lua, de Marte ou dos asteroides ou do planeta recém-descoberto em Próxima Centauri permitiria fugir da questão. Se acaso for possível sobreviver lá, será igualmente necessário conservar em equilíbrio forçado um ambiente artificial finito, ou a aventura humana nesses mundos seria muito mais breve do que foi aqui até agora.

A Revolução Industrial e o experimento Trinity deixaram marcas irreversíveis no solo e no ambiente / Foto: SSPL-Getty Images)

A Revolução Industrial e o experimento Trinity deixaram marcas irreversíveis no solo e no ambiente / Foto: SSPL-Getty Images)

A outra possibilidade é esse equilíbrio não ser atingido e o ambiente entrar em uma espiral incontrolável de deterioração ambiental até a vida humana se tornar impossível. Tanto pior para a humanidade e para a maioria das espécies vivas ainda existentes, mas o planeta recuperou-se de crises comparáveis. Um extraterrestre de passagem encontraria daqui a dois séculos um mar contaminado e um solo erodido, habitado apenas por ratos, baratas e outras espécies igualmente resistentes e adaptáveis. Mas, se voltar a averiguá-lo depois de 20 milhões de anos, provavelmente encontrará fauna e flora renovadas pela evolução, tão surpreendente para nós quanto seriam as baleias, girafas e passarinhos para um dinossauro.

Com a orientação do geólogo Dougal Dixon, a curiosa minissérie Futuro Selvagem (no original, The Future Is Wild) da britânica BBC, de 2002, fez uma especulação inteligente sobre essa hipótese e imaginou fascinantes animais do futuro distante, descendentes plausíveis das espécies mais capazes de sobreviver ao desastre humano – roedores, insetos, aranhas, certos peixes e moluscos.

Tipicamente, o estadunidense Discovery Channel infantilizou a narração e a premissa e fez da advertência um escapismo literal. Contou que isso se daria não depois da extinção da humanidade, mas após sua migração para outros planetas, assim como certos pais se poupam de explicar a morte às crianças, dizendo-lhes que a avó se mudou para longe e nunca mais vai voltar.

Fonte: Carta Capital

 

 

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