Marco Aurélio Garcia
Mestre internacionalista, diplomata dos povos e dirigente da esquerda consequente
O desaparecimento do companheiro Marco Aurélio Garcia ocorreu num dos momentos mais difíceis da esquerda brasileira e latino-americana em busca incessante dos adequados meios e formas para conduzir com acerto e eficácia as lutas pela emancipação nacional e social de nossos povos.
Por José Reinaldo Carvalho (*)
É maior e mais doloroso em tal circunstância o sentimento da perda, quando mais precisamos do seu talento, da sua cultura e vasta cosmovisão.
De uma personalidade como Marco Aurélio seus incontáveis companheiros, amigos e todos os que tiveram o privilégio de com ele privar, destacam as mais variadas facetas ligadas aos múltiplos papéis que desempenhou como professor universitário, militante socialista, dirigente partidário e gestor público, num percurso em que deixou indeléveis marcas e rico legado.
Durante toda a década de 1990 e os primeiros anos do século 21, tive o privilégio de compartilhar com Marco Aurélio uma das mais fecundas experiências da esquerda latino-americana – o Foro de São Paulo, criação do presidente Lula e do líder histórico da Revolução Cubana, Fidel Castro. Em público e em privado, chamava-o professor, não por cortesia ou protocolo, mas porque parte importante do meu aprendizado no exercício da Secretaria de Política e Relações Internacionais do meu partido obtive no contato com suas ideias e ação prática no âmbito daquela articulação da esquerda latino-americana e caribenha, da qual ele foi o cérebro lúcido e o coração pulsante.
Marco Aurélio compreendia em toda a dimensão que “ser internacionalistas é saldar nossa própria dívida com a humanidade”, como ensinava Fidel. Assim, dedicou o melhor do seu pensamento e das suas energias ao internacionalismo, lutou com denodo pela integração soberana e solidária entre os povos latino-americanos, pela unidade das forças progressistas no âmbito regional e empenhou-se na formulação, muito antes da primeira vitória de Lula em 2002, de um pensamento, um programa e ferramentas de ação que constituiriam insumos essenciais da política externa “ativa e altiva” do Itamaraty sob a liderança do chanceler Celso Amorim, com quem desenvolveu profícua parceria.
O professor Marco Aurélio foi um dos atores importantes do que podemos conceituar como diplomacia dos povos ou internacionalismo das massas populares, indispensável complemento da diplomacia estatal e presidencial do Itamaraty no período dos governos progressistas de Lula e Dilma. Realizações de dimensões históricas como a derrota da Alca, a fundação da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) e a consolidação de laços com governos revolucionários como os de Cuba e Venezuela não seriam possíveis sem as lutas dos povos, conduzidas por partidos políticos de esquerda e organizações dos movimentos sociais, e sem as orientações emanadas do Foro de São Paulo, expressão concentrada da diplomacia dos povos, indissociável da ação internacionalista e da performance de Marco Aurélio Garcia.
A unidade da esquerda e dos povos não é uma quimera, mas uma realização possível, a concretizar-se por meio de aturada construção cotidiana, com perspectiva ampla e longo prazo, visando à emancipação dos povos. A obra de Marco Aurélio Garcia tem tudo a ver com isso, porquanto voltou-se em grande medida para a construção dessa unidade, hoje ainda mais necessária, num momento em que a esquerda é duramente golpeada.
O professor nos fará imensa falta nesta época de incertezas, graves ameaças à paz, instabilidade e crise civilizatória, em que não só as imensas conquistas das revoluções socialistas e de libertação nacional do século 20, mas também aquelas alcançadas pela humanidade desde as revoluções burguesas do século 18 são uma a uma liquidadas pela ofensiva brutal do sistema capitalista e imperialista que ataca os direitos dos trabalhadores e dos povos e as nações que lutam pelo seu desenvolvimento soberano. Uma época de insegurança generalizada, em que o orbe anda cercado por bases militares, armas de destruição em massa, sacudido por guerras de ocupação, intervenções e golpes que se vendem como “humanitários” e “constitucionais”.
Na América Latina, sobretudo, o momento exige mais do que nunca a presença de seu pensamento e ação. Vivemos atualmente na região momentos cruciais, em que se fazem sentir intensamente os efeitos da crise do capitalismo mundial e os desequilíbrios que esta provoca. No plano político, o imperialismo e as classes dominantes reacionárias locais estão em plena ofensiva para derrocar os governos progressistas e assim mutilar a democracia e as conquistas sociais e nacionais alcançadas neste início de século, fruto das lutas dos nossos povos. Na alça de mira deste ataque estão os mecanismos de integração regional.
Para compreender as grandes questões, resolver os intricados problemas e enfrentar os desafios atuais, os povos de nossa América precisam das lúcidas ideias e da nitidez de Marco Aurélio Garcia. Um momento de viragem como o atual requer formulações programáticas consistentes, fundamentadas em análises abarcadoras dos múltiplos aspectos da realidade, capazes de ajudar os militantes e quadros da luta revolucionária a percorrer caminhos acidentados e sortear obstáculos de difícil ultrapassagem. Também na tarefa da elaboração programática Marco Aurélio deixou valiosa contribuição ao coordenar as equipes de programas de governo das campanhas eleitorais de Lula desde 1998.
Marco Aurélio Garcia, como dirigente de um partido de massas que comporta uma miríade de fortes personalidades, marcadas sensibilidades e sedimentadas correntes político-ideológicas, e na qualidade de um dos principais integrantes da direção colegiada do Foro de São Paulo, amadureceu seu perfil como quadro político-ideológico da esquerda consequente, demarcado do oportunismo senil da direita social-democrata e do esquerdismo pueril de organizações pseudo-revolucionárias.
Por isso, revelou duas outras qualidades, indispensáveis aos que seguem nos esforços para construir sujeitos políticos coletivos e transformadores: agudo senso crítico em face de manifestações de degenerescência política-ideológica e a compreensão de que a unidade da esquerda no Brasil e na América Latina é a principal ferramenta para acertar o passo na longa trajetória que se nos impõe percorrer a fim de acumular forças e contribuir, como ele contribuiu, para a emancipação nacional e social do povo brasileiro e dos povos irmãos.
(*) Jornalista e secretario de Política e Relações Internacionais do Partido Comunista do Brasil, é editor do Resistência. Publicado originalmente em Página 13