Turquia
Maurizio Musolino: Reflexões sobre a crise turca
Depois de alguns dias da tentativa de golpe de Estado na Turquia, pode-se começar a fazer algumas considerações sobre o que ocorreu na noite entre sexta-feira (15) e sábado da semana passada.
Por Maurizio Musolino (*)
Em primeiro lugar, deve-se apagar um possível erro em que se possa ter incorrido nos momentos em que o golpe parecia obter sucesso: não se tratava de uma hipótese democrática contra um tirano sanguinário como é Erdogan. De nada adianta comportar-se como torcedor, mas ao contrário estar disposto a considerar a complexidade e as contradições que a Turquia desde sempre apresenta. Por este motivo, antes de se arriscar em interpretações e comentários, é útil fazer um rápido resumo dos fatos da maneira mais objetiva possível.
A Otan e a Turquia
Com mais de meio milhão de militares, o exército turco é o segundo numericamente entre os países membros da Otan, depois do dos Estados Unidos. Um exército reputado como um dos mais bem treinados do mundo, embora bastante redimensionado pela frente islâmica durante os últimos 20 anos. As Forças Armadas turcas contam com 402 mil homens do Exército, 48.600 da Marinha, e 60.100 da Aeronáutica. Estes dados, fornecidos no relatório do londrino Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS, na sigla em inglês) não incluem os 102.200 membros das forças paramilitares que compõem a Guarda Militar (dados de 2015), a mais fiel ao atual governo. As Forças Armadas da Turquia dispõem também de 378.700 reservistas nos três corpos. Erdogan orquestrou uma ação de constante “contenção” do exército, com diversas purgas na cúpula. Se o número de homens foi sensivelmente reduzido, os arsenais e meios do exército, segundo o outro instituto londrino, o IHS Janes, especializado em Defesa, foram gradualmente modernizados desde os anos 1990: a aviação dispõe de um número crescente de Falcon F-16 além dos vetustos Phantom F-4; a Marinha pode contar com 13 submarinos, 18 fragatas, seis corvetas. Um componente da Aliança Atlântica, portanto, imprescindível, uma peça estrategicamente fundamental no tabuleiro de xadrez do Oriente Médio, pela sua posição geográfica de fronteira entre o ocidente e o oriente.
Por estes motivos – que dificilmente podem ser negados – é impossível acreditar que possa acontecer algo – sobretudo no campo militar – que ponha em questão estes dados sem que os Estados Unidos sejam informados e de algum modo consintam. O fato de que parece ter sido na base militar de Incirlik (negada à Otan durante a campanha anti-Saddam de 2001), o lugar de onde nas últimas semanas partiram os ataques aéreos norte-americanos na Síria e no Iraque, que se hospedaram alguns oficiais implicados na tentativa de derrubar Erdogan, é uma indicação a confirmar o que dissemos. A isto deve-se acrescentar o silêncio ensurdecedor das cúpulas da Otan nos momentos mais quentes da noite de sexta-feira: a Aliança teria podido invocar o artigo 5 do seu Tratado, que estabelece a ajuda mútua em face de um ataque armado contra uma ou mais partes do Pacto.
A mídia e o golpe
Há anos Erdogan vê a informação turca como cortina de fumaça. Muitos jornalistas foram nos últimos meses presos e a quase totalidade dos jornais e televisões que se opunham ao Califa foram fechados ou duramente perseguidos. Mas foi precisamente este mundo que se tornou protagonista daquela que parece ter sido uma das mais amplas operações de desinformação dos últimos anos. O noticiário ao vivo sobre a tentativa de golpe de Estado continha na verdade muitas ambiguidades. O primeiro elemento contraditório é o tempo que durou a tentativa de golpe, anunciada em torno das 22h00 de 15 de julho e declarada fracassada pouco mais de quatro horas depois. Um intervalo de tempo que, como sublinhou o jornalista Ferrari, do Corriere della Sera, é totalmente inédito e não tem precedentes. Ferrari, que arrisca a hipótese de um golpe “controlado”, se não favorecido pelo próprio Erdogan, é um profundo conhecedor da Turquia, país no qual viveu longo tempo. O que realmente aconteceu durante essas horas é outro elemento que gera discussões: todos os noticiários televisivos exibiram notícias e comentários sobre o presidente Erdogan em voo primeiramente para a Alemanha, depois Londres e Catar, recebendo, sempre segundo os comentaristas e “especialistas” de plantão, recusas e silêncio. Um comportamento improvável, visto que naquelas horas Erdogan dava entrevistas em que conclamava o povo turco a sair às ruas para rejeitar a tentativa de destituí-lo do poder. Uma contradição difícil de justificar. Enfim, depois de dois dias, permaneciam muitos mistérios, e o silêncio das principais chancelarias norte-americana e alemã durante as quatro horas do golpe. Uma atitude de espera que parece ter irritado o redivivo presidente, ao ponto de pronunciar palavras de fogo contra o inquilino da Casa Branca, assim como a futura presidente, acusados de ter, de qualquer maneira, dado cobertura à tentativa de golpe e de proteger o dirigente oculto, Gulen, hoje acérrimo inimigo de Erdogan, depois de ter sido durante anos o seu mentor.
A Turquia, o exército e os conflitos atuais
O exército turco nos últimos 50 anos sempre se caracterizou por seu aspecto antidemocrático e fascista. Generais e coronéis durante as décadas passadas se tornaram protagonistas de ao menos três hediondos golpes de Estado, que privaram o país da democracia. Mas ao mesmo tempo – e este é um dos tantos aspectos da complexidade turca – é um exército que, reivindicando a tradição kemalista (de Kemal Ataturk, pai da pátria e da modernização do país no início do século passado depois do colapso do Império Otomano), ao longo destes anos se opuseram à tentativa de islamização posta em prática por Erdogan. Exatamente isso representa um aspecto ulterior que deve fazer refletir e que talvez nos dê uma chave de leitura para compreender algumas razões da falência do golpe de Estado. Se considerarmos correta a hipótese de que por trás dos militares golpistas estava Fethullah Gulen, então é provável que o setor kemalista do exército, sempre recalcitrante quanto à reforma da Constituição pretendida por Erdogan, tenha-se postado à janela sem aceitar um envolvimento direto. Na verdade, Gulen sempre teorizou uma reforma do Estado bem mais radical do que a desejada por Erdogan, que leve a Turquia a se tornar verdadeiramente um país dotado de uma Constituição islâmica. Uma consideração que ajuda a compreender as declarações nos momentos do golpe por parte do partido da direita kemalista, o Partido Republicano do Povo (CHP, na sigla em turco) que de imediato condenou e tomou distância de tudo o que estava acontecendo e, de qualquer modo, o tempo em que o Irã imediatamente condenou a tentativa de golpe. Fethullah Gulen é filho – no sentido religioso – de Said Nursi, portanto, rival da outra irmandade dos Naksibendi que no pós-guerra encontra seu renovador no imam Mehmet Zahid Kotku. Ele também é da corrente sufista do Islã, que transforma a sonolenta Ordem dos Naksibendi em verdadeira escola sócio-política; são seguidores de Kotku o presidente Turgut Ozal, o primeiro-ministro Netsmettin Erbakan e o próprio Erdogan. Eis aí um outro elo com o chamado Estado Islâmico e a crise da região do Oriente Médio. Entre os seguidores da seita dos Naksibendi estava também Al Douri, ex vice-presidente de Saddam Hussein. Este é talvez o aspecto menos conhecido e mais interessante do ex hierarca que pertencia à Ordem dos Naksibendi. Credenciais que de qualquer maneira devem tê-lo tornado confiável também aos olhos do Califado: foi Al Douri quem forjou a aliança com o chamado Estado Islâmico entre os baathistas iraquianos (corrente política desde sempre hostil aos baathistas sírios) e os ex Saddamistas que levou ao avanço do Estado Islâmico no Iraque e na Síria.
Hoje se apresenta a Recep Tayyip Erdogan, graças à tentativa de golpe, uma oportunidade histórica para redimensionar o peso dos militares, todos, normalizando aquilo que permanece – depois das depurações destes anos – dos oficiais superiores recalcitrantes. Chama-os de “traidores”, a ponto de organizar um “atentado terrorista” ao poder central exercido pelo Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP, na sigla em turco), “democraticamente eleito pela maioria do povo”.
Mas exatamente nas dimensões das depurações que estão sendo feitas e sobretudo na tempestividade com que foram feitas as prisões, há um elemento ulterior sobre o qual refletir. Poucas horas depois do golpe, já eram feitas prisões que dizimaram o exército, a polícia, a universidade e a magistratura. Um intervalo de tempo que obriga a pensar que já havia uma lista estabelecida anteriormente, mantida numa gaveta e pronta para ser executada. Talvez – voltando à hipótese do correspondente do Corriere – exatamente depois da tentativa de destituir o presidente. Uma coisa, porém, parece certa, para além da responsabilidade objetiva das cúpulas militares: no interior do exército havia há tempos um mal-estar difuso causado por muitos fatores. Certamente, é difícil aceitar um redimensionamento que ponha em causa antigos privilégios. Erdogan, depois de vencer as últimas eleições, decidiu modificar o arcabouço institucional e a Constituição, substituindo a que foi herdada do golpe militar de 1980. Um processo que deveria apoiar-se sobre duas pilastras: a eliminação, ao menos parcial, da herança militarista e laica da República e a introdução de uma nova arquitetura governamental baseada no presidencialismo. Uma via que naturalmente desagrada ao establishment militar. Mas não só. Tudo o que está acontecendo na Síria e no Iraque não são fatores menos disruptivos. A política de Erdogan para esses dois países aparece aos olhos dos turcos como falidas. Não somente Assad permanece firmemente no poder, como não passa um dia sequer sem que se registrem mortes de soldados turcos mobilizados em combate nos territórios de fronteira. Por outro lado, o principal aliado, os Estados Unidos, há tempos apoiam os curdos sírios, considerados um perigoso aliado do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK, na sigla em curdo) pelos turcos. Além disso, há o terrorismo, que faz vítimas nas principais cidades turcas golpeando também uma das principais fontes financeiras do Estado, o turismo.
Finalmente, as relações com a Europa, mais tensas do que nunca (como mostra a questão dos imigrantes), ao mesmo tempo a ruptura com a Rússia que além de pôr de joelhos a economia do país, não assegura ao país euroasiático uma adequada retaguarda oriental. Uma fotografia da situação certamente desfocada, que não oferece um quadro totalmente claro, mas que evidencia uma complexidade a ser levada em conta. Erdogan estava consciente disso há tempos e precisamente nas últimas semanas estava buscando – com a mudança na cúpula do governo – girar o timão relançando as relações com Putin, intensificando as relações com Israel e buscando uma saída para a crise síria.
A política do AKP
Tudo o que ocorreu no passado fim de semana confirma um aspecto que, embora desagradável, não se pode negar: Erdogan, ainda que debilitado, goza de um forte apoio popular. Um aspecto que de resto era característico também de outro presidente, ligado a Erdogan pelas estreitas relações com a corrente do Islã político da Fraternidade Muçulmana, o deposto presidente egípcio Mursi. No Egito, como em Gaza há anos, na Tunísia e na Turquia, o Islã politico chegou ao topo do poder pela via democrática e graças ao apoio de amplos setores populares, frequentemente os setores mais pobres e penalizados pelas políticas neoliberais. Uma grande contradição, visto que a Fraternidade Muçulmana jamais pôs o neoliberalismo em causa, aliás de todo modo foi seu instrumento, e exatamente com essa corrente parte da administração da Casa Branca buscou ignorar as crises dos regimes árabes seus aliados, tentando inventar um novo equilíbrio baseado numa estreita relação entre o Pentágono e a Fraternidade Muçulmana.
De sua parte, Erdogan, acusado majoritariamente de querer islamizar o país, não esquece sua base eleitoral, menos difundida nas grandes cidades de Istambul e Ancara, mas forte na zona central da Turquia, onde a economia cresceu graças aos grandes investimentos nas construções feitos pelo próprio AKP. Não é por acaso que nestes dias de tensão e crise Erdogan se dirija ao povo: na manhã do próprio sábado, com o golpe falido, recita para a multidão que o escuta o mote “uma Nação, uma Pátria, um Estado, uma bandeira”.
Considerações
Estes elementos tornam claro que durante estes dias na Turquia, mais do que um conflito entre o bem e o mal esteja ocorrendo um confronto de poderes no interior do alinhamento de forças anteriormente existente. Uma luta duríssima que poderia mudar parte das cartas na mesa imprimindo até o final da próxima semana um curso diferente a alguns acontecimentos da região. Não se deve subestimar, por exemplo, o ataque que setores influentes do Catar fizeram abertamente ao ministro do exterior da Arábia Saudita, indicando-o como cúmplice da corrente gulenista e portanto de qualquer maneira não estranho aos militares golpistas. Mas exatamente porque os interesses em disputa são enormes devemos também ter a consciência de que será difícil uma mudança radical, o mais provável, ao invés disso, é algum nível de ajustamento.
Enquanto isso, registra-se nestes momentos uma verdadeira queda de braço entre Erdogan e a administração de Obama. É difícil acreditar que por trás deste confronto esteja apenas a exigência de extradição de Gulen, é mais realista crer que o que faz moverem-se as águas entre os aliados da Otan seja a crise síria-iraquiana. Muitos estão convencidos de que entre Obama e Putin exista um tipo de acordo para dividir a região em novas áreas de influência, um tipo de Sykes-Picot do século 21. Um acordo que até o momento parece não satisfazer de todo a Turquia e a Alemanha. Outro jogo em curso é o que se refere às relações entre a Turquia e a União Europeia. A Turquia aspira há tempos entrar pela porta da frente no mercado do Velho Continente. O impetuoso crescimento econômico de Ancara nos últimos anos é seguramente um cartão de visita apetitoso para a asfixia econômica europeia, mas introduzir num momento de extrema crise como o atual 80 milhões de muçulmanos na União Europeia representa um grande problema para as chancelarias do Velho Continente sob ataque dos partidos xenófobos que fazem a luta contra os imigrantes, ainda mais se islâmicos, o cavalo de Troia para transtornar os atuais equilíbrios. Também nesse caso, porém, não se trata de uma luta entre o capitalismo, o imperialismo, representado pela União Europeia e o desejo de uma Europa diferente, dos direitos e dos povos. O risco de que em face destas contradições o povo curdo se torne o inimigo contra o qual demonstrar raiva, para recuperar um tipo de unidade nacional, totalmente nacionalista, é mais do que uma hipótese, e os ataques dos últimos meses contra os curdos são uma demonstração evidente disso.
Estamos diante de uma série de conflitos. Contudo, são conflitos no interior do alinhamento neoliberal e conservador (nesta categoria se incluem também os conflitos internos no mundo islâmico sunita), e a esquerda – é doloroso dizê-lo – não consegue propor um caminho próprio de alternativa credível. Torna-se cada vez mais urgente retomar o fio da meada para pôr em prática uma hipótese de desenvolvimento alternativo ao neoliberal-imperialista, superando egoísmos e visões maniqueístas.
20 de julho de 2016
*Maurizio Musolino é jornalista, estudioso e especialista em Oriente Médio.
Traduzido do italiano por José Reinaldo Carvalho, para Resistência [www.resistencia.cc]