Entrevista
John Pilger: Guerra contra a democracia na América Latina
Após duas décadas de governos progressistas se espalhando pela região com ganhos econômicos, políticos e sociais sem precedentes, especialmente em direitos humanos ano a ano reconhecidos pela ONU e por várias organizações internacionais, a América Latina enfrenta hoje o avanço dos agressivos setores neoliberais, secretamente apoiados e financiados pelo regime de Washington.
Nesta entrevista, o jornalista, escritor e cineasta John Pilger fala sobre a guerra dos EUA contra a democracia na América Latina. “O imperialismo da era moderna é uma guerra contra a democracia. A verdadeira democracia é uma ameaça ao poder ilimitado, e não pode ser tolerada”, diz ele.
Pilger produziu War on Democracy na América Latina e nos EUA em 2006, quando ele viajou por toda a Venezuela com o então presidente Hugo Chávez. Ele conta o que o motivou para produzir esse documentário, ganhador do prêmio One World Media Awards, em 2008. O filme mostra como a escalada intervencionista dos EUA, aberta e encoberta, derrubou uma série de governos legítimos na América Latina desde a década de 1950.
Evidenciando o caráter democrático com profundas transformações sociais na Venezuela, John Pilger conta sobre suas experiências no berço da Revolução Bolivariana. “As crianças estavam aprendendo sobre a história e as artes, pela primeira vez; programa de alfabetização da Venezuela era o mais ousado do mundo.”
Ele também fala de suas experiências com o então presidente Chávez, entrevistado pelo cineasta. “Viajei com Hugo Chávez pela Venezuela. Nunca conheci um líder nacional tão respeitado e tratado com tanto carinho quanto Chávez. Ele era um homem extraordinário que parecia nunca dormir, consumido pelas ideias. (…) Ele foi também, incorruptível e resistente – resistente no sentido de que ele era corajoso”.
Pilger avalia a cobertura de mídia em relação à Venezuela: através de dados precisos, evidencia como as pessoas ao redor do mundo têm sido mal informadas pela propaganda da mídia. Os grandes meios de comunicação internacionais passam a ideia de que os governos de Chávez e hoje de Nicolás Maduro são ditatoriais, enquanto escondem conquistas sociais e políticas impressionantes: por exemplo, que já em 2005 a Venezuela foi considerada pela Unesco Estado livre do analfabetismo, e pela FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), da fome. A educação é gratuita e acessível a todos, do ensino básico ao universitário, assim como a assistência médica. Para a Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e Caribe), a Venezuela era um dos países mais desiguais da América Latina pré-governo bolivariano, e hoje o país é o menos desigual da região, e possui hoje o melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) entre os países latino-americanos. A Constituição de 1999, aprovada por referendo popular logo no primeiro ano de Chávez no Palácio de Miraflores, é o mais avançado do mundo em termos democráticos e de direitos humanos. Isso tudo, foi constatar John Pilger no país caribenho.
O destacado cineasta termina esta entrevista com previsões não muito positivas para o país que tem a maior reserva de petróleo do mundo, a Venezuela, e para a região mais rica em biodiversidade do planeta, exatamente América Latina. “Este é um momento perigoso para a América Latina. (…) Os Estados Unidos querem a sua ‘fazenda’ de volta”, diz John Pilger entre outras observações importantes a esse respeito.
Ele também fala de sua nova produção que será publicado em um futuro próximo, The Coming War between America and China (A Próxima Guerra entre os Estados Unidos e a China).
Edu Montesanti: Obrigado, John, por conceder esta entrevista, estou muito honrado por ela. Você poderia comentar, por favor, sobre seu novo documentário The Coming War between America and China a ser publicado? O que ele vai trazer para nós, o que o motiva e qual seu objetivo com ele?
John Pilger: O novo filme descreve uma guerra fria, perigosa e desnecessária, entre Estados Unidos e China: a mesma guerra fria dirigida contra a Rússia. Ele examina o giro rumo á Ásia do presidente Obama – a mudança de dois terços do poder naval norte-americano para Ásia-Pacífico até 2020, como resposta militar à ascensão econômica da China.
O filme é gravado nas ‘linhas de frente’ insulares, do Pacífico e da Ásia: as Ilhas Marshall, onde os EUA testaram suas bombas nucleares durante a década de 1940 e de 50, e agora mantém uma base de ‘Guerra nas Estrelas’; Okinawa, onde os EUA têm 32 instalações militares a menos de 400 milhas da China; Jeju Island (Coreia do Sul), onde uma base naval recentemente concluída permite que os EUA apontem seus mísseis Aegis à China; e Xangai, onde entrevistei várias pessoas sobre a ascensão da China; são vozes raramente ouvidas no Ocidente.
Como todos os meus filmes, o objetivo é desconstruir a fachada de propaganda que encobre muitos assuntos críticos, especialmente os de guerra e de paz.
Edu Montesanti: O que o motivou a produzir o filme de 2006 gravado na América Latina, The War on Democracy?
John Pilger: A era moderna do imperialismo é uma guerra contra a democracia. A verdadeira democracia é uma ameaça ao poder ilimitado, e não pode ser tolerada. A maioria dos governos os EUA têm derrubado ou tentaram derrubar, desde o final da Segunda Guerra Mundial, democracias; e a América Latina tem sido o parque temático do seu poder corrupto a fim de impor sua vontade. Um “sucesso” norte-americano foi a destruição do governo de Arbenz na Guatemala, em 1954.
Jacobo Arbenz foi um reformador democrata e modesto que não acreditava que a United Front Company deveria regular seu país, e reduzir a vida de seu povo à servidão. Para Washington, ele representava o que o governo norte-americano diria mais tarde da Nicarágua sob os sandinistas: a democracia na Guatemala era “a ameaça de um bom exemplo”. Isto era intolerável para os EUA, e Arbenz foi derrubado, pessoalmente humilhado e expulso de seu próprio país.
Este fato estabeleceu o padrão para todo o continente.
Edu Montesanti: Você poderia comentar sua ideia, John, sobre a Venezuela quando deixou o país depois de ter produzido o filme? O que mais chamou sua atenção, e o que mudou (se alguma coisa mudou) em suas ideias sobre o país caribenho, e a própria Revolução Bolivariana?
John Pilger: Minha impressão foi que a Venezuela estava passando por mudanças imaginativas, históricas, até mesmo épicas.
Nos barrios [grandes comunidades carentes], a democracia local na forma de conselhos comunais autônomos estava mudando a vida das pessoas. As crianças estavam aprendendo sobre a história e as artes, pela primeira vez; o programa de alfabetização da Venezuela era o mais ousado do mundo.
A taxa de pobreza caiu pela metade. O que me impressionou foi o orgulho que as pessoas comuns sentiam – o orgulho por suas vidas revitalizadas, pelo ineditismo das possibilidades que estavam adiante, e pelo governo delas, especialmente por Hugo Chávez.
Também ficou claro que a Venezuela não era revolucionária; que era e ainda é uma democracia social. Isso não quer dizer que muitas das ideias chavistas não são revolucionárias na essência; mas na prática a Venezuela apresentava semelhanças à Grã-Bretanha sob a reforma do governo do Attlee Labour de 1945-1951.
A velha guarda, aqueles que vivem extremamente bem no leste de Caracas e olham para Miami como uma espécie de lar espiritual, manteve o poder econômico se não o poder político. Assim, ‘duas Venezuelas’ existiram lado a lado; em termos revolucionários, isto foi e continua sendo insustentável.
Edu Montesanti: Você entrevistou ex-presidente Hugo Chávez durante horas, John, além de ter viajado por toda a Venezuela com ele. Levando isso em conta e também o que viu no país, o que você pode dizer sobre Hugo Chávez como presidente e como ser humano?
John Pilger: Nunca conheci um líder nacional tão respeitado e tratado com tanto carinho quanto Chávez. Ele era um homem extraordinário que parecia nunca dormir, consumido pelas idéias. Certa vez, ele chegou a uma reunião de agricultores com uma pilha de livros debaixo do braço: Dickens, Orwell, Chomsky, Zola.
Ele tinha marcado passagens para ler para sua audiência, e as pessoas ouviram atentamente; ele se via como educador do povo. Ele também foi incorruptível e resistente – resistente no sentido de que era corajoso.
Ele também era espirituoso. Uma vez, caí no sono debaixo do sol durante uma de suas longas reuniões ao ar livre: acordei ouvindo meu nome sendo gritado, e as pessoas rindo. Para aliviar o meu constrangimento, ‘El Presidente’ apresentou-me com um vinho local. “Ele é australiano; ele gosta de vinho tinto,” Chávez disse à multidão.
Posso dizer que nunca falei com outros políticos desta forma. Sua imperfeição se devia a que o poder principal fluía naturalmente dele; era caudillo e idealista-chefe da Venezuela, e quando morreu, o vácuo se tornou muito intenso.
Edu Montesanti: Que semelhanças você vê entre a guerra econômica perpetrado pelos EUA contra Salvador Allende no Chile no início da década de 1970, e contra a Revolução Bolivariana na Venezuela hoje? Quanto você acha que esta guerra secreta por parte do regime de Washington, além da guerra de informação, tem influenciado a vitória da oposição nas eleições parlamentares na Venezuela, em dezembro de 2015?
John Pilger: Há uma terceira e contínua força dinâmica nos países latino-americanos, que tenta controlar os acontecimentos e destruir a justiça social – os Estados Unidos. A subversão dos EUA, por via direta ou através de fantoches em países que elegeram governos reformistas, os EUA promovem uma oposição permanentemente ofensiva. Quando você pensa sobre a doutrinação dos norte-americanos, que dizem seu país é um modelo de ideais, a ironia é medonha.
Esta ‘guerra’, como você descreve, tem sido significativa em todas as eleições da Venezuela – mas não tem sido o principal fator nas eleições parlamentares de 2015; pode ser comparada apenas em alguns aspectos à campanha dos EUA contra Allende. A queda dos preços do petróleo inflação, a escassez, a corrupção e a fadiga política foram elementos cruciais, para não mencionar a ausência dolorosa de Chávez.
Edu Montesanti: Comente, por favor, a cobertura da mídia predominante em relação à Venezuela desde que Hugo Chávez venceu a eleição presidencial de 1998.
John Pilger: A Universidade do Oeste da Inglaterra (University of the West of England) publicou um estudo de mais de dez anos sobre como a Venezuela é noticiada pela BBC. Os investigadores analisaram 304 reportagens da BBC transmitidos ou publicados entre 1998 e 2008, e descobriu que apenas três delas mencionaram algumas das políticas positivas introduzidas pelo governo de Chávez.
A BBC tem se equivocado em noticiar, de forma adequada, qualquer uma das iniciativas democráticas, a legislação de direitos humanos, os programas de alimentação, as iniciativas de saúde ou os programas de redução da pobreza. A Missão Robinson, maior programa de alfabetização da história da humanidade, recebeu apenas uma menção passageira.
O jornal The Guardian não esconde sua animosidade contra Chávez. O mesmo aconteceu com muitos correspondentes dos EUA e europeus.
Tem havido uma exposição tão implacável do jornalismo de má-fé? Eu duvido. Como resultado, às pessoas nos EUA, no Reino Unido e em outros lugares têm sido negado qualquer percepção real das mudanças notáveis na Venezuela.
Edu Montesanti: No final de seu documentário The War on Democracy, você disse que “o que aconteceu no Estádio Nacional, em Santiago no Chile, tem um lugar especial na luta pela liberdade e pela democracia na América Latina e no mundo. O imperativo é. ‘nunca mais'”.
Países da América Latina com governos progressistas têm vivido sob constante ameaça da “revolução colorida”, método não-violenta para derrubar governos, aperfeiçoada pelo norte-americano Gene Sharp, professor de Ciências Políticas. Levando-se em consideração também vitória da oposição pró-EUA nas últimas eleições na Venezuela, na Argentina e do referendo na Bolívia, você teme uma nova dominância dos interesses dos EUA na região? Qual é sua perspectiva para a América Latina, e o que a Revolução Bolivariana significa para a região?
John Pilger: Este é um momento perigoso para a América Latina. Os ganhos obtidos pelas democracias sociais estão mais arriscadas que nunca. Os EUA costumavam a se referir à América Latina como sua “fazenda”, nunca tendo aceitado a independência de Venezuela, Bolívia, Equador e, é claro, Cuba.
Os EUA querem sua “fazenda” de volta. Há muito a perder. Li outro dia que, de acordo com o Ministério da Saúde da Bolívia, 85 mil vidas foram salvas na Bolívia por médicos cubanos. É uma conquista dessa magnitude que está em risco agora.