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Nosso dever é resistir: Entrevista com Sami Salameh, cônsul geral da Síria em São Paulo
Na última quinta-feira (11), a França defendeu a necessidade de invadir a Síria por terra, o que já havia sido externado pela Arábia Saudita. No entanto, o primeiro-ministro russo, Dmitry Medvedev, advertiu na Conferência de Segurança de Munique que o envio de tropas terrestres estrangeiras para a Síria poderia levar a “uma nova guerra mundial”.
Na madrugada da sexta-feira (12), após vários dias de discussão sobre a possível ofensiva internacional terrestre, representantes do Grupo Internacional de Apoio à Síria chegaram a um acordo para cessar as hostilidades no país dentro de uma semana, mantendo apenas a luta contra o Daesh (acrônimo em árabe do chamado Estado Islâmico) e a Frente al-Nusra, estimulando sem condições prévias o diálogo entre os sírios, o que em princípio isola a posição imperialista de invadir a Síria.
Em 4 de fevereiro, o secretário de Política e Relações Internacionais do PCdoB, José Reinaldo Carvalho, acompanhado de Wevergton Brito Lima, membro da Comissão de Política e Relações Internacionais, foram ao consulado da República Árabe da Síria, cumprimentar o novo Cônsul Geral, Sami Salameh e expressar a solidariedade do PCdoB ao povo sírio.
O diplomata agradeceu e declarou que a Síria, com milhares de anos de história, tem o “dever de resistir”. Para Sami, certos países trabalham com dois critérios: em uma mão carregam o baluarte do combate ao terrorismo e com a outra mão financiam e dão apoio político a grupos terroristas que servem de ponta de lança a interesses geopolíticos de dominação.
A seguir, veja a íntegra da entrevista que Sami Salameh concedeu à Resistência, por ocasião deste encontro.
Resistência – O drama da guerra na Síria é geralmente apresentado a partir de duas perspectivas: uma guerra contra um ditador e uma guerra por motivações étnicas e religiosas. O que o senhor diz sobre as verdadeiras causas deste conflito?
Sami Salameh – Em primeiro lugar quero agradecer à Resistência por esta pergunta muito importante. Existem muitas pessoas que não conhecem a verdade sobre a Síria. A mídia internacional apoia um enfoque que diz que o que está em jogo na Síria é a luta da ditadura contra a democracia, mas a verdade não é essa, a verdade é que em torno da guerra da Síria temos interesses diferentes de países diferentes, temos, na verdade, uma conspiração internacional. Conspiração internacional por quê? Porque alguns países querem impor um regime político à Síria. O governo sírio é o único governo no Oriente Médio árabe que é laico. Aceita as diferenças e defende os interesses dos sírios em geral independentemente de credos. Falemos com franqueza, como é possível que países como a Arábia Saudita e o Catar, queiram impor a um povo com uma história milenar, como é o caso do povo sírio, uma forma de governar e ainda usando o argumento da democracia? De que democracia eles falam? Estes dois países, por exemplo, sequer têm Constituição. Nós temos democracia na Síria há muito tempo. A primeira mulher a fazer parte de um parlamento árabe foi síria. A primeira mulher a ser embaixadora de um país árabe foi síria. Nossa vice-presidenta é mulher. Temos ministras mulheres. Na Síria a mulher é cidadã plena na sociedade. Nestes países que reclamam democracia na Síria as mulheres são oprimidas e relegadas às funções domésticas. Mas na Síria é diferente. A Síria é uma sociedade avançada em comparação com outras sociedades do mundo árabe. Por isso, o objetivo da guerra não é implantar a democracia, mas desmantelar esta sociedade para dominá-la. Como desmantelar? A sociedade síria é complexa. Temos todas as religiões convivendo. E não somente a religião em si está presente, mas todas as confissões religiosas, pois temos judaísmo, cristianismo e islamismo. Mas também temos cristãos ortodoxos, católicos, maronitas, os siríacos, assírios; no islamismo temos os xiitas, os sunitas, os alauítas, os drusos. Nossa sociedade é plural e é esse pluralismo que nossos inimigos querem que seja desmantelado. Outra confusão que alguns estrangeiros fazem é dizer que esta guerra é uma guerra étnica e na verdade não é. Ou que esta guerra é uma guerra religiosa e na verdade não é. É uma guerra movida por interesses geopolíticos.
Resistência – Qual o papel da Turquia e dos países da Otan no financiamento e treinamento de fanáticos religiosos para atacar a Síria e no incentivo às dissenções internas?
Sami Salameh – Veja, o papel da Turquia é muito claro. A Turquia é um país limítrofe com a Síria, que faz fronteira com o Norte da Síria. Todos os terroristas, todos os jihadistas do mundo que matam em nome de Deus, entram pela fronteira da Turquia. Temos hoje entre 85 a 95 nacionalidades diferentes de jihadistas que entram na Síria via Turquia. Ou seja, em grande parte não são sírios combatendo. Mas o terrorismo age como uma contaminação magnética, que pode atrair pessoas simplórias, ignorantes, fanáticas, que intentam criar um Estado controlado por fanáticos e extremistas religiosos que não aceitam a pluralidade da sociedade síria, e tudo isso está a serviço de interesses geopolíticos.
Resistência – Como o senhor avalia as conversações de Genebra?
Sami Salameh – O governo sírio tem duas opções: a primeira é o diálogo entre os sírios e a segunda é a luta contra o terrorismo. Em Genebra a delegação síria é uma só delegação, uma delegação única que sabe o que vai dizer e sabe como dialogar e sobre que temas quer dialogar. Mas do outro lado temos muitas oposições. A delegação do governo sírio chega a Genebra e não tem uma lista da delegação da oposição porque há muitas oposições. Há a oposição controlada pela Arábia Saudita, há a oposição do Ocidente, há a oposição da Turquia, temos muitos grupos, muitas oposições que não têm uma pauta unificada para negociar. Queremos dialogar, mas com quem? O diálogo deve ser entre os sírios, mas as oposições têm atrás delas países e os interesses específicos de cada um, tanto que até agora não temos uma lista que diga com quem afinal a Síria vai falar. Outra coisa: quando você vai a um diálogo, você deve ir a um diálogo com civis e não com terroristas. A Arábia Saudita quer impor na delegação da oposição membros de grupos terroristas, representantes de organizações terroristas, qualificadas assim pelo próprio Conselho de Segurança da ONU, como por exemplo o Nusra (nota: Frente al-Nusra).
Resistência – Gostaria que o senhor comentasse o papel da Rússia neste conflito.
Sami Salameh – A Rússia tem um desempenho honesto. A Rússia não tem ambição de ocupar a Síria ou outros países. A Rússia tem uma concepção de princípio desde o começo dos conflitos na Síria. A Rússia apoia o diálogo entre os sírios. A Rússia apoia a soberania síria. A Rússia defende a unidade territorial da Síria. A Rússia trabalha com a comunidade internacional pelo caminho político, pelo caminho diplomático. Mas quando não existe resposta positiva, a Rússia interfere para ajudar a autoridade militar oficial da Síria, que é o exército sírio.
Resistência – No último dia 1º o exército sírio desencadeou uma ofensiva ao norte de Alleppo com notícias de que se conseguiu quebrar o cerco de quatro anos em torno das cidades de Nubl e Zahraa (norte de Aleppo), depois de cortar as principais vias de abastecimento dos terroristas na região. Do ponto de vista militar, que comentários o senhor poderia fazer sobre o desenvolvimento do conflito?
Sami Salameh – Eu não sou militar, sou um diplomata, mas vamos ver a coisa de três anos e meio para cá: duas cidades cercadas por grupos terroristas e durante todo este tempo o povo no interior destas cidades resiste. Podemos aceitar esta situação apenas porque isso satisfaz os interesses da Arábia Saudita e dos ocidentais? Nós temos o dever de resistir e para isso só temos dois caminhos: diálogo entre os sírios e a luta contra o terrorismo. Nós dizemos a todos: quem deixar as armas e buscar o diálogo terá a tolerância do governo, no entanto isso vale apenas para os sírios. Mas estrangeiros, sejam afegãos, chechenos, ou de outras nacionalidades, não contarão com a nossa tolerância, pois são estrangeiros que vêm a nosso país para matar nosso povo. Por isso agora quando o exército sírio libera Nubl e libera Zahraa, o que significa isso? Significa que as regiões do Norte, limítrofes com os turcos, estão sob controle. Todos os grupos agora têm de sair. É por isso que os negociadores que dependem da Arábia Saudita fazem anarquia em Genebra tentando paralisar as negociações.
Resistência – Como o senhor vê a questão dos refugiados?
Sami Salameh – Hoje você vê em São Paulo uma grande quantidade de refugiados sírios. Podemos perguntar: o que isso significa? Ora, temos além da guerra, um bloqueio econômico dos países da União Europeia e dos EUA. Este embargo tem forte impacto na vida do cidadão sírio. Quando há terrorismo não há estabilização. Por este terrorismo, por este embargo, alguns cidadãos sírios deixam o país. Este embargo econômico não afeta apenas o governo, afeta o povo como um todo e significa que estes países sancionam um povo inteiro e tudo isso para apoiar grupos diferentes que se intitulam como “oposição síria”. Quando você tem um grande número de cidadãos sírios refugiados em outro país, você pergunta diretamente as causas: o terrorismo e o embargo econômico. Muitos cidadãos não veem um futuro de paz com estes grupos assassinos. Os jovens principalmente enxergam o futuro como uma coisa imprevisível. Necessitam sair para trabalhar, para estudar e por isso nós dizemos que a comunidade internacional é a responsável por esta emigração. A comunidade internacional e sua política de dizer uma coisa e fazer outra é a responsável por este fenômeno. Pois muitos deles dizem combater o terrorismo, mas financiam terroristas, armam os terroristas, dão apoio político aos terroristas. Nosso problema na Síria é parar a intervenção estrangeira em nossos assuntos internos. Somos um povo milenar e podemos decidir nosso próprio destino. É verdade que entre nós existem diferenças de opinião, mas podemos contornar esta situação com o diálogo entre os sírios.
Resistência – Que mensagem o senhor gostaria de deixar ao povo brasileiro?
Sami Salameh – Em primeiro lugar queremos agradecer ao Partido Comunista do Brasil por sua posição de solidariedade à Síria. A posição do PCdoB é uma posição de princípio, que não vai ao sabor do vento, que não muda por conta de outra coisa que não sejam os princípios, e graças a estes princípios o povo sírio sempre pode contar com a solidariedade do PCdoB, que apoia a soberania e a unidade territorial da Síria. Quero também agradecer a posição de princípio do Brasil, que não aceita a intervenção estrangeira nos assuntos internos dos países que formam a comunidade internacional.