Homenagem a David Capistrano, o comunista da “estratégia do confronto”
Transcorreu no dia 10 de novembro o 15º aniversário do falecimento de David Capistrano Costa Filho. Seus amigos e companheiros organizaram um tributo à sua memória, vida e obra, na Faculdade de Saúde Pública de São Paulo. Centenas de pessoas superlotarem o anfiteatro da instituição. Entre elas familiares, profissionais da área da saúde, lideranças políticas e militantes, na sua maioria comunistas, que outrora militaram no antigo Partido Comunista Brasileiro, e petistas. O ato foi aberto com o Hino A Internacional Comunista e encerrado com a canção da Resistência italiana Bella Ciao.
Por José Reinaldo Carvalho
David Capistrano passou por nós de maneira intensa e rápida. Aos 52 anos, extinguiu-se a vida de um intelectual e combatente, um dos maiores sanitaristas do Brasil. Especialista em saúde coletiva, foi fundador do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e um pioneiro na organização de serviços de saúde pública, secretário da Saúde em Bauru (SP), secretário da Saúde e de Governo em Santos (SP) e prefeito de Santos, no quadriênio 1993-1996. Escritor de temas políticos e sanitários, deixou um rico legado na obra Da Saúde e das Cidades, publicada em 1995 pela editora Hucitec. Seu pensamento como especialista em saúde coletiva está intrinsecamente ligado com a criação do Sistema Único de Saúde, o SUS, uma das mais importantes conquistas democráticas e sociais incorporadas à Constituição de 1988.
Seu colega e amigo José Ruben de Alcântara Bonfim, distribuiu entre os presentes o texto de sua alocução em que homenageou David poucos dias depois de sua morte. Uma bela peça na qual assinala que David “Infundiu, com muitos outros sanitaristas, no conceito de sanitarista, ‘a pessoa perita em assuntos sanitários’, a poderosa ideia de que ‘se deve trabalhar com a ótica de atacar os problemas principais, os riscos maiores para a vida e a saúde da população, identificados pela investigação epidemiológica, pela experiência e pela pressão popular. E atacar com os meios, materiais e humanos, disponíveis, com as forças que tivermos à mão’; e que isso ‘não é difícil, e muito menos impossível, trabalhar assim. O único requisito indispensável é o compromisso. Compromisso com a vida e compromisso com os que sofrem’. David não só assinalou o novo conceito de sanitarista, as novas atribuições e responsabilidades, que está à espera de dicionarização. Realizou-as em pouco mais de um quarto de século de vida profissional”.
Sua gestão na Prefeitura de Santos foi marcada pelo empenho na questão social como um todo, especialmente a saúde. Foi um pioneiro nas políticas de prevenção e tratamento da aids.
Capistrano militou desde os 12 anos nas fileiras do Partido Comunista Brasileiro (PCB), onde ocupou postos dirigentes e foi um combatente de primeira linha pelo ideal socialista, a manutenção do caráter revolucionário e de vanguarda do partido. Lutou sempre pela redemocratização do país e a conquista do progresso social.
De acordo com o camarada Breno Altman, também ex-militante do PCB e destacado quadro do PT, que com ele conviveu durante mais de duas décadas, David deixou o PCB e ingressou no PT porque em sua opinião se extinguira naquele partido a capacidade de educador, orientador e organizador de forças para construir a hegemonia dos trabalhadores e dos comunistas na luta transformadora. No PT, David Capistrano manteve suas inquietações quanto à relação dialética entre estratégia, tática e organização, sendo, já nos anos 1990, uma voz crítica às tendências de “americanização da política” e do reducionismo eleitoralista.
Não tive a honra de conviver pessoalmente com o camarada David Capistrano Filho, de quem conhecia a reputação como sanitarista e quadro político, tanto quanto, à distância, conhecia a do seu pai, dirigente histórico do PCB, assassinado pelo regime fascista e facínora dos generais. Associei-me aos seus companheiros no tributo em sua homenagem para evocar a memória de um combatente que deixou importante legado na luta social e ideológica. Evocação que considero importante para a reunião da família comunista ainda fragmentada em muitos pedaços.
Vivemos tempos ainda contrarrevolucionários, desde os inícios dos anos 1990, muito embora se possam detectar sinais de potencialidade na luta dos povos e das massas trabalhadoras em seu empenho pela emancipação nacional e social em todos os quadrantes do planeta. É em momentos históricos como este que se torna ainda mais precioso o legado da concepção de luta de David Capistrano transmitido na última conferência que fez, três meses antes de sua morte, no 6º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, promovido pela Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), em Salvador, Bahia.
Dizia, então: “Sou favorável a uma estratégia de confronto, de conflito; se não fizermos confronto, conflito, não vamos avançar nem mudar nada. Uma das piores vertentes da tradição brasileira é o horror ao conflito, a busca do consenso, a valorização do consenso que gerou um tipo humano especial, que é chamado de “homem cordial brasileiro”. Essa ideia de consenso, de mascarar o conflito, só serve à conservação das coisas como estão”.
Em seu medo pânico da revolução social, as classes dominantes retrógradas brasileiras forjaram seu método de dominação, em que alternam a repressão – cuja manifestação mais brutal foi a ditadura militar de 1964 a 1985 – com os acordos entre as suas diferentes facções, que procuram apresentar, em exercício de manipulação e revisionismo histórico, como o caminho de entendimento e conciliação nacional, sob sua direção, para supostamente promover o progresso das instituições e da vida política nacional. E assim aplacar a pressão popular por transformações sociais.
Homenagear uma figura da estatura de David Capistrano Filho tem, assim, também este significado. Resgata uma concepção estratégica e uma visão histórica. Infunde consciência, desperta confiança, chama para a luta.
Também é um chamamento para a unidade e a reorganização da esquerda consequente e dos comunistas. Neste aspecto, a palavra está conosco.