Opinião
Gorbachev enterrou a União Soviética e o Partido Comunista; seus herdeiros vagam por aí destilando oportunismo de direita e liquidacionismo
Dirigente comunista José Reinaldo Carvalho discute temas políticos e ideológicos ligados à figura de Mikhail Gorbachev e à corrente oportunista e liquidacionista
Por José Reinaldo Carvalho (*)
A morte de Mikahil Gorbachev no dia 30 de agosto lamentada em textos que mais lembravam um réquiem e falas que mais pareciam litanias, foi apenas o seu desaparecimento físico, contingência natural da vida. Sua morte política ocorreu pelo menos 30 anos antes, quando sua trajetória de traição à revolução e ao socialismo foi consumada, na companhia do grupo revisionista, oportunista de direita e liquidacionista que dominava a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e o Partido Comunista da União Soviética.
Mikhail Gorbachev deixa como maiores legados um terremoto político que alterou por longo tempo a correlação de forças mundial, cujos reflexos são sentidos ainda hoje. A contrarrevolução de 1989 a 1991 e o período imediatamente posterior foram acontecimentos tenebrosos na história da humanidade, geraram uma espécie de noite dos tempos, quando se estabeleceu a chamada “novíssima ordem” no mundo, em que os Estados Unidos agiam “com a graça de deus”, segundo George Bush, nas guerras desencadeadas visando a impor sua hegemonia unipolar no mundo pós-Guerra Fria e pós-soviético. Os acontecimentos que marcaram a Europa do Leste desde 1989 até o final de 1991 não representaram uma ofensiva apenas contra os postulados dos partidos comunistas, mas uma deriva reacionária contra o pensamento progressista em geral, englobando mesmo a negação do espírito e dos valores das revoluções democráticas, antimonárquicas e anti-imperiais de finais do século 18 e meados do 19. Foi para os movimentos revolucionários e progressistas uma derrota histórica, estratégica, da qual a rigor ainda não se recuperaram.
Para além dos problemas geopolíticos, é imperioso relembrar o sentido ideológico da dissolução da URSS e do partido que liderou a revolução socialista e a construção da nova sociedade. Os atos finais da derrocada da superpotência socialista, que durante mais de sete décadas mudou a face de um país outrora feudal, imperial (prisão de nações e povos, como dizia Lênin), comandou a vitória dos povos soviéticos e da humanidade contra o nazifascismo e alterou a correlação mundial de forças, foram perpetrados por Mikhail Gorbachev, um líder político que entrou para a história como um dos maiores traidores do próprio povo e de outros povos, como corolário de um processo de degeneração política e ideológica do Estado socialista e do Partido Comunista.
A queda do grande bastião do socialismo no mundo resultou de um processo corrosivo gradual, que teve como marco o 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em 1956, já sob a liderança de Nikita Krushev, que deu início a um processo de elaboração e aplicação de uma plataforma oportunista de direita, em contraste com o socialismo científico leninista. Gorbachev foi o principal continuador dessa tendência.
A regressão foi tamanha que abalou as estruturas do Movimento Comunista Internacional, com reflexos em todos os países. No Brasil, a consequência mais imediata foi a adoção pelo então PCB da Declaração de Março de 1958, base para a resolução política do 5º Congresso (1960), a entronização do “nacional-desenvolvimentismo” e da estratégia de colaboração de classes.
Política e ideologicamente, os partidos comunistas e demais correntes revolucionárias, 30 anos depois do 20ª congresso do PCUS, já sob a liderança de Gorbahev, viveram dissidências, divisões, desfiliações, deserções, perda de prestígio e de ligação com as massas, perda de eleitorado, aprofundamento do revisionismo e do oportunismo de direita, e em alguns casos capitulação e liquidação, um ambiente de pressão ideológica que só poderia ser enfrentado com firme e intensa luta.
Estavam em jogo a identidade comunista dos partidos, o caminho socialista, o caráter de classe das correntes revolucionárias, a defesa do marxismo-leninismo, a valorização do patrimônio de conquistas das experiências de construção do socialismo.
Foi um período em que se aprofundaram as teses eurocomunistas, o transformismo, a mutação, o oportunismo de direita, a tendência a mudar o nome do partido e a diluí-lo em frentes amorfas. Naquela época houve uma inflação de expressões com o uso do prefixo “RE” – renovação, reconstrução, reconfiguração, ressignificação, em nome da adaptação aos novos tempos. Um vício que retorna com força nos dias de hoje, na boca e na pena dos herdeiros de Krushev e Gorbachev.
Disseminaram-se conceitos próprios do oportunismo de direita e do revisionismo como a democracia liberal como valor universal, a conciliação de classes, o nacionalismo burguês, a renúncia ao caminho revolucionário. Mais tarde, para o começo do século 20, apareceram novas manifestações de teses contrárias à teoria e a prática revolucionárias, como o movimentismo e a tendência à dispersão orgânica. Tudo sob a chave geral do “fim da história”.
A evolução dos acontecimentos mostrou que a história não terminou e que no mundo estão sendo criadas novas correlações de forças objetivamente favoráveis para a luta dos trabalhadores e os povos por sua emancipação social. No novo quadro em formação, rememorar esses fatos é fator de aprendizado às forças políticas convictas de que é necessário resistir ao revisionismo histórico e reelaborar uma estratégia e tática revolucionárias para o novo tempo.
Ainda persiste a onda contrarrevolucionária, do oportunismo de direita e do liquidacionismo. Tais tendências hoje são encabeçadas por determinadas lideranças que consideram os ideais revolucionários do socialismo superados e a existência do partido comunista um anacronismo. Escribas, titulares de mandatos, pessoas tidas como poderosas e célebres, com a acesso à grande mídia nacional e internacional, onde dão entrevistas exibindo ignorância ovante, desinformação histórica, manipulação grosseira de fatos.
Líderes estaduais, ocupando episodicamente postos dirigentes nacionais nas fileiras comunistas, com ilimitadas ambições, passaram os anos de 2019 a 2021 destilando veneno ideológico dentro e fora das fileiras comunistas, até que, fatigados, desertaram, depois de convidar militantes e quadros a liquidarem sua organização de vanguarda, a abandonarem seus símbolos, a diluírem-se numa fantasiosa nova legenda partidária – “Socialistas”. Apresentaram-se como herdeiros de Gorbachev e de líderes europeus ocidentais, exaltando o exemplo dos que promoveram a dissolução do Partido Comunista Italiano, como se quisessem aqui fazer companhia àqueles que transformaram o PCB em PPS. Apesar deles, a bandeira comunista permanece hasteada, o nome do Partido e a linha revolucionária vigentes. Nunca tiveram nem terão a tolerância dos militantes e quadros comunistas.
Não faltam também entre esses herdeiros tropicais dos liquidacionistas os cultores da fragmentação das lutas sociais, forçando a dissociação entre os eixos estratégicos da linha política revolucionária dos comunistas. O centro da estratégia e da tática dos comunistas no Brasil continua sendo a luta contra o poder político das classes dominantes, por um poder popular, entrelaçando as vertentes social, nacional e democrática da luta, para a acumulação de forças no rumo do socialismo.
(*) José Reinaldo é jornalista, editor internacional, membro do Comitê Central e da Comissão Política Nacional do Partido Comunista do Brasil e secretári0-geral do Cebrapaz