Em busca do poder hegemônico em época de luta anti-imperialista
O debate sobre a política externa dos Estados Unidos proposto pelo Especial do Vermelho tem tudo a ver com discussões recentes com alunos de Relações Internacionais. Diante do conteúdo anti-imperialista e das acerbas críticas que faço à política externa estadunidense, perguntam-me se as recentes inflexões da diplomacia de Barack Obama – o estabelecimento de relações com Cuba e o acordo nuclear com o Irã – significariam uma mudança essencial, um ponto fora da curva ou uma mera tática enganadora.
Por José Reinaldo Carvalho (*)
Nem uma coisa nem outra. São fatos impactantes, que só podem ser compreendidos no contexto da evolução histórica da política externa norte-americana, pelo menos desde o período de George W. Bush e no quadro peculiar e complexo da atual conjuntura internacional em que opera o governo de Barack Obama, em seu período final.
Todos nos lembramos, não faz muito tempo. Em 11 de setembro de 2001, um grupo formado por 19 terroristas realizou um atentado de inauditas dimensões oferecendo ao imperialismo norte-americano o pretexto que faltava para empreender uma inflexão ainda mais reacionária na política externa dos Estados Unidos, tornando-a mais conservadora e agressiva.
A cena das aeronaves atiradas contra símbolos do poder financeiro e militar, em Nova Iorque e Washington, ainda hoje é referência nas discussões sobre os rumos da intervenção estadunidense nos assuntos mundiais. Esses debates tendem a se acirrar agora, no período das primárias eleitorais nos partidos Democrata e Republicano.
Já vivíamos então num mundo inseguro, perigoso e instável, que se agravou a partir do malsinado fato.
Sob o pretexto de caçar Osama bin Laden, seu antigo aliado durante a guerra antissoviética no Afeganistão, a superpotência imperialista desencadeou, em 7 de outubro de 2001 a operação denominada “Liberdade Duradoura”. Na ocasião o Partido Comunista do Brasil emitiu um documento afirmando que a ação representava, na verdade, a abertura de uma fase de “horror infinito”.
Naquele momento, os Estados Unidos exibiam uma força política e militar que parecia invencível. Por oportunismo ou convicção e devido ao impacto emocional provocado pelos atentados, os americanos contaram no início com a solidariedade das demais potências e diversos outros países, formando-se uma ampla coalizão internacional, com respaldo da Organização das Nações Unidas. Aparentemente, estavam dadas as condições para o enfrentamento conjunto do “terrorismo internacional”, sob a liderança estadunidense. Tal combate foi feito mediante o terrorismo de Estado.
Outra data, associada ao fatídico dia, também merece ser lembrada, o 20 de setembro. Naquele dia, a superpotência anunciou ao mundo a radicalização de sua política externa, que viria a ser posteriormente sistematizada no corpo de ideias e conceitos denominados de “doutrina Bush”.
Falando desde a sede do Capitólio, o presidente exortou o mundo a criar a “coalizão anti-terrorista”, dividiu as forças mundiais em termos maniqueístas – “quem não está conosco está contra nós” -, ameaçou punir “nações hostis”, num prelúdio do que viria a chamar poucos meses depois de “Estados bandidos”, integrantes do “eixo do mal”, e ameaçou usar as armas de que dispõe em seu poderoso e sofisticado arsenal.
“Nossa guerra contra o terror começa com a Al Qaeda mas não termina aí”, vociferou então Bush. “Não terminará até que todos os grupos terroristas de alcance global tenham sido encontrados, detidos e vencidos (…) Como lutaremos e ganharemos esta guerra? Dedicaremos todos os recursos sob nosso poder – todos os meios da diplomacia, todas as ferramentas da inteligência, todos os instrumentos para velar pelo cumprimento da lei, toda a influência financeira e todas as armas necessárias de guerra (…) Os estadunidenses não devem esperar uma batalha, mas uma campanha longa, distinta de qualquer outra que temos visto. Possivelmente, incluirá ataques dramáticos, que podem ser vistos na televisão, e operações encobertas, que permanecerão secretas mesmo depois do êxito (…) Perseguiremos as nações que ajudem ou abriguem o terrorismo. Toda nação, em toda região do mundo, agora tem que tomar uma decisão. Ou estão do nosso lado, ou do lado dos terroristas. A partir de hoje, qualquer nação que continue albergando ou apoiando o terrorismo será considerada regime hostil pelos Estados Unidos”, ameaçou.
Esse pronunciamento de George W. Bush em 20 de setembro de 2001 é o documento fundador da “nova ordem”, a proclamação dos meios e modos para percorrer o pretendido “novo século americano”. Marcou uma mudança de fase nas relações dos Estados Unidos com o resto do mundo e no exercício da hegemonia norte-americana. Abriu-se novo período, que as forças anti-imperialistas no mundo chamariam de tirania global, uma expressão usada pelo então presidente cubano Fidel Castro, um período de uso indiscriminado da força bruta, desprezo pela legalidade internacional e pelas instituições multilaterais. Abriu-se uma fase de intensa militarização das relações internacionais e de decisões de força.
Inebriado pelo uso da força, sentindo-se no auge do poder – George W. Bush dizia que antes de declarar guerra “conversava com Deus” –, o imperialismo estadunidense foi à guerra contra o Iraque. Em 20 de março de 2003, os Estados Unidos e o Reino Unido bombardearam e invadiram o país árabe, alegando que o regime de Saddam Hussein estaria produzindo armas de destruição em massa. Foi uma ação unilateral, sem autorização da ONU, cujos inspetores não encontraram provas da acusação. Em 2004, atuando no terreno como autoridades de ocupação, os governos dos Estados Unidos e do Reino Unido reconheceram que não havia armas de destruição em massa no Iraque.
Não vamos aqui relatar os fatos da época correspondentes aos preparativos da guerra contra o Iraque. Em dois livros (1), coletâneas de textos deste autor e do sociólogo Lejeune Mato Grosso, argumentamos sobre a doutrina Bush e reportamos cronologicamente aqueles desenfreados preparativos, durante os 18 meses transcorridos entre os atentados de 11 de setembro de 2001 e o início da guerra contra Bagdá. O que pretendo realçar neste artigo é que à época presenciamos uma espécie de tour de force entre a diplomacia e a guerra, esta, em contraste com a ONU, o sistema multilateral e o direito internacional, cuja falência foi decretada na prática.
A guerra ao Iraque sofreu forte contestação. Milhões de pessoas em todo o mundo saíram às ruas num veemente apelo de paz. Dentro dos próprios Estados Unidos, a guerra ao Iraque não ganhou consenso. O então senador democrata Ted Kennedy disse que foi uma guerra de escolha, não de necessidade, com abuso grosseiro das informações de inteligência e arrogante desrespeito pelas Nações Unidas. Bush e a linha dura neoconservadora não hesitaram em exagerar e manipular os dados sobre armas de destruição em massa. Inventaram imagens como a do cogumelo gigante sobre os EUA e as ligações inexistentes de Saddam Hussein com a Al Qaida, disse o senador. Outras potências, como a França, a Rússia e a China contestaram a agressão americana, ainda que sem iniciativa concreta que a impedisse.
Tal como em outras etapas do exercício da política externa agressiva americana – sob Theodore Roosevelt, no início do século 20, Truman, no imediato pós-guerra, Nixon (início da década de 1970), Reagan (anos 1980), Bush, pai, entre finais de 1980 e o início da década de 1990 – , o enunciado com que se tenta justificar a ação internacional da superpotência é a contenção de inimigos externos e a garantia da democracia, dos direitos humanos, da economia de mercado em todo o mundo e a salvaguarda dos interesses nacionais dos Estados Unidos. Desde então e até hoje, multilateralismo, legitimidade, equilíbrio de poder e direito internacional, na retórica estadunidense, existem tão somente como contrafação ou discurso ingênuo.
A natureza da política externa dos Estados Unidos, que encontra sua expressão mais agressiva na orientação dos neoconservadores, mas também nos supostos setores centristas do Partido Republicano e na maioria do Partido Democrata, corresponde ao objetivo da superpotência de estabelecer uma hegemonia ampla, ligada aos interesses da economia norte-americana, em franco declínio. Os seus teóricos estão convencidos de que os Estados Unidos devem proclamar seu domínio, afirmar a sua hegemonia, bastante questionada e em crise, recorrendo a todos os meios a seu dispor, entre eles a guerra de agressão, a militarização do mundo e a ameaça nuclear.
A política de força e agressividade que os Estados Unidos promovem na sua atuação internacional suscita não apenas debates, mas muita inquietação e insegurança nos demais atores da política internacional, sobre os rumos que irá tomar e sobre o mundo que espera a humanidade no transcurso do século 21.
A política belicista de George W. Bush foi eleitoralmente derrotada em 2008. Barack Obama governa há dois mandatos com muitas promessas de restauração da paz, mas não houve uma alteração de fundo nas linhas mestras da intervenção externa. A retirada das tropas de ocupação do Iraque e do Afeganistão afigura-se mais como uma derrota do que como uma opção pacifista. Obama governou com o mote de assegurar a liderança norte-americana no sistema internacional, buscou refundar a ordem mundial, a partir dos interesses nacionais e globais do imperialismo estadunidense. A diferença fundamental é objetiva e não subjetiva. É imperioso adaptar-se a uma nova realidade em que a unipolaridade tornou-se fenômeno pretérito. A grande questão que inquieta o establishment americano é o que fazer para sobreviver como potência hegemônica numa situação em que emergem novas potências e vive-se uma transição em que é saliente o declínio dos EUA.
É isto que leva uma figura como Henry Kissinger a publicar com tintas de erudição, uma obra (2) em que busca o elo de ligação entre legitimidade e poder, supremacia americana e equilíbrio de forças, sob o invólucro de uma suposta ambiguidade ideológica e ética entre o idealismo e o realismo. Faz profissão de fé dos valores soberanistas da Paz de Westfália (3), chega mesmo a mostrar as ambiguidades da potência americana, mas justifica em essência todos os golpes e guerras perpetrados pelos Estados Unidos desde que surgiu como potência mundial no início do século 20.
Tudo o que acontece à nossa volta demonstra que o ambiente político em que se processam as relações internacionais na atualidade permanece
caracterizado por tensões e conflitos. O principal vetor do quadro político mundial, tendo como pano de fundo uma profunda crise do sistema capitalista, é uma abrangente e brutal ofensiva dos Estados Unidos para impor a sua hegemonia, o que cobra elevado preço aos povos e países que circunstancialmente se tornam alvo dessa ofensiva.
No conjunto do Oriente Médio e Norte da África, o imperialismo estadunidense aproveitou-se da chamada primavera árabe para levar adiante antigos planos de reconfigurar a região conforme seus próprios interesses. A guerra contra a Líbia e as ameaças de intervenção na Síria demonstram isso. A militarização se alastra, com o novo conceito estratégico da Otan, a Quarta Frota na América Latina, o Africom, no continente africano, a disputa pelo controle do Oceano Índico e a proliferação de bases militares.
Nesse quadro, é uma nota forçada apresentar como multilateralismo e multipolaridade a existência de um consórcio de potências agindo em concertação entre si a fim de partilhar o domínio do mundo e a espoliação dos povos. Nesses termos, a guerra contra a Líbia é tida como uma expressão do multilateralismo, porquanto feita pela “comunidade internacional”, sob a supervisão da ONU. A guerra contra a Líbia, com ou sem a facilitação da ONU e o silêncio cúmplice da “comunidade internacional”, é modelada no mesmo figurino das políticas agressivas do imperialismo.
O multilateralismo e a multipolaridade, para serem úteis aos povos, deveriam estar inseridos no âmbito da estratégia e tática da luta anti-imperialista, e não subordinados a uma lógica de acomodação, adaptação e capitulação à ordem vigente.
Hoje não é tão difícil observar, passado já quase todo o mandato de Obama, que na essência, os interesses de Estado e estratégicos do imperialismo norte-americano são permanentes e a margem de variação da política externa é mínima, com os republicanos ou os democratas à frente da Casa Branca e do Departamento de Estado.
Sob Obama, parece haver uma espécie de síntese entre as posições mais centristas dos dois partidos, principalmente depois que a direita mais retrógrada e conservadora apresentou suas armas na campanha eleitoral de 2008.
Busca-se uma política que pudesse parecer aceitável, um pretenso “imperialismo benigno”. Hoje, o establishment norte-americano tende a uma candidatura democrata mais inclinada ao conservadorismo ou uma republicana que faça alguma flexão para o centro. É o que estará em jogo nas próximas eleições presidenciais dos EUA.
A política que prevalecerá e o mundo em que a humanidade viverá não resultarão apenas das opções dos Estados Unidos. Como a política internacional é sempre uma relação de poder nos planos nacional e global, as próprias opções americanas estarão condicionadas pela evolução da realidade objetiva, evolução que, por sua vez, está ligada tanto ao poderio norte-americano como ao das demais potências e à evolução da luta política dos povos.
O cenário atual é o de uma competição pela hegemonia mundial no século 21. Os Estados Unidos, diante das próprias dificuldades econômicas estruturais, frente à emergência de novas áreas econômicas, geopolíticas e financeiras que ameaçam seu primado, optam pela força, tentam vencer a competição global no terreno militar, onde são esmagadoramente os mais fortes e na economia buscam inverter uma tendência objetiva.
Um fator novo aparece na evolução do quadro mundial. Muito embora o período seja ainda de defensiva estratégica, ressurgem as lutas anti-imperialistas e por uma nova ordem mundial.
Se é verdade que emergem novos polos econômicos e de poder político, como fenômeno objetivo e tendência inexorável, isso não significa que vá ocorrer espontaneamente a democratização das relações internacionais.
A perspectiva de agravamento das tensões e rivalidades se acentua se observarmos o comportamento de outros grandes atores da cena internacional e a evolução dos acontecimentos.
A China proclama seu engajamento pela paz, a coexistência pacífica e a cooperação internacional. Mas independentemente de vontades e proclamações, sua vertiginosa emergência ao status de potência econômica, militar e nuclear, além do aumento de sua influência política e diplomática, objetivamente faz com que seja encarada, em perspectiva, como rival estratégico dos Estados Unidos.
Quanto à Rússia, em franca recuperação do seu poderio nacional, também manifesta traços de rivalidade, expressando duras reações ao expansionismo estadunidense e ocidental vis à vis à Europa Oriental.
O exame de outros fatos em curso e outras tendências que se delineiam também nos mostram elementos de conflitos no cenário político internacional. O segundo mandato de Bush teve como foco prioritário o “plano de reestruturação do Oriente Médio”. Construir um “Oriente Médio americano”, com regimes dóceis e a destruição dos inimigos dos EUA, foi o objetivo visado. Por irônico que possa parecer, Obama e seus aliados europeus da Otan são os que levam adiante tais planos, como mostra o comportamento da política externa e militar dessas potências na esteira dos acontecimentos na região e no Norte da África a partir de dezembro de 2010, cuja maior expressão até o momento foi a guerra contra a Líbia.
Está em formação um novo cenário político internacional, com a acumulação de fatores de conflitos nacionais e sociais, cenário revelador do surgimento de novas tendências históricas. Nesse quadro, é difícil, senão impossível, proceder a uma análise unívoca e chegar a conclusões definitivas quanto ao sentido em que evoluirá a situação internacional. Sendo uma transição, parece tratar-se de uma transição conflitiva, na qual o governo global e compartilhado, fundador de uma ordem de paz e harmonia é, no horizonte visível, mera especulação ou mesmo uma quimera. Como também é ilusório depositar as esperanças de paz no entendimento entre as grandes potências.
A crise do capitalismo, com suas consequências de agravamento das condições de vida das massas populares, a intensificação da agressividade do imperialismo e o aumento do perigo de guerra exigem respostas enérgicas dos povos e forças progressistas e revolucionárias. Mais do que nunca a luta anti-imperialista encontra-se na ordem do dia, o que requer consciência, mobilização e organização dos povos.
Voltando às indagações dos alunos. As flexões no comportamento estadunidense quanto a Cuba e ao Irã são vitórias democráticas e da luta pela soberania de ambos os países, uma demonstração do valor da resistência. Encontram explicação não na mudança da natureza e do caráter da política externa estadunidense. São recuos que os Estados Unidos foram obrigados a fazer, sem renunciar a seus objetivos permanentes.
Notas:
1 – Conflitos internacionais num mundo globalizado
José Reinaldo Carvalho e Lejeune Mato Grosso, 2003, Alfa Ômega, São Paulo e A Luta anti-imperialista x hegemonia americana, 2004, Alfa Ômega, São Paulo.
2 – A Nova Ordem
Henry Kissinger, 2015, Objetiva, Rio de Janeiro
3 – Em 1648, põe fim à Guerra dos Trinta Anos e estabelece o princípio da existência dos Estados nacionais soberanos.
(*) José Reinaldo Carvalho é jornalista pós-graduado em Política e Relações Internacionais, secretário Internacional do PCdoB e editor do Blog da Resistência.