Opinião

Foi um regime facínora

31/03/2019

Por José Reinaldo Carvalho (*)

Nos últimos dois dias desencadeou-se nas redes sociais uma torrente de manifestações indignadas contra o regime militar que vigorou no país durante 21 anos, desde o 31 de março de 1964, de triste memória.

Foi forte e intensa também a indignação com a estapafúrdia decisão do presidente da extrema-direita, Jair Bolsonaro, de mandar que a data do golpe fosse comemorada.

Os protestos percorreram o mundo político e jurídico, com expressões públicas de rejeição à exigência de exaltação ao regime militar. No domingo (31/3) houve manifestações democráticas em várias capitais de “descomemoração” do golpe militar.

Mesmo que tenha provocado reservas em setores pragmáticos das Forças Armadas, que prefeririam não ver os crimes da corporação novamente expostos, o fato é que uma Ordem do Dia foi emitida e lida nos quartéis entre os dias 29 e 31 de março. Um documento vazado em falsidades, que outro serviço não presta à nação senão pôr de manifesto mais uma vez quem são os inimigos do povo e como são capazes de defender com embustes e mentiras um regime que durante mais de duas décadas escreveu páginas de infâmia na história nacional.

O regime do golpe de 1964 é indefensável porque foi um regime facínora.

Nos dias 31 de março e 1º de abril de 1964, as Forças Armadas, muito ao contrário de defender a democracia ameaçada pelo totalitarismo, o que fizeram foi mutilar a ordem democrática ao derrubar um governo legítimo e constitucional e implantar uma ditadura militar. Tendo durado tanto tempo, o regime passou por diferentes fases, uma das quais de guerra aberta contra o povo. Não se deteve na perpetração de crimes de lesa-humanidade e lesa-pátria. Quando julgou necessário, recorreu a métodos fascistas de governo, entre estes uma feroz e degradante repressão policial-militar, cujo consagrado método foi a tortura e o assassínio de opositores.

O golpe militar de 1964 culminou a ocorrência de sucessivas crises políticas que se arrastavam desde o período do imediato pós-guerra e que tiveram como episódios mais marcantes os retrocessos das conquistas democráticas da Constituinte de 1946, golpeadas pelo governo Dutra, o suicídio em 1954 do presidente Getúlio Vargas, cujo governo foi alvo de ofensiva imperialista e conservadora, a tentativa de impedir a posse do presidente Juscelino Kubitscheck, a renúncia de Jânio Quadros, a intentona golpista para impedir a posse de João Goulart e depois para que não governasse com os poderes que lhe assegurava a Constituição.

Tudo isso eram episódios de uma luta de fundo entre as forças que se empenhavam para democratizar o país e incorporar as massas populares na vida política nacional e por reformas econômicas e sociais que superassem a pobreza, o atraso e a dependência do país, por um lado e, por outro, as classes dominantes e o imperialismo, cujo projeto para o país excluía o povo e os trabalhadores e pressupunha um “desenvolvimento nacional” dependente. A grande bandeira do governo derrocado era a realização das reformas de base, cuja essência era a conquista de direitos sociais e do desenvolvimento nacional soberano.

Foi contra esta tendência de mudanças que as classes dominantes retrógradas aliadas ao imperialismo e apoiadas nas Forças Armadas se insurgiram. Completava o quadro de ameaças à democracia e à soberania nacional, que vieram a se concretizar com o golpe militar, a conjuntura internacional de então, marcada por uma ofensiva do imperialismo estadunidense para consolidar seu domínio estratégico na região da América Latina. Embora dizendo-se “nacionalistas”, as Forças Armadas aderiram à estratégia geopolítica da Guerra Fria, sob a égide do imperialismo estadunidense, em nome da “luta contra o comunismo”.

É necessário reavivar a memória dos brasileiros sobre o que foi o regime militar implantado em 1964. De todos os regimes e formas de governo a que as classes dominantes recorreram no período republicano para assegurar o poder político, a ditadura dos generais foi o mais danoso à democracia, aos direitos humanos, aos direitos sociais e à soberania nacional, mesmo quando travestida de “nacionalista” e “desenvolvimentista”. Tinha na sua essência o caráter antipopular e antinacional. Foi um regime que causou irreversíveis danos ao país, abrindo feridas ainda hoje não cicatrizadas.

Um regime moldado pelos e para os interesses das classes dominantes retrógradas, cujo pavor e aversão atávicos a mudanças progressistas levaram-nas a instituir mecanismos arbitrários para o exercício do poder a fim de assegurar a edificação de um modelo econômico e social que concentrou renda e consolidou o apartheid social.

Mesmo já tendo passado mais de meio século desde que o regime militar foi implantado, o povo brasileiro tem o direito de denunciá-lo e de condenar suas ações atrabiliárias e crimes. Não por revanchismo, mas para que não se repitam jamais.

Isto é tanto mais importante hoje, neste momento tenebroso, em que o país é governado por alguém que faz a apologia de tais crimes e exalta a prática ignominiosa da tortura. E quando os militares, ainda que façam juras de respeito à democracia, exercem o poder ao ocuparem a titularidade de oito ministérios e cerca de uma centena de cargos estratégicos em todas as áreas da vida institucional do país.

Em tal contexto, é espantoso que setores da esquerda tenham demonstrado vacilação diante da demanda de condenar a Ordem do Dia comemorativa dos 55 anos do golpe militar de 31 de março de 1964. Seja por covardia, cálculo pragmático ou ilusão de que na Frente Ampla possa haver cabimento e abrigo aos comandados dos que mandaram derrubar Dilma, prender Lula e criar as condições para eleger Bolsonaro, esses setores erram feio e na verdade aderem aos algozes do povo que estão de pé e alertas , armados e dispostos para uma vez mais, se julgarem necessário e tiverem espaço, liquidar os últimos vestígios de vida democrática.

Na nova situação política em que o país é governado pela extrema-direita com o respaldo das Forças Armadas, o caminho se tornou mais árduo para o povo brasileiro em sua pugna por liberdade política, democracia e direitos sociais.

Extrair as lições do passado faz parte do processo de compreensão e conscientização na penosa busca de um futuro mais feliz em que o Brasil se torne uma nação progressista, apanágio da liberdade, da soberania nacional e da justiça social.

(*) Jornalista, editor de Resistência, membro do Projeto Jornalistas para a Democracia

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