Frente Ampla
Experiências de Frente Ampla no mundo e no Brasil
Por Lejeune Mirhan *
Há muito casos em todo o mundo de frente políticas, amplas ou não, que são formadas em determinados momentos da história, para combater determinados inimigos. A frente formada para defender a República durante a guerra civil espanhola é um exemplo, como é também o belo exemplo da resistência contra o nazismo, estabelecida nos países sob ocupação nazista durante a II Guerra Mundial (1939-1945). O objetivo deste artigo é tratar de frentes políticas, mas que se comportam como frentes eleitorais. Vou apresentar a seguir vários exemplos no mundo, falar dessas experiências. Em especial sobre a Palestina, África do Sul e Uruguai, que são os modelos que mais estudei e tenho especial carinho e admiração por todos eles. Sobre o Brasil, infelizmente, em toda a nossa história, não registro nenhum caso de frente política e eleitoral. As poucas que existiram, vou também dar registro. Ao final, vou falar da experiência recente da Frente Brasil Popular.
Frente Ampla na Palestina
A história da luta do povo palestino contra a ocupação sionista e neocolonial é bastante antiga. No entanto, depois da “Nakba” – que significa catástrofe em árabe – ocorrida em 15 de maio de 1948 com a proclamação e instituição do Estado judeu de Israel por Ben Gurion, a resistência se intensificou. E vejam que, ainda assim, demorou 16 anos para que alguma frente política e orgânica, representativa do povo palestino, fosse estabelecida.
Em maio de 1964, na cidade de Jerusalém, 422 pessoas, renomadas personalidades, lideranças palestinas de todos os setores da sua sociedade, reuniram-se por convocação da Liga dos Estados Árabes e decidiram fundar a Organização para a Libertação da Palestina OLP (cuja sigla em inglês é PLO, que significa Palestinian Libertation Organization). Conheço bem de perto essa experiência, não só pela minha militância de quase 40 anos pela causa palestina, como das minhas três visitas à Cisjordânia e quero relatar isso aqui.
A estrutura da OLP é a mais democrática que se possa imaginar em uma organização de resistência. Ela abriga dentro de si, em seu imenso guarda-chuva, 10 partidos políticos. Menciono aqui apenas os mais conhecidos e maiores Fatah, partido mais forte da organização, de centro-esquerda, partido fundado por Yasser Arafat; Frente Popular para a Libertação da Palestina – FPLP, fundada em 1967 pelo médico George Habash, de orientação marxista-leninista; Frente Democrática de Libertação da Palestina FPLP, fundada em 1968 por Nayef Hawatmeh, como dissidência da FPLP e também de orientação marxista-leninista; Partido Comunista Palestino – PCP, fundado em 1924, cujo secretário-geral atual é Mahmoud Saadeh; Partido do Povo (ou Popular) Palestino – PPP, fundado em 1982 como dissidência do PCP, fundado por Bassam Barghouti. Existem mais seis pequenos partidos.
No entanto, o mais importante é mostrar que a OLP – organização que representa, lidera e coordena a luta global de resistência contra o que é a mais antiga colonização de um país (Israel) e um (povo, judeu sionista) sobre outro povo milenar e país (que não foi formado depois que a ONU dividiu a Palestina em dois estados). O bonito nessa construção é que sob o mesmo guarda-chuva da OLP estão todas as organizações de massa representativas de todos os segmentos sociais palestinos. As que mais se destacam são a União de Mulheres Palestinas, a União Geral dos Estudantes Palestinos (GUPS, na sigla inglesa) e a União Geral dos Trabalhadores Palestinos (GUPW, na sigla em inglês). Destaque para essa central sindical, na qual eu estive em um dos seus Congressos na Cisjordânia, ela é filiada à Federação Sindical Mundial – FSM, que tem sede em Atenas na Grécia.
Por fim, temos que destacar um órgão deliberativo da Organização, que se chama de Conselho Nacional Palestino – CNP. Não devemos confundir com o parlamento palestino que tem apenas 120 deputados. O CNP é órgão de poder da Organização e é composta por 740 membros, que são delegados escolhidos nos territórios ocupados e na diáspora, ou seja, palestinos do mundo inteiro enviam representantes quando ocorre uma reunião. O Brasil com sua imensa comunidade palestina, tem vários membros nesse Conselho.
O CNP tem o papel de um Congresso Nacional da Organização. Além de fixar o programa e os documentos principais, aprovar planos para um período maior de tempo, ele elege uma Comissão Executiva Nacional de 17 membros, onde todas as forças políticas, partidos, organizações de massa estão representadas. A unidade política é grande. Mas, natural, existem divergências nos encaminhamentos. Esse Conselho, no dia 15 de novembro de 1988 – portanto há 30 anos – aprovou a proclamação do Estado da Palestina e passou a reconhecer Israel. Essa aprovação, defendida por Arafat, teve os votos de mais de 75% dos delegados representantes. Cinco anos depois, foram assinados os Acordos de Paz de Oslo.
Quero concluir destacando um aspecto que difere as outras frentes que vamos aqui relatar. Tanto o CNA quanto a Frente Ampla no Uruguai aceitam filiações de pessoas e personalidades diretamente. A OLP não. Ou seja, a Organização para a Libertação da Palestina não funciona como um partido político único, apesar de ser um guarda-chuva como as outras. É que isso é decorrente de que quase não se fazem eleições na Palestina ocupada. Mas, as poucas que ocorreram, para ser candidato, as pessoas têm que se filiar individualmente a um dos partidos da OLP.
Frente Ampla na África do Sul
Esta é, seguramente, a mais antiga frente ampla que conheço, com características eleitorais e com vida continuada. Sua história é bastante longa. Sua fundação deu-se em 1912, ainda com o nome de Congresso Nacional dos Nativos da África do Sul, que posteriormente, em 1940, viria a se chamar Congresso Nacional Africano, ou na sigla inglesa, African National Congress – ANC. Nesse ano, o Partido Comunista da África do Sul ingressa no CNA, dando-lhe musculatura política e ideológica.
Aqui o interessante é que pessoas podem aderir ao CNA sem que sejam filiadas ao Partido ou a outras organizações que se abrigam sob o seu guarda-chuva. Esse talvez seja o segredo de frentes políticas que sejam também frentes eleitorais, como a Frente Ampla do Uruguai que veremos a seguir.
Em 1961, o CNA, que funcionava como se fosse um partido político, ainda que na maior parte do tempo de sua existência – tal qual o PCdoB no Brasil – passou na clandestinidade, criou um braço armado. Parecido com a OLP, onde praticamente todas as organizações e partidos que a fundaram, desde a assunção de Arafat ao comando em 1969, passaram a defender a luta armada. Esse braço armado chamava-se Umkhonto we Sizwe, que em linguagem zulu quer dizer “A Lança da Nação”. Nelson Mandela que viveria uma longa prisão de 26 anos e se tornaria presidente a partir de 1994, foi um dos organizadores desse exército revolucionário antes de sua prisão. Em 1990, a organização abre mão da luta armada.
O CNA vence as eleições gerais do país em 1994, e a partir daí a história é a que conhecemos. Mandela vence de forma esmagadora as eleições e faz mais de 60% do parlamento com o CNA. Elege todos os seus sucessores até sua morte em 2013. O CNA governa a África do Sul até os dias atuais, ou seja, após 24 anos sucessivos de governos.
A Frente Ampla do Uruguai
Vamos contar apenas uma parte da história da FAU, para não nos alongarmos muito. Nosso objetivo não é a história, mas a experiência política e eleitoral. Ela surge em 5 de fevereiro de 1971 (completou 47 anos em fevereiro deste ano). Seu fundador principal era o general patriota Líber Seregni, que se candidatou à presidência do Uruguai enfrentando ditaduras sanguinárias que assolavam toda a América Latina à época.
São quatro os partidos que integram a FAU: Partido Comunista do Uruguai; Partido Socialista do Uruguai; Partido da Vitória do Povo e Partido Operário Revolucionário do Uruguai. A sua constituição formal ocorreu quando uma ampla aliança política – em 1971 ela envolvia até democratas-cristãos e dissidentes dos dois principais partidos do Uruguai, o Blanco e o Colorado. Posteriormente, realizou os chamados “Congressos do Povo”, onde todos os partidos fundantes, bem como as organizações de massa (sindicais, de mulheres, jovens, estudantes, bairros, negros, professores entre outros setores sociais) indicam representantes seus (delegados) na proporção acordada entre essas organizações e na proporção de sua força social e política (eleitoral).
A partir de 1984 eles aprovam a “Declaração Constitutiva da Coalizão” a partir do que chamam de “coalizão de movimentos”. Todas as organizações afiliadas, bem como as personalidades, aceitam suas bases para um acordo político e organizativo amplo, válido para todas as organizações. A autonomia das entidades e partidos que a integram é tão grande que estes podem, no limite, não encaminhar determinadas decisões com que não estejam de acordo. No entanto, jamais podem encaminhar decisões que contrariem o documento central fundante e o programa unitário da FA. Esse é o aspecto mais interessante, pois nenhum partido ou organização social de massa perde a sua marca e a sua identidade própria.
Sua estrutura é bem simplificada e é eleita nos Congressos do Povo. Existe uma Mesa Política que é coordenada pelo presidente da FA e mais 15 membros eleitos por uma plenária nacional na proporção das forças da votação que os partidos obtiveram nas eleições, bem como representantes das organizações de massa e das regiões administrativas do país.
Depois disso, possui comissões como se fosse um partido qualquer (de esquerda): organização; finanças; propaganda; formação; relações internacionais; jurídicos entre outras. Como dissemos, ela permite neste caso que personalidades sem partidos se filiem à FA. E o mais interessante é que parlamentares de outros partidos (Blanco e Colorado), também participam.
É preciso registrar que a Frente Ampla governa o Uruguai desde 1999, ano em que completará 20 anos no poder com presidências que se alternaram entre Tabaré Vasquez e José Mujica. Nesse país, praticamente o único em nosso subcontinente, não tem o mecanismo da reeleição e os mandatos são de cinco anos. Uma bela experiência, que resulta inclusive em maioria no parlamento.
Experiências no Brasil
Como disse, jamais tivemos no Brasil alguma coisa que sequer chegasse perto dessas experiências de frente ampla, revolucionária e também eleitoral como as que acima descrevi na Palestina, no Uruguai aqui vizinho e na África do Sul. Em alguns momentos de nossa história frentes pontuais foram formadas, que tinham objetivos específicos, momentâneos, onde havia convergências de programas e propostas de determinadas organizações de massa e mesmo partidos políticos. Eram, talvez, mais articulações políticas do que frentes amplas. Jamais tiveram caráter eleitoral, ainda que pudessem aqui e ali, em alguns casos, apoiar determinados candidatos comuns a mais de um partido ou organização política.
Em um levantamento rápido em termos de história que pude fazer, sem um aprofundamento maior, a mais antiga frente que pude apurar foi a do Bloco Operário e Camponês. Não era bem frente, mas uma aliança política com fins eleitorais de esquerda, hegemonizada pelo Partido Comunista do Brasil que, à época, ainda usava a sigla PCB. Teve vida curta e no Rio de Janeiro entre 1925 e 1927, quando o Partido já amargava a clandestinidade (fora fundado em 1922 e em 1924 fora posto na ilegalidade).
Depois disso, entre 1953 e 1964, sob o comando de João Amazonas várias frentes e alianças foram estabelecidas no movimento sindical. Era período também em que os comunistas estavam ainda na completa clandestinidade. Registro três frentes e alianças: o MUT – Movimento Unificador dos Trabalhadores; o PUA – Pacto de Unidade e Ação e o PUI – Pacto de Unidade Intersindical. Nada disso teve vida mais longeva em função do golpe militar de 1964 e mesmo porque também nada tinham a ver com frentes eleitorais.
A Frente Brasil Popular
Não devemos confundir a Frente Brasil Popular que tratarei aqui com a aliança eleitoral que formamos em 1989 para tentar eleger o presidente Lula pela primeira vez. Tinha esse nome, mas era um nome “fantasia”, como se diz popularmente, ou seja, era uma aliança eleitoral, uma coligação do PT com o PCdoB e o PSB e outros partidos menores mais à esquerda da época.
A FBP que vamos tratar aqui foi fundada em 2015 e surge como resposta ao golpe contra a presidente Dilma que já se desenhava desde essa época, que foi consolidado em abril do ano seguinte e consolidado pelo Senado em agosto de 2016. A sua composição, grosso modo, tem três partidos: PT, PCdoB, e PCO e mais alguns deputados de partidos como o PSB e PDT, mas que não representam as direções das suas respectivas organizações políticas.
Integram ainda a FBP duas das seis centrais reconhecidas no País também que são a CUT, a maior, e a CTB, a terceira maior central de trabalhadores. Nessa Frente estão presentes representação de mulheres (com a Marcha Mundial de Mulheres e a União Brasileira de Mulheres). Temos representação da juventude (como a UJS, Levante Popular da Juventude e JPT), dos estudantes, através da UNE e UBES; do movimento comunitário, com o sistema CONAM, mais a CMP; temos ainda a UNEGRO e a CNEN, bem como representantes do LGBT (Parada do Orgulho Gay). Algumas pastorais também participam.
Este espectro não é suficiente para conduzirmos a luta contra o fascismo que se avizinha para nosso país, bem como o entreguismo de nossas riquezas e tantos outros males que enfrentaremos sob o governo de Bolsonaro. É preciso dialogar com o chamado Centro Democrático, em especial intelectuais, personalidades, ex-parlamentares, religiosos, escritores, artistas.
Apresento aqui alguns nomes que não considero de esquerda e que somaram suas vozes contra o golpe parlamentar contra Dilma e têm posicionamento progressista na política nacional, para termos uma ideia de como uma Frente nos moldes do Uruguai, que sería eleitoral, podería ter a adesão dessas personalidades: Roberto Requião (senador do PMDB/PR); Bresser Pereira (ex-PSDB); Cerqueira Leite (físico); Cláudio Lembo (ex-governador de SP); Almino Affonso (ex-ministro de Jango); Jackson Barreto (governado de SE, do PMDB); Armando Monteiro (senador do PTB/PE e presidente da CNI) entre tantos outros.
Se adotássemos um modelo do Uruguai aqui no Brasil e na hipótese da FBP tornar-se uma espécie de federação de partidos e organizações nos moldes uruguaios, até com a realização periódicas dos Congressos do Povo que estavam sendo convocados, todas essas personalidades poderiam vir a se filiar diretamente à FBP, mas não necessariamente a nenhum dos partidos que a integram. A rigor, o PSOL, PSB, PCB, PDT e outros partidos poderiam vir a se integrar a esse Frente política e eleitoral.
O senador Paulo Paim chegou a lançar o nome de Frente Ampla Brasil. Não temos ideia ainda de como ela seria e como se organizaria. Temos apenas modelos em três países em que ela vem dando certo. Sabemos apenas que ela precisa ser ampla, que ela possa também vir a ser uma frente eleitoral, uma federação de partidos e de organizações sociais que também possa disputar eleições. Integrar a Frente não impede os partidos aderentes de também disputarem votos com suas legendas próprias. Da mesma forma que podem disputar pela lista da Frente, sem integrar nenhum dos partidos.
No limite, os partidos da coalizão podem optar em lançar apenas uma lista única, coligada, de todos os partidos juntos e as personalidades que se filiam à Frente sem se afiliarem a um dos seus partidos. Aqui é vital que uma reforma partidária permita essa engenharia política – uma espécie de federação de partidos – e que mude definitivamente a cultura política-eleitoral de nosso país onde se vota “na pessoa”. Boa parte de nosso povo acha mais importante, confiável e seguro votar na “pessoa” do que votar no partido. Assim, o voto seria na lista e esta seria pré-ordenada em comum acordo com os partidos que integrem a Frente e que poderiam haver alternância de gênero inclusive.
São várias as vantagens desse modelo. A primeira é quebrar a chamada “cláusula de desempenho”, ou seja, um percentual mínimo que os partidos teriam que ter para ter vida no parlamento. A obtenção de percentuais elevados, talvez até 30%, no espectro do que hoje é a FBP, seria facilmente atingido. Lembro que nas eleições de 7 de outubro passado, 14 partidos não atingiram o mínimo de 1,5% exigido ela legislação. Desses, nove partidos elegeram 32 deputados e fizeram 8,04%, que são eles o PRP (4 deputados e 0,87% dos válidos), PMN (3 e 0,65%), PTC (2 e 0,62%), DC (1 e 0,38%), PPL (1 e 0,39%), Rede (1 e 0,84%), PCdoB (10 e 1,36%), PHS (6 e 1,46%) e Patriota (5 e 1,47%). Temos ainda mais cinco que sequer fizeram deputados PCB, PSTU, PCO, PMB e PMN.
A segunda grande vantagem, é que os deputados “frentistas” eleitos, assumem também as lideranças de suas bancadas de seus partidos na Câmara dos Deputados, sem se desfigurarem, ainda que a Frente Ampla tenha também a sua liderança e encaminhe votações de forma ampla e consensual ao seu programa e aos seus integrantes.
Mas, a maior vantagem seria a divulgação e a execução – se vencermos eleições aos executivos – de um programa avançado, acordado por todas as organizações que integram a coalizão. Sinceramente, desconheço na história do Brasil, pelo menos desde a segunda metade do século XX, uma experiência onde isso ocorreu, ou seja, que frentes políticas puderam também disputar eleições sem desfigurar os seus próprios partidos. Seria uma grande inovação na cultura política do país.
Espero que estas propostas possam ser debatidas amplamente na própria FBP e nos partidos que a integram. É uma saída. Não é a única, mas de meu modesto ponto de vista, a melhor para nosso país e nossa esquerda.
*É Sociólogo, escritor e analista Internacional. Foi professor de Sociologia da Unimep (por 20 anos). Presidiu a Federação Nacional dos Sociólogos do Brasil (1996-2002). Possui nove livros publicados (individualmente, em parceria ou como organizador) nas áreas de Política Internacional e Sociologia. É colaborador dos portais Fundação Grabois, Vermelho, Duplo Expresso, 247 entre outros e da revista Sociologia da Editora Escala.