Jack London, escritor do Abismo Social

19/01/2015

No transcurso do aniversário de nascimento de Jack London, a doze de janeiro, republico artigo do Portal Vermelho. Jack London foi o mais popular escritor norte-americano, dentre a multidão de grandes escritores surgidos nos Estados Unidos, na passagem entre os séculos 19 e 20. Durante sua tão intensa quanto breve existência de 40 anos, escreveu uma obra vastíssima composta por dezenas e dezenas de contos e romances.

Por José Reinaldo Carvalho, Editor do Portal Vermelho

Dentre os seus livros, diamantes da literatura mundial, destacam-se O Lobo do Mar e Martin Éden. Foi uma das mais fecundas penas na militância literária em combate ao sistema capitalista. A importância de seus livros na divulgação das ideias socialistas é tão grande, que no prefácio a O tacão de ferro, Anatole France diz: «Jack London tem aquele gênio peculiar que sabe descobrir o que está escondido para o comum dos homens e tem um dom especial que o habilita a antecipar o futuro». Numa extensa bibliografia sobre obras comunistas, Bukharin cita apenas um livro norte-americano: O tacão de ferro.

Jack London debutou aos 17 anos com o conto Ciclone às costas do Japão, ganhador do primeiro prêmio num concurso literário promovido pelo jornal Morning Call de São Francisco. Mas nessa época London era obrigado a dividir sua paixão pela escrita com a dura luta pela sobrevivência. Desde idade ainda tenra foi jornaleiro e até completar 15 anos, quando se empregou numa fábrica de conservas, consumiu os verdes anos de sua infância e adolescência nos mais diversos tipos de trabalho para garantir o mínimo sustento e ajudar a família. Na fábrica, chegou a fazer horas extras, esfalfando-se em jornadas de até 18 horas diárias. Nessa época, Jack London não tinha ainda consciência política, mas aprendera, pela própria experiência, o mecanismo da exploração capitalista, cuja teoria viria a descobrir depois nos livros. Dono de vigorosa e fértil imaginação, escrevia compulsivamente. Mas teve de percorrer longo caminho até que suas obras merecessem a acolhida dos editores.

London, pelo seu espírito aventureiro e individualista, viveu durante algum tempo como vagabundo, viajando em trens de carga e vivendo literalmente na sarjeta, uma vida errante de andarilho, durante a qual conheceu e fez de tudo, foi preso e conviveu com a escória da sociedade norte-americana, no que ele chamava de abismo social.

Leitor contumaz, Jack London tomou contato na juventude com a obra de Babeuf, Fourier, Proudhon, Saint-Simon, Darwin, Spencer, Nietzsche, que deixaram marcante influência em seus escritos. Por indicação de um andarilho das estradas, seu companheiro na vida de vagabundo, buliçoso como ele e dado a filosofar, leu o Manifesto Comunista, de Karl Marx. Instintivamente inclinado a combater as injustiças e já revoltado com as iniquidades do sistema capitalista, London se tornou um socialista consciente e visceral. No seu caderno de notas, Jack registrou as suas impressões da obra fundamental da teoria do socialismo científico:

«Toda a história da humanidade tem sido a História das lutas entre exploradores e explorados; a história dessas lutas de classe mostra a evolução da civilização econômica da mesma forma por que os estudos de Darwin mostram a evolução do homem. Com o advento do industrialismo e da concentração dos capitais atingiu-se um estádio social em que os explorados não podem emancipar-se da classe dirigente sem com isso, e de uma vez por todas, emancipar a sociedade em geral de explorações futuras, de opressão, de diferenças e lutas de classe».

Em abril de 1896, Jack London ingressou no Partido Operário Socialista, do qual se tornou um ensaísta e conferencista de nomeada. Sua relação com a cúpula do partido foi conflituosa. Jack London não concordava com a linha social-pacifista e reformista dominante no movimento operário estadunidense. Em seus artigos e conferências, e mesmo em algumas de suas obras literárias, o escritor demonstrava ser um adepto fervoroso da «guerra de classes», da «revolução», da «criação do Estado socialista». No auge de sua popularidade, os dirigentes socialistas chegaram a cogitar seu nome como candidato à Presidência dos Estados Unidos da América, mas a ruptura entre London e esses dirigentes era irreversível.

O trabalho precoce para garantir a sobrevivência e a vida de andarilho exerceriam papel decisivo na formação da consciência política de Jack London. Os contos que aqui publicamos retratam essa fase da sua vida e sua opção política e ideológica.

Outros barros também moldaram a sua personalidade e formaram sua concepção de mundo presentes na genial obra que criou.

Merece menção destacada seu estágio entre os pesquisadores de ouro do Klondike que lhe deu a matéria-prima para o primeiro grande período de sua criação literária. Em 1897, com a descoberta do metal precioso no Klondike, começou a «febre do ouro» no Alasca. Jack London se juntou aos aventureiros. Não encontrou o ouro, mas o escorbuto. Vivendo ali durante muitos meses e enquanto empreendia o caminho de volta para casa através das margens do Rio Yukon, convivendo com os pesquisadores de ouro, naquelas tão longínquas e inóspitas paragens, numa paisagem mirífica por vezes tenebrosa, em meio a animais ferozes, nativos e aventureiros de toda espécie, Jack foi desenhando em sua mente os personagens, as cenas e situações que viriam depois tomar forma em dezenas e dezenas de contos e romances. É o período heróico e romântico de sua obra, dos mais férteis, que o levou a vertiginoso sucesso. Anos mais tarde, ele diria: «No Klondike me descobri».

Os Contos do Norte são narrativas ambientadas num universo que de tão hostil parece sobrenatural. Aqui a aurora polar é ofuscante, como a noite é quase eterna. Mestre na arte de penetrar no âmago de situações extremadas e dotado de um estilo simples e linguagem direta, London põe o leitor em permanente tensão. Os personagens se movem pela paixão de enfrentar desafios e vencer obstáculos, sejam homens vis, a natureza inclemente ou animais selvagens. Gente de caráter inflexível e alma empedernida, para quem desistir é morrer, um tipo de personagem já desaparecido na literatura daquela época.

A luta pela sobrevivência em um meio hostil foi a grande obsessão de Jack London, tema recorrente no conjunto de sua obra. Desse ciclo, Luta pela vida e Acender um fogo, são os mais representativos e nos quais mais se reflete sua visão romântica e heróica. Luta pela vida é a odisséia de um homem, na solitária companhia de um lobo para sobreviver num deserto de gelo. Entre o pânico e o desespero, meio louco, meio morto, o homem trava o combate final com o lobo. Vence a consciência, a força de vontade, a persistência. Uma apoteose de amor à vida. Já em Acender um fogo o personagem central sucumbe, vencido pelo medo e pela inexperiência.

Faz parte desse período da criação de London uma série de livros sobre os animais e sua relação com os homens. Aqui a temática sobre a luta pela vida é enriquecida com reflexões sobre a força das influências atávicas. O Apelo da selva, Caninos brancos (ambos adaptados para o cinema pelos estúdios Disney), Jerry das Ilhas, Michael, irmão de Jerry conquistaram o público infanto-juvenil, mas ao escarnecer a brutalidade, London deixa claro o caráter alusivo dessas obras e seu significado social.

Jack London conheceu de perto as seqüelas do colonialismo ao empreender viagem às ilhas ao sul do Oceano Pacífico, a bordo do seu iate «Snark». Escreveu um conjunto de contos sob o título Contos dos mares do Sul, em que desenha quadros arrepiantes sobre o engodo, o saque e o aniquilamento bárbaro de populações nativas por todo tipo de aventureiros e empresários. Sua posição anti-colonialista esteve presente também na exaltação à revolução mexicana. Mas claudicou, ao defender em relação a essa mesma revolução algumas posições políticas do imperialismo de seu país.

A bordo do barco «Snark» Jack London escreveu Martin Éden, seu mais belo romance, autobiográfico, premonitório do seu suicídio, que viria a ocorrer quase dez anos depois. Martin Éden é a história do homem e do artista com seus conflitos, paixões e desesperos, amores e desilusões, mas também uma ata de acusação à hipocrisia, às mazelas e aberrações da vida social. O sinal primeiro de sua dilaceração e depois a queda foi o desencanto ante a constatação de que era enganadora a Beleza corporificada, moral e culta que julgara encontrar em sua amada Ruth.

Para boa parte da crítica, e não sem alguma razão, a obra maior de Jack London foi O lobo do mar, também adaptado para o cinema sob a direção de Michael Anderson, com o estupendo protagonismo de Charles Bronson. A história de Wolf (lobo) Larsen, homem terrivelmente forte, amoral, egoísta e inescrupuloso, retrata o apogeu e a derrota do super-homem nietzscheano.

A obra de London foi tributária das fontes onde o autor bebeu. O tributo foi pago com grande rendimento. Spencer foi «agraciado» com os Contos do Norte, Nietzsche com O lobo do mar, Darwin com Antes de Adão. Karl Marx o seria com O tacão de ferro, um dos mais representativos exemplares da literatura de ficção, inspirada na luta e nos valores socialistas.

Romance social-utópico, O tacão de ferro é apresentado na forma de um manuscrito da mulher do revolucionário norte-americano Ernest Everhard, sobre acontecimentos supostamente ocorridos entre 1912 e 1932 encontrado sete séculos depois em plena «Era da Fraternidade». O livro despertou a ira da crítica burguesa e provocou enorme celeuma nos círculos socialistas. London participou pessoalmente da polêmica e, reprisando a mensagem fundamental do romance, declarou à imprensa: «A história mostra que nenhuma classe dominante está disposta a renunciar o seu poder sem luta. Os capitalistas têm em suas mãos os governos, os exércitos e a milícia. Alguém pensa que os capitalistas não utilizarão estas instituições para se manterem no poder? Eu penso que utilizarão».

Jamais na literatura norte-americana houvera aparecido uma obra que denunciasse com tamanho vigor e realismo as mazelas e violências do capitalismo. Jamais houvera aparecido nos EUA um escritor sem rebuços de linguagem na defesa do socialismo e mesmo da revolução social. A figura central do romance, Ernest Everhard, é um destacado dirigente da insurreição anti-oligárquica e anti-capitalista. Desta vez London não idealiza seu herói. Apresenta-o com virtudes e defeitos e com tamanha riqueza de detalhes e intimidade, que Everhard parece ser o revolucionário que London queria ser.

Os «manuscritos de Everhard» contam a sangrenta repressão sobre a insurreição dos operários, com a vitória do Tacão de Ferro, denominação da organização em torno da qual se unem os capitalistas. Nos lábios de Ernest Everhard, Jack London coloca uma lição e uma profecia, esta ainda por cumprir: «Desta vez perdemos… mas não para sempre. Nós aprendemos. Amanhã a causa renascerá. Com maturidade e disciplina torná-la-emos inquebrantável».

A obra de Jack London não se encaixa nos padrões estéticos atuais. Os valores éticos cultivados na obra do autor pertencem a outra época. Mas é uma obra atual e sua leitura necessária.

Como nenhum outro escritor de sua época, como poucos do século XX, incluindo entre estes mesmo os mais talentosos autores revolucionários e socialistas, Jack London conseguiu fazer uma literatura plena de frescor, energia, relação intrínseca com a vida e aquele tônus vital, dramaticidade e carga emocional indispensáveis para que uma peça escrita seja uma verdadeira obra de arte. Na melhor tradição de Walt Whitman, ele foi o último escritor a exaltar os longínquos rincões da América do Norte e a deificar o homem americano. Descreveu com aguda percepção as grandezas e misérias de sua época, fez profissão de fé no humanismo e por isso mesmo a profecia de um devir de fraternidade, considerado inatingível hoje, quando as trevas parecem ser mais perenes do que as das mais longas noites do inverno do grande norte. A obra de Jack London é atual e tende a permanecer.

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