Sobre contradições, militância política, treze mortos e uma estrela.

23/02/2015

“A prática é a base do conhecimento, no entanto, é a teoria que generaliza a experiência, revela as leis objetivas em atuação e dá ao homem a consciência da necessidade.”(João Amazonas, in Os desafios do socialismo no século XXI)

Por Maria Hortência Pinheiro*

Sempre compreendi que a militância política tem diversas facetas. No geral, deveria possibilitar-nos uma visão mais apurada dos fatos, episódios, acontecimentos da vida em sociedade.

Tendo vivência no seio da esquerda, aprendi com os textos que a missão dos comunistas é realizar ações conscientes que busquem as melhorias necessárias à vida do nosso povo. Nós, comunistas, nos distinguimos por querermos a transformação do mundo e de toda a humanidade. A nossa busca é por novas relações entre o homem e a natureza, a construção de um novo mundo. A nossa práxis pavimentará a concretização dos nossos sonhos.

Abdicamos então nesse duro caminhar de inúmeras causas próprias, interesses pessoais e conquistas individuais. Ao menor sinal de uma conquista, de uma vitória no projeto coletivo, os momentos de sofrimento são minimizados, as dúvidas e os constrangimentos rapidamente se dissipam e nossa convicção solidifica feito rocha, nossas esperanças se renovam.

No caminhar dessas conquistas, encontramos muitas vezes limites e entraves a um debate franco, aberto e com argumentos que sejam levados em conta para a prática políticas nos dias atuais. As condições políticas em que vivenciamos nossas importantes tarefas impõem no mínimo e de forma cotidiana, desestímulos, constrangimentos com mais diversas causas e origens. Mas que, ao mesmo tempo, possibilitam uma reflexão mais crítica e por muitas vezes, carregada de culpa de nossas próprias ações.

Talvez seja por isso, que só agora resolvi dedicar algum tempo a escrever uma opinião mais elaborada sobre o tema que tem tomado conta em diferentes medidas, do pensamento de uma vasta camada da população de Salvador.

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No dia 6 de fevereiro, às vésperas do carnaval em Salvador, 13 jovens foram assassinados no Bairro do Cabula, na comunidade Vila Moisés. Na noite do dia em questão, por coincidência tive que andar por dois bairros, um deles o Costa Azul, próximo à região do conhecido “Inferninho”.

Já era noite, eu estava a caminho do Centro de Convenções e pude ver pelo menos quatro viaturas da RONDESP entrando na comunidade. Gelei na mesma hora, pensando o que aconteceria com a chegada dos policiais à comunidade, às famílias, aos jovens negros, que certamente eram bem diferentes do público residente nos condomínios bem iluminados e com seguranças muito bem identificados em suas devidas guaritas no outro lado da rua.

Os fatos que se sucederam encontram mais uma vez eco nas ruas, relatos de mais violência, mais banho de sangue. A Polícia Militar tem então sua ação legitimada por palavras de seu comandante geral, o governador do estado da Bahia Rui Costa, eleito pela legenda do Partido dos Trabalhadores (PT) e por uma ampla gama de partidos políticos, incluindo setores à esquerda, a exemplo do meu partido, o Partido Comunista do Brasil (PCdoB).

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As inaceitáveis declarações do governador Rui Costa são aquilo que podemos chamar de literal “carta branca” para a ação da Polícia Militar, que promove a tradicional “lavagem pré-Carnaval” nas comunidades periféricas. O silêncio das lideranças de esquerda, para mim soa tão ensurdecedor quanto o grito desesperado das mães negras em frente aos corpos de seus filhos, negros e jovens como eu.

Choca-me ainda o discurso de parte da esquerda que prefere adjetivar de mero “exagero conceitutal”, ao invés de admitir centralidade necessária à pauta do combate ao extermínio da juventude negra.
Fico constrangida diante da opção feita pela completa invisibilidade da carnificina que ocorre nas comunidades periféricas, por uma política que legitima opressões sofridas pela população negra desde sua chegada ao Brasil, ou que apenas através de medidas importantes mas pontuais, busca “reparar” todas as consequências nefastas produzidas pelo modelo de desenvolvimento escravista no Brasil, continuado pelas raízes plantadas pelo escravismo em nosso modo de produção capitalista.

Quebraram nossos grilhões, mas nem de longe estamos libertos dos males impostos pelo escravismo e pelo modo com que se estabelece a divisão social do trabalho no Brasil e suas características racistas.

Não é de agora que a esquerda silencia sobre a realidade diferenciada vivida pela grande maioria os negros que constroem cotidianamente esse país. A pauta do combate ao racismo no Brasil jamais foi central no seio dos partidos de esquerda, e do jeito que caminhamos, a julgar pelos espaços insignificantes que os negros ocupam nas tarefas cotidianas, seja na fábrica, na universidade ou institucionalidade, estamos bem distantes de superar os entraves que cito sobre nossa participação política e na pauta central de nossas ideias. Isto inclui uma revisão de conteúdos teóricos utilizados para pensar o processo de superação da opressão do homem pelo homem na esquerda brasileira.

Uma questão muito levantada para justificar atrasos e a invisibilidade de diversas pautas sobre a questão racial e também de gênero é o que chamamos nas teorias políticas de “correlação de forças”. Justificamos toda a falta de debate com tal argumento, sob a égide dos textos escritos por autores como Karl Marx, e Antonio Gramsci e suas teorias sobre a complexidade das relações entre as classes na construção do Estado, para remediar nossas limitações advindas de relações bem menos nobres que o seguidismo ortodoxo da analise da realidade baseada no materialismo histórico e dialético.

Afinal, o quão distantes estamos do socialismo? A meu ver, o que temos são compromissos ao chegar ao parlamento e governo de um Estado burguês com setores da sociedade que têm interesses próprios, egoístas e indiferentes a questões sociais e à luta de que somos combatentes provisórios.

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Acontece que minha militância, meus esforços e de outros camaradas não estão a serviço de interesses mesquinhos e contraditórios. Atender a esse tipo de contradição que se vislumbra na política de segurança adotada pelo nosso governo e que é tratada como questão pontual, isolada, é legitimar uma política que vem retirando direitos durante toda a história do Brasil de um povo que foi trazido para cá, coisificado, mercantilizado e que, fazendo as devidas considerações, permanece até hoje desta forma, com outra roupagem e servindo aos novos interesses hoje, dos tataranetos de escravistas do passado.
Esses mesmos, cujos interesses defendemos, para quem fazemos campanhas eleitorais, recebemos como amigos em nossas casas com um largo sorriso.

Ao longo de quase 10 longos anos de militância política, fui cobrada a ter capacidades como a que chamamos de critica e autocrítica (provavelmente serei chamada após esse texto a ter novamente). Escolhi o exercício da militância política, como condição para minha vida e existência, dela não pretendo abrir mão, tampouco do meu partido, mas, nesse momento sinto que tenho sangue de gente inocente nas mãos, de gente que teve a vida ceifada ou que ainda vai ter, não apenas pelas balas que saíram pelas armas dos covardes da RONDESP, mas pelos interesses que o governo que defendo continuará a possuir, pelo silêncio dos meus camaradas no poder, pela incapacidade de apenas através da minha vontade fazer o povo verdadeiramente reagir, pelos demônios que vivem em mim ao continuar a vida militante.

Espero, já que não há remédio, que chegue para o que aconteceu… Que os 13 meninos que se foram no Cabula tenham mais sorte ao partir e virem estrelas no céu, mais do que as estrelas desventuradas (essas sim por opção) que temos na terra.

*Militante comunista, líder estudantil na Universidade Federal da Bahia (UFBA).

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