José Reinaldo: Entendendo as razões da Coreia Popular
No dia 6 de janeiro, a República Popular Democrática da Coreia (RPDC) anunciou a realização de mais um teste nuclear. O comunicado oficial, difundido pela Agência Central Coreana de Notícias (KCNA na sigla em inglês) invoca razões defensivas e dissuasivas. “Ante a ameaça nuclear estadunidense, a bomba de hidrogênio provada hoje constitui um freio à intenção de Washington de varrer a RPDC”.
Por José Reinaldo Carvalho
O governo da Coreia Popular argumenta que o teste nuclear faz parte das medidas de autodefesa para proteger a independência do país e a sobrevivência do povo ante o assédio das forças hostis lideradas pelos Estados Unidos.
Segundo dados do arquivo nacional estadunidense, agora revelados, desde 1956 a Casa Branca fixou como alvos de ataques com armas nucleares, a capital Pyongyang e as cidades de Nampho, Wonsan, Sinuiju, Chongjin, Uiju e Pukchang.
A agência noticiosa da RPDC recorda que em outubro do ano passado, o Pentágono provou o artefato B61-12 com o propósito de renovar as bombas atômicas instaladas na Europa e em seguida as introduziu em solo sul-coreano para transformar esse território no maior arsenal nuclear fora das fronteiras estadunidenses.
A agência lembra ainda que no informe de disposição nuclear publicado em março de 2002, os Estados Unidos incluíram a RPDC na lista de alvos de ataque preventivo atômico em caso de emergência.
Outrossim, os Estados Unidos organizam sistematicamente os exercícios de guerra contra a RPDC, como os denominados Freedom Bolt, Team Spirit, Key Resolve, Foal Eagle e Ulji Freedom Guardian que se realizam na parte sul da Península Coreana.
Ainda de acordo com o comunicado da KCNA, no ano passado a Casa Branca pactuou com as autoridades sul-coreanas o chamado “OPLAN 5015”, o novo plano militar operacional conjunto EUA-Coreia do Sul, e em agosto desencadeou as manobras militares conjuntas Ulji Freedom Guardian, a fim de aplicar um roteiro de guerra cuja meta consiste em bombardear a RPDC com armas nucleares.
No dia seguinte ao teste nuclear, outro órgão da imprensa da Coreia Popular, o jornal Minju Joson, publicou artigo defendendo que “um pacto de paz entre a República Popular Democrática de Corea (RPDC) e os Estados Unidos resolverá o conflito da Península Coreana”, recordando que “a RPDC propôs a concertação desse acordo a fim de promover a paz, a estabilidade, aliviar tensões e eliminar preocupações sobre a segurança regional e mundial”.
No dia 15 de janeiro, nove dias depois do anúncio do teste nuclear, o Ministério das Relações Exteriores da República Popular Democrática de Coreia emitiu uma declaração sublinhando uma vez mais que se tratou de uma “medida autodefensiva orientada a defender a soberania do país e o direito da nação a sobreviver e proteger a paz da Península Coreana e a segurança da região”.
A nota assinala que a RPDC “concentra todas as suas forças na construção de uma potência econômica, portanto não tem interesse na exacerbação da situação, nem sente a necessidade de provocar quem quer que seja”, lembrando que o líder do país, Kim Jong-un em sua mensagem de ano novo já tinha deixado claro que a tarefa prioritária de 2016 é “o desenvolvimento econômico e a melhoria da vida do povo, razão pela qual a RPDC necessita mais do que nunca de uma situação estável e de um ambiente pacífico”.
De acordo com o documento, os Estados Unidos “deverão acostumar-se à posição da RPDC como país possuidor de armas nucleares” e que “fortalecerá por todos os meios a capacidade de ataque e represália nucleares frente à violação da soberania da RPDC por parte dos Estados Unidos e às suas incessantes provocações ameaçadoras, mas não as usará com imprudência”.
O Ministério das Relações Exteriores reafirma que “estão vigentes todas as propostas apresentadas pela RPDC inclusive de que cessem os exercícios militares conjuntos dos Estados Unidos”, tendo como contrapartida “a suspensão de nosso teste nuclear”. A nota da diplomacia coreana reitera também a proposta de “concertação do acordo de paz”. Mais de meio século depois do final da Guerra da Coreia, até hoje está em vigor apenas um armistício, não um acordo de paz; tecnicamente, permanece o estado de guerra. Os Estados Unidos e a Coreia do Sul devem explicações de por que não aceitam firmar o convênio de paz com a RPDC.
Segundo o jornal “Folha de S.Paulo”, edição de 8 de janeiro, o Embaixador do Brasil na RPDC, Roberto Colin, recebeu explicações oficiais do governo da Coreia Popular através do chefe do Departamento de América Latina do Ministério das Relações Exteriores coreano, Ho Youg Bok. Mostrando-se compreensivo, o embaixador brasileiro relatou: “Eles dizem que não tinham outra escolha porque não há quem possa defender o país de uma eventual agressão norte-americana. É isso que frisaram bem: ‘ninguém nos protege’”. O embaixador contou ainda, segundo relato do jornal paulistano, que a percepção da RPDC é de que isso não é levado em conta pelos países que condenam o teste nuclear. Ainda de acordo com a informação do embaixador, a Coreia Popular acha que o cenário é visto de “maneira unilateral”.
A reação internacional não foi apenas, nem principalmente, diplomática. Para além da condenação do Conselho de Segurança da ONU e de diversas chancelarias, o teste nuclear da Coreia Popular está sendo usado pelos Estados Unidos e a Coreia do Sul como pretexto para uma escalada militarista na Ásia.
O chefe do Estado Maior sul-coreano, general Lee Sun-jin, e o comandante das forças dos Estados Unidos na Coreia do Sul, general Curtis Scaparrotti, mantiveram uma reunião para discutir sobre o deslocamento de mais armas nucleares estratégicas para a Península Coreana.
Entre as mencionadas “armas estratégicas” figuram aviões de combate Stealth F-22, submarinos de propulsão nuclear e bombardeiros de capacidade nuclear B-52. Estes últimos já foram enviados anteriormente em outros momentos de tensão militar elevada com a Coreia Popular.
A informação é da própria agência de notícias sul-coreana Yonhap, que ainda ressalta que Washington e Seul estão discutindo a instalação de sistemas antimísseis móveis com base em terra de grande porte (THAAD, na sigla em inglês).
“É hora de nos armarmos pacificamente (sic!), com armas nucleares desde a perspectiva da autodefesa para lutar contra o terror e a destruição da Coreia do Norte”, declarou o deputado sul-coreano Won Yoo-Cheol, citado pela Yonhap.
Ademais, o Pentágono manifestou sua disposição para proporcionar à Coreia do Sul “todos os meios para a dissuasão estendida”, durante conversa telefônica entre o ministro da Defesa sul-coreano, Han Min-koo, e o secretário da Defesa estadunidense, Ashton Carter.
Agora, de novo, os Estados Unidos enviaram no domingo (10) para o sul da Península Coreana um bombardeiro B-52 de largo alcance que pode transportar mísseis nucleares e bombas convencionais, segundo informação do próprio Comando do Pacífico dos EUA, cujo chefe, Harry Harris Jr., disse que a demonstração de força é a expressão do compromisso dos Estados Unidos com seus aliados.
Segundo informes das forças armadas estadunidenses e sul-coreanas, o B-52 saiu da base norte-americana de Andersen, na ilha de Guam, e sobrevoou a cidade de Osan, na província de Gyeonggi, região norte da Coreia do Sul, escoltado por dois caças-bombardeiros sul-coreanos F-15K e dois estadunidenses F-16.
O bombardeiro realizou um voo de baixa altura antes de retornar à base de Andersen, onde fica estacionado permanentemente.
De acordo com informações dos exércitos dos Estados Unidos e da Coreia do Sul, a aeronave está equipada com mísseis nucleares e projéteis antibunker.
Agregue-se a isso que os Estados Unidos mantêm um contingente de 30 mil homens na Coreia do Sul.
A reação do imperialismo estadunidense e de seus aliados sul-coreanos é reveladora de más intenções. Os fatos, que falam por si, demonstram a disponibilidade para a guerra, não para o impedimento do conflito com a Coreia Popular. Mas não só. É reveladora também da hipocrisia característica do aparato propagandístico a serviço do belicismo.
O Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) obriga os países membros a adotarem “medidas efetivas pela cessação da corrida aos armamentos nucleares e pelo desarmamento nuclear”, rumo a “um Tratado que estabeleça o desarmamento geral e completo”. O TNP obriga ainda todos os Estados que o assinam a “renunciarem nas suas relações internacionais ao uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado”.
Entretanto, os Estados Unidos e seus aliados da Otan usaram a força contra a antiga Iugoslávia, o Iraque, o Afeganistão, a Líbia e preparam-se para novos ataques. E mais: os Estados Unidos lançaram um plano ao custo de um trilhão de dólares para potenciar as forças nucleares com mais 12 submarinos de ataque, cada qual armado com 200 ogivas nucleares, e 100 novos bombardeiros estratégicos, cada qual equipado com 20 ogivas nucleares. (“Il Manifesto”, coluna de Manlio Dinucci, em 8 de janeiro de 2016). O mesmo autor informa ainda que entre os violadores atuais do TNP estão cinco países da Otan (quatro europeus e a Turquia), com cerca de 200 novas bombas nucleares B61-12, com uma potência equivalente à de 300 bombas de Hiroshima. As forças nucleares do complexo Estados Unidos/Otan, incluindo as francesas e britânicas, dispõem de cerca de oito mil ogivas nucleares, dentre as quais 2.370 prontas para lançamento.
O único país que até hoje perpetrou ataques nucleares foram os Estados Unidos. E ainda hoje, o país recusa-se a declarar que não será jamais o primeiro a cometer outro ataque nuclear.
A concepção de mundo dos comunistas incorpora como um dos seus princípios fundamentais a defesa da paz mundial. Os comunistas também advogam a não proliferação e o desarmamento nuclear, ao tempo em que condenam a hipocrisia do imperialismo estadunidense e seus aliados que violam sistematicamente o TNP e se recusam terminantemente ao desarmamento nuclear.
Se o sono da razão levar os incautos à ilusão de que basta condenar o teste nuclear coreano para obter a paz, logo aparecerão os inevitáveis monstros a assustá-los indicando onde radica o verdadeiro perigo de uma hecatombe nuclear. Então será tarde. É o imperialismo e sua política de guerra a grande ameaça à paz mundial.
As razões invocadas pela República Popular Democrática da Coreia ligam-se ao princípio da autodefesa, direito de toda nação soberana, como pressuposto para construir um país forte, alcançar a reunificação da pátria e soerguer uma ordem econômica e social consoante a vontade de seu povo e suas peculiaridades nacionais. Por óbvio, a RPDC também tem noção do mundo em que está inserida, da correlação de forças real, e não desconhece que é necessário envidar todos os esforços pela solução pacífica dos conflitos internacionais e por uma solução negociada ao problema nuclear na Península Coreana.
José Reinaldo Carvalho é jornalista, editor do Blog da Resistência e Secretário de Política e Relações Internacionais do PCdoB