Opinião
Emir Sader: Dois Brasis
Pudemos ver no domingo (17) dois pedaços do mesmo país, mas que pareciam pertencer a dois países distintos. As mais maravilhosas manifestações populares, de norte a sul, com música, alegria, juventude, mulheres, negros, as mais distintas camadas do nosso povo, cantando, gritando, todos, na sua imensa diversidade, contra o golpe, pela democracia.
Por Emir Sader
Se se pretendia convocar a votação para um domingo, acreditando que se promoveriam manifestações favoráveis ao golpe, deu tudo ao contrário. Não só em todo o Brasil, mas especialmente em Brasília, o Congresso foi cercado por 200 mil pessoas, contra o golpe.
Nunca tivemos tantas manifestações, em tantos lugares do país, tantas declarações de entidades as mais diversas da sociedade civil, todas expressando a condenação do golpe e o apoio à continuidade do processo democrático. Houve algumas manifestações, em particular, notáveis, marcos na história de lutas do povo brasileiro, como, entre tantas outras a da Avenida Paulista com o Lula, a dos Arcos da Lapa também com ele, a marcha de Brasília do dia 18 de março, a manifestação do funk em Copacabana ontem, a marcha de Brasília também de ontem.
As lutas do povo brasileiro nunca mais serão as mesmas. A CUT, o MST, o MTST e tantas outras entidades demonstraram uma extraordinária capacidade de mobilização e de organização. Ao mesmo tempo, o espirito unitário das manifestações, em torno da defesa da democracia, demonstrou uma grande maturidade política do movimento popular brasileiro.
Frente a esse quadro, tivemos um outro, protagonizado pela Câmara, dirigida pelo político mais corrupto do Brasil, atuando com seus métodos gangsters, de manipulação, chantagem, pressão, corrupção, como se uma instituição como o Congresso, lhe pertencesse. E, ao seu redor, uma maioria execrável de parlamentares, promovendo um golpe branco no país, usurpando o direito do povo de eleger seus governantes, acreditando que podem eleger um presidente da república com 1% de apoio, como se o poder fosse um botim que pudesse ser assaltado por capatazes.
Discursos que envergonham o país de ter parlamentares assim, mas quando nos lembramos que eles compõem a bancada da bala, a do fundamentalismo evangélico, a do agronegócio, e tantas outras, e nos recordamos os retrocessos que promoveram sob a direção de Eduardo Cunha, nos damos conta de quem compõem o Congresso brasileiro atual.
São duas porções do mesmo país, que não se reconhecem. O povo não reconhece nesses congressistas seus representantes. E os deputados não conhecem o povo brasileiro.
Sendo o último Congresso eleito com financiamento empresarial, os cidadãos brasileiros têm a oportunidade de renova-lo radicalmente, ainda mais com a consciência dos danos que um Congresso conservador e inexpressivo do povo brasileiro pode causar ao país. Para isso as entidades civis, os sindicatos, os movimentos sociais todos, tem que tomar consciência que para democratizar a vida política brasileira, é fundamental que a educação pública brasileira tenha sua bancada, da mesma forma que a saúde pública. Assim como os trabalhadores de todas as categorias – metalúrgicos, bancários, químicos, etc., etc., ao lado de uma forte bancada dos trabalhadores rurais, das mulheres, dos negros, dos jovens das periferias, entre tantos outros setores que se manifestaram nestas semanas nas ruas do Brasil.
É um desastre para a democracia brasileira ter um Congresso assim, pelos interesses minoritários dominantes e retrógrados que eles representam. E por terem sido eleitos com apoio financeiro de um parlamentar que envergonha a qualquer Congresso, e que eles elegeram para presidir a Câmara de Deputados.
Entender essas duas caras do mesmo país é fundamental para entender os obstáculos que a construção de um país democrático requer. A crise atual só se aprofunda com essa decisão. Não há possibilidade que um governo dirigido por alguém que tem 1% de apoio e 81% de rejeição, com um duro ajuste fiscal, eleito por um golpe, possa resolver a crise brasileira. Ele faz parte da crise.
Crise que está ainda mais longe de ser resolvida, porque aprofunda sua dimensão institucional, sem que avance em nada na retomada do crescimento econômico com distribuição de renda que o país requer e que Lula propõe. Um bando de políticos corruptos vai ter que se enfrentar com esse extraordinário movimento popular que o cercou hoje no Congresso e em centenas de cidades brasileiras. Esse Congresso não pode mais viver solto no ar, tomando decisões contra o povo, contra o país, tentando se apropriar do governo como se fosse um botim de uma gangue, dirigido por um parlamentar execrável. Veremos nos próximos meses que país triunfa sobre o outro, ou que porção do Brasil representa realmente o país.
Fonte: Brasil 247