Opinião

El Salvador: balanço provisório de vinte e cinco anos de paz

05/02/2017
Acordo de paz que encerrou a guerra civil em El Salvador. (Foto: Telesur).

El Salvador comemora nestes dias mais de 25 anos da assinatura do acordo de paz: um ato que ainda provoca esperança em seu povo e nas nações do mundo que ainda enfrentam conflitos armados. Sim, é verdade: a guerra acabou. O Acordo de Chapultepec silenciou as armas e tornou possível a difícil, quase traumática, convivência de dois projetos políticos e duas visões de mundo radicalmente distintas. Mas a guerra continua.
Por Atílio Borón, em Cubadebate

A paz foi assinada há 25 anos, mas as negociações de paz entre o governo e a guerrilha da FMLN (Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional) teve algo que permaneceu à margem de toda a discussão: o modelo econômico foi uma grande ausência nestas negociações. A correlação interna e internacional de forças impediu que a FMLN pudesse instalar o tema na agenda. Foi isso que criou – e cria – as condições para o conflito e eventualmente a guerra, e o que gera a injustiça e a opressão, e não esteve presente na mesa de negociações. O acordo de paz foi assinado sobre o silêncio de um conflito que foi ignorado. Tal coisa, felizmente, não ocorreu em Havana entre as Farc-EP e o governo colombiano.

Para piorar a situação, há mais de dez anos, El Salvador assinou sua adesão ao Tratado Centro-Americano de Livre Comércio (CAFTA, em inglês), promovido pelos Estados Unidos. Assinou junto com outros países da América Central (Honduras, Costa Rica, Nicarágua e Guatemala) e a República Dominicana. Se seu antecessor, o NAFTA, assinado entre Estados Unidos Canadá e México, teve consequências políticas, sociais e econômicas catastróficas no país asteca, os resultados do CAFTA dificilmente poderiam ser melhores na América Central. E não o foram. Um exemplo: em El Salvador, nos dez anos antes da assinatura do acordo comercial, as exportações cresciam a um ritmo de 8% ao ano; após o tratado comercial entrar em vigor, o ritmo de crescimento caiu para quase a metade desse percentual. Claro que as importações procedentes dos Estados Unidos aumentaram vertiginosamente acelerando uma forte expansão do consumo entre os extratos superiores da classe média (mas não entre os demais das classes populares), provocando, como contrapartida, a mesma queda agrária que antes se produziu no México e que transformou a terra originária do milho em importadora substancialmente do transgênico estadunidense. Dez anos após aquele tratado ser posto em vigor, o principal escape para a pobreza em El Salvador – que no campo é superior a 60% da população, sendo 40% o percentual de pobreza para a população total do país – continua sendo a imigração. Não há prova mais contundente do fracasso do CAFTA que esta. Embora seja relativamente fácil, nos termos do tratado, exportar mercadoria para os Estados Unidos (sendo muitíssimo fácil importar dele), os salvadorenhos têm que arriscar suas vidas para entrar no país que lhes convidou a compartilhar a doçura do “livre mercado”. Circulam sem restrições as mercadorias, não as pessoas.

Atualmente, cerca de dois milhões e meio de salvadorenhos vivem nos Estados Unidos. Sem contar os que se encontram em outros países (Espanha, principalmente), um número que representa cerca de 40% da população do país, estimada em 6 milhões e 100 mil habitantes. A expulsão dessas massas origina renda, por meio de remessas, de cerca de 4 bilhões e 200 milhões de dólares, permitindo que 1 milhão e 300 mil pessoas possam sobreviver no país aos rigores e desigualdades da globalização neoliberal. Que seja levado em conta o fato de que, segundo dados oficiais, 87% das pessoas em idade de se aposentar não contam com nenhum tipo de pensão ou ajuda previdenciária. Estas remessas são essenciais para a sua sobrevivência e representam o segundo item de ingresso de divisas, superado apenas pelas exportações salvadorenhas.

Tudo isso fala eloquentemente sobre a fragilidade do país e a farsa dos acordos do livre comércio. Em novembro do ano 2000, o presidente corrupto Francisco Flores, do partido de extrema direita ARENA – que conta, entre os seus fundadores, com o assassino de Dom Oscar Arnulfo Romero – promulgou a Lei de Integração Monetária pela qual El Salvador adotou o dólar e definitivamente deixou o Colon, que era a moeda oficial desde 1892. Como consequência disso, o governo perdeu um instrumento decisivo de gestão macroeconômica. Esta circunstância, somada à importância das remessas de salvadorenhos no exterior e aos perniciosos efeitos do CAFTA, reforça a dependência estrutural de El Salvador em relação aos Estados Unidos e coloca o governo em uma situação de debilidade que não pôde ser superada pela FMLN. Com o dólar, as remessas e o CAFTA, Washington maneja as fontes fundamentais da economia do país da América Central. Adicione-se a isso, a importância de El Salvador por sua localização no istmo centro-americano, o que suscita a permanente atenção do Pentágono, já que essa parte do mundo é vista por seus estrategistas como uma fonte de inúmeras artimanhas e, por isso mesmo, território preferencial (junto com o Caribe), para a instalação de um grande número de bases militares que, segundo alguns especialistas, seriam mais de cinquenta.

Perante este cenário, o que o governo fez com a FMLN é muito, mas é uma tarefa muito difícil tudo o que ainda é preciso fazer. Democratizou o processo político e o acesso ao governo. Mas as estruturas dos “poderes concretos” permanecem inalteradas, o Poder Judiciário enfrenta com fúria as iniciativas do presidente Salvador Sánchez Ceren, e o mesmo ocorre com o Congresso e a feroz oligarquia midiática. Em suma: as conquistas democráticas em um âmbito limitado da vida pública e permanência do despotismo oligárquico em todo o resto.

El Salvador é um país que ao longo de sua história foi vítima de repressões brutais. Em 1932, o líder comunista Farabundo Martí liderou uma rebelião popular que foi afogada em sangue e a violência reacionária foi implantada durante grande parte do século. Matanças no campo sem pausa; forças armadas entrando na Universidade Nacional, destruindo sua biblioteca para, em seguida, destruir o que restava de pé, com o avanço de seus tanques; massacres de aldeias inteiras; assassinato dos jesuítas da Universidade Centro-americana e de Monsenhor Romero enquanto ele consagrava a eucaristia; esquadrões da morte torturando e assassinando por toda a parte com a bênção e a cobertura de Washington.

Tudo isso no menor país da América Latina – o “Pequeno Polegar”, como dissera o poeta Roque Dalton – que apesar de ter demonstrado uma coragem incrível e de a guerrilha da FMLN alcançar um êxito militar que quase não tem comparação a nível internacional: conter a campanha de extermínio lançada pelo exército salvadorenho sob a condução eficaz e desavergonhada de oficiais estadunidenses e assim e forçar um acordo de paz, o que seria impossível se os guerrilheiros tivessem sido derrotados. Só porque a guerra terminou em um empate – na realidade, uma derrota para o Pentágono – é que foi possível chegar a um acordo de paz. Importante, mas insuficiente. Mas o salvadorenho é um povo que não recua diante das derrotas e segue lutando.

Estamos confiantes em que o mais cedo possível recolherá os frutos do seu heroísmo, na medida em que esse combate não se restrinja apenas à esfera econômica e política e inclua também, como um de seus principais cenários de atuação, a “batalha de ideias” à qual Fidel nos convocou há muitos anos. Porque sem prevalecer nesse crucial terreno, sem ganhar o combate no campo das ideias e consciência, todas as outras conquistas podem desmoronar como um castelo de areia. Afortunadamente, é cada vez maior o número de pessoas que sustentam essa convicção em El Salvador. Serão as “trincheiras de ideias” de Martí que frustrarão os desígnios estadunidenses de transformar esse país em uma base gigantesca de operações de contra-insurgência para, a partir disso, esmagar os processos progressistas de esquerda que se agitam em toda a região.

Por Atilio Borón, em Cubadebate, tradução de Luci Nascimento para Resistência

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