Opinião
É preciso não silenciar o genocídio no Iêmen
Os serviços de que os iemenitas até agora dispunham para sua vida desapareceram e a destruição enfraqueceu a já fraca economia do país.
Por António Abreu*
Por que caminhos se vai tecendo o genocídio
No passado dia 24, pelo menos sete pessoas morreram e outras dez ficaram feridas com gravidade num bombardeamento realizado pela coligação militar liderada pela Arábia Saudita contra um hospital de campanha da organização humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF) no noroeste do Iêmen, informaram à Agência Efe algumas pessoas que testemunharam o ocorrido. Os mortos são pacientes que estavam no centro médico e um engenheiro iemenita que trabalhava para a MSF no hospital, situado na cidade de Abs.
Muitos ataques aéreos da coligação, dirigida pela Arábia Saudita, estão a matar e ferir muitos civis, incluindo o ataque no passado dia 20 em torno da capital, Sana. Os bombardeamentos também provocaram danos graves nas infra-estruturas do país, incluindo um porto marítimo crucial e pontes importantes, bem como hospitais, instalações de saneamento básico e fábricas.
Os EUA também têm participado. Civis, entre os quais crianças, têm sido mortos em sucessivos bombardeamentos como o de janeiro num bombardeamento que o Comando Central do Exército norte-americano admitiu. Entre as vítimas mortais, neste caso, uma autoridade iemenita afirmou terem sido mortas 16 mulheres e até um membro das forças especiais da marinha dos EUA.
Os serviços de que os iemenitas até agora dispunham para sua vida desapareceram e a destruição enfraqueceu a já fraca economia do país. Também se tornou mais difícil a ação das organizações humanitárias. Vai levar anos a restaurar as infraestruturas e voltar a criar uma cobertura elétrica para Sana, a capital.
A coligação liderada pelos sauditas também tem mantido o aeroporto internacional de Sana fechado para o tráfego aéreo civil há mais de um ano, o que significa que os comerciantes não podem deslocar mercadorias por meio aéreo, e nem os doentes e feridos iemenitas podem ir para o estrangeiro receber tratamento. Muitos já morreram.
Nenhuma das administrações das duas zonas do Iêmen está a pagar salários regulares a muitos funcionários públicos há mais de um ano, provocando a pobreza das suas famílias até porque se encontra pouco trabalho. Entre os afetados por esta situação estão aqueles profissionais cujo trabalho é essencial para intervir em tempos de crise, como médicos, enfermeiros e técnicos de sistemas de saneamento, levando praticamente ao colapso dos respectivos setores de atividade.
À medida que a agressão prossegue, aumenta a pobreza. Numa população de 27 milhões de pessoas, 20 milhões precisam de ajuda.
A comunidade internacional não está a reagir como devia
É certo que, no dia 18 do mês que passou, representantes das Nações Unidas denunciaram a “tripla tragédia” provocada pelo conflito no Iêmen; a fome, o surto de cólera e o arrastar da guerra. Foi particularmente contundente nas informações então prestadas ao Conselho o sub-secretário-geral da ONU para os Assuntos Humanitários, o inglês Stephen O’Brien.
Denunciou a fome generalizada e o surto de cólera, que já infectou mais de meio milhão de iemenitas desde finais de abril e tinha já provocado 1975 mortes. O’Brien instou a Arábia Saudita a levantar o bloqueio aéreo e naval sobre este pobre país.
Já em Dezembro passado, o responsável pela missão das Nações Unidas no país, Jamie McGoldrick reconhecera que “A Humanidade já não funciona aqui”. “O mundo simplesmente fechou os olhos ao que se está a passar no Iêmen.”
O que é certo é que, depois de qualquer uma destas declarações, os sauditas prosseguiram os massacres com mais bombardeamentos.
Desde então até hoje a “coligação” da Arábia Saudita tem realizado sucessivos bombardeamentos, como se quisesse fazer desaparecer da região populações inteiras e assim garantir o domínio do estreito de Bab Al-Mandeb, onde do lado africano, no Djibuti, a China já tem uma base militar para impedir a pirataria contra a circulação das suas mercadorias, numa vasta plataforma em que a Rússia poderá também ter algum papel no plano portuário para efeitos comerciais.
A catástrofe adensa-se
“Com a desnutrição que temos entre as crianças, se elas tiverem diarreia, não vão poder melhorar”, disse Meritxell Relano, representante do Fundo das Nações Unidas para a Infância no Iêmen.
Se os números de infecção continuarem a aumentar, os investigadores temem que os casos possam, em última instância, equiparar-se ao caso do Haiti, que infectou pelo menos 750 mil pessoas após um devastador terramoto em 2010. Peter Salame, diretor executivo do programa de emergências de saúde da Organização Mundial da Saúde, advertiu que, à medida que o Estado falha, “a consequência disso passou a ser a cólera, mas pode haver no futuro outras epidemias de que o Iêmen poderia vir a ser o epicentro”.
O que move os sauditas
Os rebeldes controlam Sana e as regiões a ocidente, enquanto a zona sul e o vasto deserto a leste estão na posse do governo liderado por Hadi, que ainda continua a ser internacionalmente reconhecido como governo do Iêmen, apesar mesmo do dispositivo militar saudita pressente nesta parte do território.
No meio ainda estão os territórios controlados pela Al-Qaeda na Península Arábica, onde a organização terrorista é mais forte. O Daesh também tem aproveitado o caos no Iêmen para se instalar no Golfo Pérsico.
Em dezembro passado, uma das últimas tentativas para encontrar uma solução política caiu por terra, depois da rejeição do plano de paz proposto pela ONU. O roteiro, que previa a substituição de Hadi por um dos seus vice-presidentes e que, segundo a Reuters, até tinha a aprovação de Riade, foi rejeitado pelo governo iemenita deposto, que disse que o documento abria um “perigoso precedente”.
Não é difícil encontrar os objetivos dos sauditas com estes massacres. Em parte até já os reconheceram.
Os sauditas afirmam recear que a queda de um Governo leve à sua substituição por um executivo próximo do Irã. E, entretanto, procuram, desde março de 2015, com esta coligação militar exercitar e dar músculo a uma organização que confronte o Irã.
Por outro lado identificam-se com as preocupações dos EUA, que querem impedir que o Irão, a Rússia ou a China consigam um apoio estratégico no Iêmen.
Embora a Casa de Saud sempre tenha considerado o Iêmen como província subordinada e parte da esfera de influência de Riad, os EUA querem assegurar o controlo sobre o estreito de Bab Al-Mandeb, o Golfo de Aden e as ilhas Socotra. Bab Al-Mandeb é importante ponto estratégico para o comércio marítimo internacional e embarques de energia (por ele passa quase 40% de todo o comércio marítimo mundial, incluindo 30% de petróleo transportado por esta via), que liga o Golfo Pérsico, pelo Oceano Índico, com o Mar Mediterrâneo via Mar Vermelho. É tão importante quanto o Canal de Suez para as rotas marítimas comerciais entre África, Ásia e Europa.
Israel também se envolveu, porque com o Iêmen controlado por houthis, Israel poderia perder o acesso ao Oceano Índico pelo Mar Vermelho e deixar de poder mandar os seus submarinos para o Golfo Pérsico para ameaçar o Irão. Essa é a razão pela qual o controle sobre o Iêmen foi um dos pontos sobre os quais Netanyahu discursou no Capitólio quando falou ao Congresso dos EUA sobre o Irão, em 3 de Março.
Além da importância geopolítica do Iêmen na supervisão de corredores marítimos altamente estratégicos, existe também a questão dos mísseis militares. Mísseis lançados do Iêmen podem alcançar qualquer navio no Golfo de Aden ou no estreito de Bab Al-Mandeb. Por isso, o ataque saudita contra os depósitos de mísseis estratégicos do Iêmen é tão do interesse dos EUA e de Israel.
Sendo a Arábia Saudita conhecida por ser um país que não tem uma história tão rica como outros países da região, é conhecido que liberta esse complexo de inferioridade ao desafiar países com um rico património cultural, procurando facilitar também o roubo por grupos terroristas de preciosidades históricas no Iraque, na Síria e no Iêmen, e ganhem bom dinheiro com isso para se manterem operacionais depois das derrotas que têm sofrido. No Iêmen, os aviões de guerra sauditas têm bombardeado monumentos classificados como Património Mundial pela UNESCO».
Possível alteração da política da Arábia Saudita
Alguns observadores, crentes numa mudança significativa da política externa da Arábia Saudita, admitem que o país saia do Iêmen. Esta seria uma medida concreta dessa mudança numa altura em que está iminente que o Rei Salmane abdique e se faça substituir pelo seu filho, o Príncipe Mohammed, que já hoje tem um poder relevante na Casa de Saud, incluindo nos bombardeamentos do Iêmen, mas que poderia remeter a responsabilidade deste erro ao seu pai.
Não ignoramos o extremo perigo dos conflitos existentes ou latentes. Mas também sabemos que na região estão a ocorrer ações militares antiterroristas com sucesso. A imprensa ocidental só tem referido as vitórias no Iraque contra Al-Qaeda e o ISIS mas há outras realidades que escondem mas não podem ser ignoradas.
A Síria ganhou a guerra contra o terrorismo e está a eliminar progressivamente grupos de membros do ISIS em fuga, que, com a próxima batalha de Deir ez-Zor, será a batalha final que consagrará a vitoria da Síria nesta guerra, ficando ainda por resolver o problema da província de Idlib no noroeste da Síria, ocupada ainda por dois grupos jihadistas rivais, que agora combatem um contra o outro: o Hay’at Tahrir al-Sham, novo nome da Frente al-Nusra (filiado na Al-Qaeda) e o Ahrar Al-Sham, apoiado pelos turcos.
Entre a zona dos Montes Golan e a Síria, a Rússia tem mantido uma acção de polícia que tem desfeito diversos grupos terroristas, que antes tinham o apoio de Israel (e que poderá ter levado Netanyahu a descolar-se nos últimos dias a Moscovo).
E na fronteira da Síria com o Líbano, o Hezbollah no mês passado varreu os terroristas da Ahrar, al-Qaed e ISIS, e assumiu o controlo das colinas na fronteira o que é muito importante para a Síria e o Hezbollah (e o Irão) garantir que a fronteira Líbano-Síria permanece aberta.
Também continuam a ocorrer complexas iniciativas diplomáticas entre os interesses das potências regionais, com um acompanhamento dos EUA, Rússia e China. Há entendimentos que, com o apoio russo, no passado não se imaginariam possíveis. Como o novo eixo Turquia-Rússia-Irão. Ou o esforço da Rússia em pôr a dialogar os vários grupos rivais que dominam a Líbia. Num futuro próximo até se poderá prever que o Irão e o Qatar se unirão para vender gás natural à Europa
A política externa da Arábia Saudita não pode ignorar estas novas realidades.
Como se chegou à escalada da Arábia Saudita contra o Iêmen?
Com a Casa de Saud, Al-Hadi, já desde antes de se tornar presidente, se tinha envolvido na perseguição aos houthis e na manipulação da política tribal no Iêmen. A onda das chamadas “revoluções coloridas” levou a que os países do Golfo afastassem o Presidente Saleh e o substituíssem pelo seu número dois, Al-Hadi, em quem confiavam.
Al-Hadi, apoiado pelos EUA, foi, forçado de forma humilhante, a dividir o poder com os houthis e a coligação das tribos do norte do Iêmen que tinham ajudado os houthis a tomar Sana.
Quando se tornou presidente, fincou os pés e pôs-se a trabalhar contra a aplicação de tudo que fora fixado consensualmente nas negociações do Diálogo Nacional do Iêmen, realizado depois de Ali Abdullah Saleh ter sido obrigado a deixar o poder em 2011.
Al-Hadi foi depois disso deposto, em 2014, por ter tentado um golpe, apoiado pelos sauditas e EUA. A deposição do presidente Al-Hadi pelos houthis e seus aliados políticos foi uma reação não prevista à tentativa de golpe.
Os revoltosos rejeitaram as propostas de Al-Hadi e novas ofertas para um acordo formal de partilha do poder, acusando Al-Hadi de ser homem sem moral que estava, de facto, renegando tudo que se comprometera a fazer quando assinara os acordos de partilha do poder anteriores. Naquele momento, a atitude submissa e subalterna do presidente Al-Hadi frente a Washington e à Casa de Saud já o havia tornado terrivelmente impopular no Iêmen, detestado pela maioria da população. Dois meses depois, no dia 8 de Novembro de 2014, o próprio partido do presidente Al-Hadi (o Congresso Geral Iemenita do Povo), o destituiu da liderança do partido.
Os houthis chegaram a prender o presidente Al-Hadi e, em 20 de janeiro de 2015, tomaram o palácio presidencial e outros edifícios do governo. Com apoio popular, cerca de duas semanas depois, no dia 6 de Fevereiro, os houthis constituíram um governo iemenita de transição. Al-Hadi foi obrigado a renunciar. Dia 26, em declaração oficial, os houthis denunciaram que os EUA e a Arábia Saudita se preparavam para atacar e devastar o Iêmen.
Al-Hadi fugiu da capital Sana para Aden, dia 21 de Fevereiro, e no dia 7 de Março declarou Aden capital do Iêmen. Os EUA, a França, a Turquia e seus mais íntimos aliados europeus fecharam as suas embaixadas em Sana. Pouco depois, num movimento que provavelmente foi coordenado com os EUA, a Arábia Saudita, o Kuwait, o Bahrein, o Qatar e os Emirados Árabes Unidos reabriram as respectivas embaixadas, mas já em Aden. Al-Hadi cancelou sua carta de renúncia à presidência e declarou que estava formando um novo governo no exílio.
A deposição de Al-Hadi foi um duro golpe contra a política externa dos EUA. A tal ponto que resultou numa emergência para a CIA e o Pentágono, forçados a retirar do Iêmen, à pressa, todo o seu pessoal militar e dos serviços secretos. O Los Angeles Times noticiou no dia 25 de março, citando funcionários dos EUA, que os houthis haviam confiscado grande quantidade de documentos secretos quando tomaram o edifício do Gabinete de Segurança Nacional do Iêmen, que trabalhava em íntima coordenação com a CIA, documentos que comprometiam as operações de Washington no Iêmen.
Os houthis e respectivos aliados políticos recusaram-se a conceder as exigências de EUA e Arábia Saudita, que estavam sendo articuladas através de Al-Hadi em Aden, com a participação de uma Riade cada dia mais histérica. Resultado, o Ministro do Exterior de Al-Hadi, Riyadh Yaseen, pediu que a Arábia Saudita e os petro-emiratos árabes interviessem militarmente para impedir que os houthis alcançassem, dia 23 de março, o controle do espaço aéreo do Iêmen. Yaseen disse ao jornal Al-Sharg Al-Awsa, porta-voz dos sauditas, que era absolutamente necessária uma campanha de bombardeamentos e que tinha de ser imposta sobre o Iêmen uma zona aérea de exclusão.
Os houthis perceberam que começaria a guerra e que seriam atacados – e esse é o motivo pelo qual os houthis e seus aliados no exército do Iêmen ocuparam rapidamente a maior quantidade possível de pistas e bases aéreas do país, incluindo Al-Anad. Para neutralizar Al-Hadi, no dia 25 de março os houthis entraram em Aden.
Quando os houthis e aliados entraram em Aden, Al-Hadi já fugira para um porto iemenita. E só voltaria a dar sinal de si já na Arábia Saudita, quando a Casa de Saud começou a bombardear o Iêmen, no dia 26 de março. Da Arábia Saudita, Abdrabbuh Mansour Al-Hadi voaria até ao Egito para uma reunião da Liga Árabe, convocada para legitimar a guerra contra o Iêmen.
Tudo isto quando começavam a ocorrer alterações estratégicas no Oriente Médio, ao tornar-se claro que a Síria estava a vencer, com apoio dos russos, as vagas de assalto terroristas, retomando cidades e território, que a Al-Qaeda e o Daesh sofriam pesadas derrotas no Iraque e que o Irã também se apresentava como elemento central da arquitetura de segurança e da estabilidade na região.
A criação frenética de uma vaga de medo promovida por israelitas e sauditas não deu resultado. De acordo com uma pesquisa do instituto Gallup, apenas 9% dos cidadãos norte-americanos consideravam o Irã como o pior inimigo dos EUA, no momento em que Netanyahu chegou a Washington para se opor a qualquer acordo entre EUA e o Irã.
A Arábia Saudita não tinha força suficiente para confrontar, sozinha, o Irã e a Síria. Para isso, a Arábia Saudita precisa do Egito, da Turquia e do Paquistão – mal identificados pelo nome de aliança ou eixo “sunita” – para a ajudar a enfrentar o Irã e os seus aliados regionais. E conseguiu obter no final de março de 2015 declarações de Erdogan, Al Sissi, e Nawaz Sharif nesse sentido.
De entre os cinco membros do CCG (Conselho Consultivo do Golfo), o Sultanato de Oman manteve-se à parte dos objetivos sauditas. Oman recusou-se a participar da guerra contra o Iêmen. Muscat tem relações amistosas com Teerã. Além disso, os omanitas desconfiam do projeto saudita e do CCG de usarem o sectarismo para incendiar um confronto com o Irão e seus aliados. A maioria dos omanitas não são nem muçulmanos sunitas nem muçulmanos xiitas; são muçulmanos Ibadi e temem o incêndio que os EUA, a Casa de Saud e os outros emiratos árabes estão a tentar atear na região.
* Engenheiro e professor de História contemporânea. Fonte: AbrilAbril